Eu nem sabia que em Mosqueiro era possível surfar, mas há alguns anos estava eu calmamente aproveitando as águas da Praia do Farol quando surgiram uns surfistas, que vieram com tudo para cima de nós, banhistas. Pensei que seria uma vez só e me distraí, mas, quando dei por mim, vi a ponta de uma prancha se aproximando velozmente de minha têmpora direita. Afundei o mais rápido que pude. Escapei, sabe-se lá do quê, a tempo de escutar o atleta ponderar, com sua sapiência, que nós deveríamos nadar mais para o lado, porque ele e os amigos estavam surfando.
Sempre penso que Deus sabia o que fazia quando me mandou baixinho, fisicamente insignificante. Fosse eu de outro porte, aquela prancha teria ganhado destino diverso, naquela tarde. Vontade não me faltou.
Agora vejo o caso dessa criança, de apenas 3 anos — a idade de minha filha, que foi atropelada e morta por um jet ski, na badalada e cara praia de Bertioga, litoral paulista. O atropelador era um moleque de 14 anos, que só não consegue ser mais irresponsável do que os adultos que lhe botaram o veículo em mãos. Qual a surpresa? Qualquer pilantra coloca seus delinquentes inimputáveis para dirigir carros. Qual a diferença para jet ski? Só o modo de matar.
Aí a coisa funcionou rápido: os criminosos, cheios da grana, logo arrumaram um competente advogado, que chegou com uma tese defensória prontinha. O garoto não estava pilotando; apenas ligou o jet ski, por curiosidade, e o veículo seguiu em direção à praia. A tese não esqueceu os velhos clichês: quando o sujeito não presta socorro, nunca é por maldade: é porque ficou em choque. Essa é a desculpinha do momento. E enquanto o causídico limpava a sujeira, a família sumia mais do que depressa do luxuoso condomínio onde se hospedava, como relata Leonardo Sakamoto.
Sakamoto, aliás, demonstrando ser um jornalista raro, analisou com maestria a diferença de tratamento entre delinquentes ricos e pobres, além de cobrar dos seus próprios colegas algo que lhes falta na maior parte do tempo.
Já escrevi aqui no blog que não tenho o menor interesse em cair nessa armadilha de promover o ódio entre classes. Houve comentaristas débeis mentais que me acusaram de sugerir impunidade total para os criminosos pobres, ainda que autores dos delitos mais horrendos, ao mesmo tempo em que a condenação dos ricos, pelo simples fato de o serem. Tal hipótese não merece uma linha sequer de atenção, por isso volto a dizer o que realmente defendo: os canalhas devem ser punidos, não importa a sua condição social. O diagnóstico sobre a diferença de tratamento por classes é importante no que tange à investigação, ao processo, à apuração dos fatos. Mas depois que os fatos vêm à tona (quando vêm), puna-se como deve ser. Assim deveria ser este país, mas duvido que algum dia seja.
Enquanto isso, uma família chora o seu luto implacável e eu, como pai de uma menina da mesma idade, só consigo ter empatia com eles. E como poderia ter empatia por quem se acha bom demais para cumprir regras?
PS — Às autoridades marítimas: que tal pararmos de brincadeira? Que tal estabelecermos que o uso de jet ski só pode ser liberado em praias onde haja fiscalização efetiva, humana, para assegurar que a distância mínima de 200 metros será respeitada? Que tal restringir a sua utilização a locais com menor número de banhistas? Que tal aumentar as multas para infrações? Que tal?
4 comentários:
Yúdice, fico aqui pensando: Que tipo de exemplo esses pais deram a esse garoto?
Como assim, provoquei um acidente, vamos fugir???
Não tenho palavras para mostrar minha indignação e dor pela perda dos pais da garotinha...
Yúdice, sendo mãe de uma criança, eu também não consegui deixar de me identificar e comover profundamente com a tragédia dessa família. Te confesso que perdi uma noite inteira de sono, impressionada e pensando na garotinha, vítima desse absurdo. Trabalho numa Vara de infância que apura atos infracionais, e, infelizmente, é comum e assustador ver o quanto alguns pais passam a mão na cabeça dos filhos. E - também sem querer diferenciar classes, mas apenas sendo realista - essa atitude é ainda mais comum em famílias com maior poder aquisitivo. Só posso pensar que tem alguma coisa muito errada na nossa sociedade. Infelizmente.
Aplique-se ao caso do adolescente que dirigia o JET SKI e a seus pais todas as liçoes abaixo lançadas em "Fetichismo de pena mínima" e "Irresignação cadêmica".
Que se dê ao adolescente e mesmo a seus pais "A menor punição" para que assim se alcance a "reeducação do infrator".
Só sejamos rigorosos quando o adolescente do JET SKI estiver dirigindo alopradamente "pela enésima vez".
É isso aí...
Disseste tudo, Ana. Pode ser que o fato tenha ocorrido por uma ação individual do moleque. Mas acho mais fácil que esse tipo de transgressão seja decorrência do seu modo de encarar a vida, a partir da educação recebida.
Mas uma vez a tragédia ocorrida, a lição dos pais foi essa, mesma: dane-se tudo! O negócio é a impunidade. Dificilmente saber o que é pior.
Muita coisa errada, Aline. Senti aflição semelhante, ainda mais por olhar aquela menina e pensar na minha filha.
Das 18h00, você se sente melhor agora?
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