A legítima defesa é um instituto que o Direito Penal concebeu em reconhecimento ao instinto de conservação, que é inerente a todos os animais, e também em reconhecimento ao fato de que, mesmo em sociedades altamente desenvolvidas e de serviços públicos eficientes, não seria possível assegurar proteção infalível ao cidadão, 24 horas por dia. Sempre haverá um momento em que ele estará vulnerável. Em âmbito doméstico, isso é mais provável. Assim, quando o indivíduo está sofrendo ou na iminência de sofrer uma agressão injusta (fundamento mencionado no art. 25 do Código Penal brasileiro), pode reagir ao ataque, cometendo violência justificada contra o agressor. Desde que haja necessidade e proporcionalidade na reação, a violência pode implicar até na morte do agressor e mesmo assim não haveria crime.
Coisa bem diferente ocorre na hipótese em que uma pessoa agride outra sem que se possa falar em reação atual a um ataque, mas numa conjuntura em que se possa afirmar que o atacante é, na verdade, uma vítima. Podemos pensar em alguém que sofreu bullying por longo tempo e, um dia, enfim, perde as estribeiras e avança contra o seu molestador. Mas como bullying é um conceito relativamente recente, o melhor exemplo é o da violência doméstica.
Imagine então uma mulher que sofreu todo tipo de maus tratos por parte de seu marido, companheiro ou namorado. Fragilizada física e emocionalmente, um dia ela toma a iniciativa da violência, chegando mesmo a assassinar o homem abusador. Ausente a legítima defesa, teremos que investigar eventuais hipóteses de exclusão da culpabilidade. Mas se a mulher for maior de 18 anos, mentalmente capaz e não estiver sob erro ou coação específica para cometer o ato, sua atitude será juridicamente reprovável e ela deverá responder por seu crime. Mas seria o caso de perguntar: essa mulher não mereceria um tratamento diferenciado? Ela não é uma agressora típica, uma causadora de confusão. Ao contrário, agiu na culminância de um contexto de violência no qual ela estava no polo passivo.
Na Austrália, foi criada uma lei que reduz as penas de quem comete crimes em conjunturas como essa, eliminando o risco de prisão perpétua, prevista em seu ordenamento jurídico-penal. Uma lei concebida para proteger as mulheres australianas. Sabe qual foi o resultado? Desde 2005, quando entrou em vigor, a lei já foi aplicada 19 vezes. Em 17 casos, beneficiou homens.
Os promotores de justiça daquele país falam em "desastre total", mas não será isso uma decorrência natural da regra da isonomia, que constitui preceito constitucional fundamental? Se um homem mata porque está sofrendo violência de sua esposa, companheira ou namorada, não merece o mesmo tratamento?
Imagino o que os defensores dos direitos das mulheres pensarão. Mas o questionamento que sugiro não é um que menospreze a regra da igualdade entre os gêneros, derivado da regra ainda mais ampla da igualdade entre todos os seres humanos. O que eu me pergunto é: se estatisticamente os homens matam muito mais do que as mulheres (presumo que a Austrália seja semelhante ao Brasil nesse particular), como é possível que a tal lei beneficie quase que exclusivamente a eles? Será que as mulheres australianas não estão cometendo o chamado "homicídio defensivo"? Ou será que o sistema de justiça criminal, lá, está negando essa classificação para elas e admitindo para eles?
Creio que a investigação de possível distorção deveria passar por aí.
Saiba mais aqui.
2 comentários:
Achei nuito interessante o texto e o assunto que aborda. Mas como diz serão necessários mais dados antes de uma interpretação do facto assinalado. Penso que realmente a cultura da violencia física é masculina e que a mulher continua a ser condicionada para não responder a esse tipo de violencia sob pretexto de uma fragilidade que é mais cultivada do que real.
Estamos de acordo, pelo que vejo, Adilia. Tomara que as coisas melhorem. Os homens precisam entender que o reconhecimento da dignidade da mulher beneficia a todos.
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