domingo, 6 de novembro de 2011

O filme dos espíritos

Creio que, antes de mais nada, devo esclarecer que sou espírita há 23 anos, portanto falo com empatia e algum conhecimento de causa, de modo que as críticas devem ser encaradas como construtivas.


Vi, hoje, O filme dos espíritos, uma obra inteiramente ficcional que se pretende uma homenagem a O livro dos espíritos, primeira das cinco "Obras Básicas" que compõem a chamada codificação do Espiritismo, feita por Allan Kardec, daí o trocadilho do título. Trata-se da estreia como cineasta de André Marouço (também autor do roteiro), que possui formação em marketing e há mais de seis anos trabalha para a TV Mundo Maior, Mundo Maior Filmes e Mar Revolto Produções, ocupando a condição de diretor geral1. A Mundo Maior Filmes é a produtora da Fundação Espírita Nosso Lar Casas André Luiz2. A codireção é de Michel Dubret, que entendo ser um cineasta independente3.
Como explica o site oficial do filme, ele se originou no Projeto Mundo Maior de Cinema, que "em 2009, recebeu cerca de 100 roteiros de jovens diretores e roteiristas", tendo oito deles sido "selecionados e produzidos". "A etapa final do projeto foi a criação de um roteiro com a incumbência de através da produção de uma nova trama, reunir trechos de alguns dos curtas metragens" (sic). Eis a sinopse oficial:

Em linhas gerais, o filme conta a história de Bruno Alves, que, por volta dos 40 anos, perde a mulher e se vê completamente abalado. A perda do emprego se soma à sua profunda tristeza e o suicídio lhe parece à única saída. Nesse momento, ele entra em contato com O Livro dos Espíritos, obra basilar da doutrina espírita. A partir daí, o protagonista da história começa uma jornada em busca de sua felicidade a partir da compreensão dos mistérios da vida espiritual.  Nesta "viagem" cruza os caminhos dos personagens dos curtas metragens, histórias de superação e de luta em prol da felicidade formam a tônica do filme, e enquanto estas histórias vão sendo apresentadas os grandes enigmas existenciais humanos são explicados, como: De onde viemos e para onde vamos, as relações entre o mundo espiritual e o mundo material, e tantos outros pontos explicáveis através da obra basilar da doutrina espírita O Livro dos Espíritos.

Tomei conhecimento do filme recentemente, quando ele já estava em vias de ser lançado. Interessada, minha esposa começou a ler a respeito, ver os trailers e a campanha publicitária desenvolvida pelo Movimento Espírita. E aí começou a minha desconfiança. Primeiro porque o Espiritismo não é proselitista e nunca teve a intenção de produzir obras artísticas com a finalidade de atrair adeptos. Mas sobretudo porque a publicidade foi feita ao estilo dos espíritas, ou seja:

  • Serviço interno: espíritas de alta posição no movimento, dentre eles palestrantes de renome internacional, que entretanto são completos desconhecidos para o público em geral, conclamavam as pessoas a ver o filme, recurso talvez menos eficiente do que o habitual: vestir o produto em si em cores sedutoras para atrair consumidores.
  • Linguagem de palestra: a linguagem floreada e repleta de apelos emocionais pode funcionar com sua avó, mas duvido que conquiste o público jovem, que no geral é o de maior retorno para a indústria do cinema.
  • O importante é a mensagem: em nome da pureza da doutrina e da redução de custos, que não devem ser desviados da atividade-fim (no caso, o trabalho assistencial das Casas André Luiz), troca-se o profissional, que pode cobrar caro por seus serviços, pelo serviço interno, que atuará por amor à doutrina, mas não necessariamente é a pessoa mais indicada para a tarefa.

Incomodou-me sobretudo o tom algo proselitista, mormente quando o palestrante pede que você, independentemente de sua religião, vá assistir ao filme, porque ele pode mudar a sua vida. O resultado disso é que coloquei todos os pés atrás e fui preparado para o pior. Temi estar diante de uma tragédia nos moldes de Bezerra de Menezes — O diário de um Espírito (dir. Glauber Filho e Joe Pimentel, 2008), que não consegue decidir, sequer, se é um documentário ou uma leitura cinedramatizada. Felizmente, não é o caso. Mas O filme dos espíritos é muito fraco.
Sendo evidentes as boas intenções, é nítido que se trata de uma obra de amadores, palavra aqui empregada em sentido não pejorativo, indicando simplesmente pessoas que acabaram de chegar no ramo e por isso ainda não entendem bem do riscado.
A maioria do elenco, composta por desconhecidos do grande público e que, segundo percebi no site do filme, são atores de teatro, não se destaca. Meu irmão, ator de teatro, explicou que o teatro pede uma interpretação mais grandiosa, para que o ator possa ser visto no palco. Já no cinema, que resultará em uma imagem enorme diante dos seus olhos, a atuação deve ser mais contida, para não acabar exagerada. Quando o ator de teatro não acerta o tom no cinema, pode ficar travado. É o que parece acontecer com o protagonista, Reinaldo Rodrigues, que melhora com o tempo, mas na sua primeira aparição ele (e Briza Menezes, atriz com quem contracena) parece um novato fazendo um teste para algum trabalho na TV.
Os medalhões Nelson Xavier e Ana Rosa, figurinhas carimbadas do cinema espírita, não salvam a iniciativa, mas por culpa da direção, bem entendido.
No entanto, a catástrofe está mesmo nos aspectos técnicos. Como não sou crítico de cinema, não tenho conhecimento para avaliar o filme tecnicamente, por isso indico a crítica abaixo, que em minha condição de leigo ratifico totalmente:

De fato, mesmo um leigo consegue perceber uns enquadramentos estranhos da câmera, sobretudo quando ela começa a deslizar sobre os objetos da sala de Bruno Alves, trêmula, como se apelasse para o recurso de a imagem mostrar o estado de ânimo do personagem. Lá está também a edição fragmentada, com cenas curtíssimas, como nas novelas. Outra característica inconveniente de novelas é colocar personagens demais e não administrar bem a vida de todos, recaindo em situações patéticas, como a do maquiador funerário que some do filme e volta apenas para dizer que vai trabalhar como maquiador numa novela.
No mais, o tom floreado da literatura espírita está lá. E soa falsa, p. ex. no pai do protagonista. É claro que gente simples e sem instrução formal pode ser extremamente sábia. Estamos cheios de exemplos assim. Mas impressiona como aquele humilde construtor de barcos se expressa num português tão impecável. O motivo, contudo, é sabido: as falas dos personagens são nitidamente importadas das obras espíritas. Não parece ter havido maior cuidado em adaptá-las ao perfil do personagem.
Decerto que O filme dos espíritos vai funcionar para os espíritas. Mas estes parecem sempre prontos a responder positivamente às boas iniciativas, ainda que mal executadas. Afinal, o importante é a mensagem... Aliás, navegando pela Internet, observei elogios rasgados ao filme, que só podem ser explicados pelo interesse doutrinário, jamais por um olhar sobre a qualidade da obra. E vi também reações raivosas a críticas — relevando que muitos espíritas ainda não captaram bem a tal mensagem.
Se você tem empatia com o Espiritismo ou ao menos curiosidade, vá assistir. Quem sabe acabe gostando. Mas sugiro ir sem maiores expectativas. No final, penso que minha esposa é que tem razão: esta foi apenas a primeira incursão pelo cinema da equipe realizadora. Que venham novos projetos. Os futuros hão de ser melhores, se nossos amigos espirituais ajudarem!

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