Ontem aconteceu algo diferente e com um acento incômodo. Passei rapidamente pelo velório de um estranho. Mas não era exatamente um estranho, e sim alguém que passou muitos anos extremamente perto de mim, no mais íntimo círculo familiar. Nem por isso, entretanto, conseguiu ser família, aos meus olhos. O que não muda o fato de ter sido tão próximo.
Seu afastamento se deu em boa medida pela intervenção dura e inclemente de algumas pessoas, eu entre elas. Talvez eu tenha sido um dos maiores responsáveis por isso, embora coubesse a uma única pessoa, que não eu, a decisão final. No dia em que ele enfim se foi, eu não estava presente nem desejaria estar. Só sei que ele cruzou a porta e nunca mais o vi. Poderia tê-lo visto, se atendesse a solicitações que me foram feitas. No meu casamento, p. ex. Mas cuidei para que isso não acontecesse. Uma única vez ainda escutei sua voz, por telefone. Mas quando se identificou, apenas passei a ligação a quem se destinava, sem qualquer outra manifestação.
Uns oito anos se passaram, mais ou menos. Nem sei ao certo quantos. Nesse meio tempo, ouvi falar dele umas poucas vezes, que se intensificaram em tempos recentes. Foi quando soube de sua doença. Arrumara melhor a sua vida, o que não fizera ao longo de mais de uma década. E quando começou a melhorar, veio um AVC, ou AVE, como se diz hoje. Depois outro e, por fim, outro. Suas últimas semanas foram de grande sofrimento. Seu passamento se tornou questão de tempo e esse tempo findou hoje, após mais de 40 dias em estado crítico num hospital.
A bem da pessoa por quem me compete zelar, fui ao velório. Sentia-me estranho, imaginando se os familiares não teriam ressalvas contra mim. Para dizer o mínimo. Mas acho que valorizo demais a minha condição e todos pareceram apenas gratos pela solidariedade. Beijei a mãe, de quem gosto muito, mulher tão sofrida, que já enterrara o marido e uma filha, vitimada por um tumor no cérebro e crises de insanidade. E que quase enterrou outros dois filhos, um devido a um câncer e outro, por problemas cardíacos. E que já viu netos envolvidos em problemas graves, além de se afligir por dificuldades financeiras. Que vida, a dela!
Cumprindo esse péssimo ritual judaico-cristão, olhei o rosto do falecido, pelo visor do caixão fechado. Pelas condições do cadáver, o féretro não podia ser aberto e o enterro não podia demorar. Era um rosto muito diferente daquele de que me recordo e que ainda pode ser visto em fotografias. Chamou-me a atenção a ausência de barba, mas sobretudo a aparência devastada do semblante. Muito ruim a visão, que me acompanha desde então.
Alguém precisa convencer as pessoas de parar com essa mania de olhar pessoas mortas. Ninguém precisa se despedir assim. Se bem que eu, novamente, não me despedi. Não estava lá para isso. Fui apenas levar uma pessoa de quem me compete cuidar. Ela, sim, se despediu. Felizmente, parece estar bem.
Nem todas as pessoas marcam as nossas vidas da maneira mais positiva. Mas elas acabam ficando, de algum modo, porque fazem parte de nossa história. E isso não pode ser mudado. Simplesmente não pode.
Vá em paz. Uma outra vida o espera.
4 comentários:
Oi, Yúdice,
Seu texto me tocou. Por questões pessoais, é claro, porque, como vc disse, nem todo mundo passa pela nossa vida de forma positiva.
E tem mais, a identificação ocorreu, também, pelo fato de eu ter uma relação peculiar com pessoas falecidas. Explico: meu comportamento em relação a tais pessoas é igual ao comportamento que com elas mantinha qdo estavam "em vida".
Se amava, a dor é forte... Se não era tão ligada, a morte não me faz passar a ser.
Para muitos, é um comportamento frio, desrespeitoso. Mas, para mim, agir de modo contrário seria uma hipocrisia.. E se tem algo que me consome é hipocrisia.
Era isso, meu caro.
E a Julinha, hein? Mande meu beijo para ela!
Boa semana!
Sem dúvida, Rita, uma identificação aqui só pode ocorrer por razões muito pessoais.
Imagino que a generalidade das pessoas não consiga compreender o teu modo de lidar com a situação. Existe uma estranha e mórbida expectativa de que a morte nos provoque crises de choro e dias de depressão, além daquela inconveniente mania de achar que todo falecido se torna ipso facto uma pessoa de bem.
Júlia melhorou. Grato pela lembrança.
Quem esse ex-sujeito, afinal. Você pode revelar? Todos estamos curiosos. Até para orar por ele. Ele merece. Não acha?
Oi, Yúdice,
Embora tenha certeza de que vc entendeu o que quis dizer, só quero deixar bem claro que, com relação às pessoas que amo, que me são caras, a morte é sim algo que me apavora. Sinceramente, evito até pensar! Acho, inclusive, que não tenho estrutura suficiente para lidar com isso.
Minha "indiferença" se dá àquelas pessoas que, veja bem, tb foram indiferentes em vida! Como vc pontuou, para mim, realmente, a morte não serve para tornar ninguém em uma pessoa de bem.
É isso!
Ah, que bom que Julinha está bem! Que os bons ventos se mantenham por mais tempo dessa vez!
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