Não sei por qual razão somente agora, mas a imprensa, hoje, resolveu destacar uma decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal de 27 de setembro último. Ao negar habeas corpus a um indivíduo que foi flagrado dirigindo embriagado, no Município mineiro de Araxá, a corte reafirmou a vigência do art. 306 do Código de Trânsito.
Segundo consta, o condutor foi submetido ao teste de alcoolemia, que resultou numa dosagem de 0,90 mg/l de álcool no sangue, muito acima do tolerado, além de apresentar sinais evidentes de embriaguez.
O acusado chegou a ser absolvido em primeira instância, porque o juiz acolheu a tese de que somente se podem incriminar condutas que gerem danos efetivos. O tribunal de justiça, contudo, reformou a decisão e acabou ensejando o remédio heroico, ora denegado. Para negar a ordem, o ministro relator, Ricardo Lewandowski, e seus pares acolheram uma tese extremamente antipática: a admissão dos crimes de perigo abstrato, ou seja, condutas que podem afetar bens jurídicos, passíveis de punição mesmo que não ocorra essa afetação. Há muito tempo que se defende que a criminalização exige perigo concreto, isto é, comprovado, o que se baseia no princípio da lesividade.
Para esclarecer melhor aos leigos: se uma pessoa dirige embriagada, porém ainda assim dentro das regras habituais de circulação, não expôs ninguém concretamente a perigo, sendo este uma especulação fundada num juízo de probabilidade. Não deveria haver responsabilidade penal, portanto. Contudo, sabemos que a criminalização do perigo abstrato é uma das principais estratégias do Direito Penal destes amedrontados tempos em que vivemos, que em nome da segurança admitem qualquer arbitrariedade. Veja-se o que alegou Lewandowski:
"É como o porte de armas. Não é preciso que alguém pratique efetivamente um ilícito com emprego da arma. O simples porte constitui crime de perigo abstrato porque outros bens estão em jogo. O artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro foi uma opção legislativa legítima que tem como objetivo a proteção da segurança da coletividade”.
Ocorre que o porte de armas e muitas outras condutas são igualmente questionadas. Muitos desses tipos penais foram engendrados numa época em que o Brasil não conhecia essa discussão. Outras surgiram depois, porém como exemplos claros de uma legislação responsiva, simbólica e por vezes histérica, que renuncia à racionalidade em nome das famosas respostas à sociedade.
Desta vez, o STF não ajudou. Concordo com punições severas para delitos de trânsito e não tenho nenhuma empatia com quem bebe. Mas Direito não é vale-tudo. Alguém deveria lembrar isso.
Fontes: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/stf-decide-que-dirigir-bebado-e-crime/n1597351753391.html; http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1000891-stf-decide-que-dirigir-embriagado-e-crime.shtml
Um comentário:
Olá, professor.
Gostaria de traçar um paralelo com um fato que reparei, ultimamente, ao enfrentar filas de bancos. Reparei que há uma lei municipal que proíbe o uso de telefones celulares nas dependências dos bancos. Não pesquisei o teor da lei - até porque acho que ela não merece atenção -, mas imagino que sua vigência se dê pelo fato de quadrilhas implantarem peões observadores dentro dos bancos e, ao notarem um indivíduo com grande quantidade de dinheiro, avisavam aos comparsas do lado de fora para que esses efetuassem o roubo.
Essa lei assinada pelo ilustríssimo prefeito impede que qualquer pessoa utilize telefone celular; não se trata apenas de atitudes suspeitas. O segurança faz questão de abordar a pessoa e ordenar que a mesma guarde seu celular, de maneira bem constrangedora.
O STF faz a mesma coisa ao enaltecer os crimes de perigo abstrato. Tenho uma pergunta: para os ministros, quem dirige com certa embriaguez, dentro dos limites de velocidade e regras de trânsito, não vindo a causar mal a ninguém comete o mesmo crime daqueles que dirigem enlouquecidamente a caminhonete do 'papai' depois de tomar uma garrafa inteira de uísque com energético? Tem que ver isso aí...
Postar um comentário