A postagem "A caminho do fim da humanidade" trouxe de volta o meu célebre comentarista para assuntos filosóficos André Coelho, que discorreu com a habitual sabedoria sobre o tema, permitindo uma reflexão valiosa:
Já eu acho a notícia interessante pelo quanto de simbólico ela carrega para a questão da exploração sexual em geral, principalmente de seres humanos. A presença de uma fêmea de orangotango num prostíbulo, disponível para lucro da proprietária e para uso dos clientes como qualquer outra das prostitutas, mostra bem qual é o status (um nível certamente abaixo do humano) que tal proprietária e tais clientes atribuem às mulheres do local. Se um Y pode estar entre vários X's sem causar estranheza aos Z's, é que os X's já estavam sendo tratados como Y's pelos Z's desde o princípio. Não estou negando que o animal fosse atração exatamente por ser o elemento diferente, o que estou dizendo é que essa diferença não era uma ruptura com a relação simbólica da prostituição, e sim uma continuidade dela sob uma forma que ajuda a lançar luz sobre de que tipo de relação simbólica se trata.
Já a resistência a entregar o animal mostra o quanto ele representava, por assim dizer, o ideal do que a proprietária e os clientes esperariam que as mulheres do local fossem. Se é verdade que a fêmea de orangotango não rompe a relação simbólica travada com as mulheres porque estas já estão sendo tratadas na condição daquela primeira desde o início, também é verdade que as mulheres, na medida em que estão sendo tratadas como menos que humanas, mas são ainda humanas, só se submetem a essa condição com alguma dose de desencaixe, de atrito, de resistência. Elas precisam se comportar como menos que humanas, enquanto são, na verdade, humanas. Já a fêmea de orangotango, não. Ela, que deve ter sido submetida a isso por tanto tempo e tantas vezes até perder a noção de outra existência distinta, se encaixa perfeitamente no perfil sub-humano que o "negócio" lhe empresta e, por isso, representa um objeto assim tão valioso. Não está à sua disposição a memória, a imaginação e a possibilidade de representação reconstrutiva da própria imagem e dignidade que os seres humanos "incomodamente" insistem em ter.
Por fim, vale ainda destacar o valor simbólico de tratar-se de uma fêmea de orangotango, e não de uma égua, de uma vaca ou de uma cabrita. O apelo de uma animal que mantém razoável semelhança com as formas e comportamentos humanos é revelador desse outro aspecto da prostituição. Se se trata de converter aquelas mulheres em seres menos que humanos, é preciso, contudo, que jamais se perca a semelhança com o humano. É o motivo por que elas precisam fingir-se interessadas, seduzidas, satisfeitas com aquilo que as submete, machuca ou enoja.
É que, tal como no estupro, na prostituição está envolvido não apenas um componente de prazer, mas também um componente de poder, como se a posse do dinheiro por um dos pólos lhe desse a capacidade de mandar e a necessidade do ganho pelo outro lhe tirasse a capacidade de negar. Trata-se de instrumentalização para o prazer (e para isso é preciso reduzir o humano a um sub-humano), experiência que atrai o desejo porque realiza a fantasia de ter das mulheres o que os homens geralmente buscam de seu corpo sem ter que suportar tudo aquilo que lhes incomoda em sua personalidade (no fundo, é que elas sejam pessoas, e não coisas, que tanto os incomoda); mas trata-se também de subjugação mediante poder (e para isso é preciso manter aquele sub-humano sempre em razoável analogia com o humano, pois é sempre outro humano que se quer subjugar), experiência que atrai o desejo porque realiza a fantasia de estar numa posição tal em que as pessoas objeto de seu desejo simplesmente não lhe podem dizer não.
Em última instância, no que concerne a esse componente de poder, o motivo por que os homens vão a prostíbulos é o mesmo motivo por que eles sonham em algum dia serem riquíssimos, famosíssimos ou poderosíssimos: evitar o longo, trabalhoso e arriscado investimento de conseguir um sim sincero mediante o truque de lidar apenas com aqueles que não lhe podem dizer não. Se não podem elevar-se acima de seus iguais sociais para obrigá-los a servi-los, vão procurar seus desiguais (tratados como) sub-humanos que não têm outra alternativa se não servi-los.
Quanto ao caso dos clientes e de se tratar de doença mental, quem dera fosse isso! Seria pelo menos uma situação excepcional de um prostíbulo que atendia apenas a psicopatas. O mais triste é que no fundo não é isso, é que no fundo apenas expressa em termos mais fortes (e, concordo, vizinhos do psicopático) apenas fantasias reprimidas de todos os membros de uma cultura fortemente patriarcal em que as mulheres são seres humanos de segunda classe, e as prostitutas não são seres humanos de classe alguma, mas são apenas isso que era a fêmea de orangotango: certo espécime animal que lembra vagamente um ser humano apenas na medida bastante para ser um objeto de prazer e poder masculino.
4 comentários:
Obrigado pelo destaque, Yúdice. Acho que acabei me empolgando um pouco ao escrever sobre toda a torrente de associações simbólicas que me veio à mente quando li sua postagem e a notícia. Enfim, coisas de fim de madrugada. Fico feliz que tenha achado válido em alguma medida o que escrevi. Abraço!
Eu adoro quando tu te empolgas, André. Eu é que saio ganhando!
Que bom que também pude trazer a Ilze ao debate. É sempre instigante e iluminador conversar com ela sobre as temáticas do feminino. Abração!
Espetacular o comentário. Trouxe um ponto de vista o qual nunca tnnha pensado acerca da prostituição.
Obrigado a quem escreveu e a quem compartilhou.
Abraços Primo
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