Explico-me melhor: se entendermos que a subtração de um objeto cujo valor seja equivalente a 10 reais, por exemplo, é insignificante, não existe crime de furto e ponto final. Não faz a menor diferença se o sujeito é reincidente, se o furto foi cometido em concurso com outra pessoa ou se o tipo penal em apreço admite alguma qualificadora (como, no furto, situações de escalada ou rompimento de obstáculo). Parece-me bastante elementar que se subtrair 10 reais não é furto (premissa objetiva), não poderia passar a ser somente porque o indivíduo pulou um muro para ter acesso ao dinheiro (circunstância acidental). Esse tipo de interpretação tendenciosa me soa tão inaceitável quanto dizer que uma bicicleta não é um automóvel, a menos que esteja guardada em uma concessionária de automóveis.
A despeito disso, o judiciário sempre foi reticente em aplicar o princípio da insignificância (já abordamos isto algumas vezes, aqui no blog) e, para operacionalizar essa resistência, engendrou algumas condições, às vezes apelando até para o famigerado direito penal do autor. Graças a isso, se eu subtrair uma caneta mixuruca de alguém, não cometo crime, mas um sujeito reincidente que fizesse rigorosamente a mesma coisa poderia responder pelo "crime". Isto é, pelo fato que não é típico, mas será considerado típico por causa da reincidência. Grotesco, não?
Tal interpretação, contudo, tem sido sistematicamente chancelada pelo Supremo Tribunal Federal, que deveria guardar a Constituição. Uma boa explicação para isso é assegurar a punição de pessoas que, embora sem reincidência ou mesmo sem antecedentes criminais, cometem o mesmo fato diversas vezes. É a pergunta que sempre escuto em minhas salas de aula: mas e se o sujeito subtrair 10 reais de diversas pessoas? Para punir a todo custo, transforma-se o atípico em típico, não pelo fato em si, mas pela reiteração. Aviso aos homens comprometidos: cumprimentar a colega bonitona de trabalho não configura adultério. Cumprimentá-la todo dia, entretanto...
Mas eis que, finalmente, acendeu-se uma luz em meio ao nevoeiro, que atende pelo nome de Luís Roberto Barroso. Preocupado com as implicações do caso, o ministro avocou ao Pleno o julgamento de três habeas corpus que discutem a mesma questão e, graças a isso, teremos uma decisão que não será formalmente vinculante, mas que terá efeitos intensos, como bem sabemos.
Por isso, merece encômios a lucidez de Barroso, que ontem proferiu um longo e minucioso voto, sustentando exatamente a linha de raciocínio acima sintetizada. Após o seu voto, o julgamento foi encerrado e deve ser retomado na próxima quarta-feira. Mas é cedo para comemorar: há uma grande chance de o STF, mais uma vez, abandonar o lógica e manter tudo como está, para homenagear o espírito punitivista desenfreado do brasileiro, do qual aquela corte é uma expressão.
Aguardemos o final do julgamento. Sem dúvida, ele será histórico para a questão. Para o bem ou para o mal.
Fontes:
- http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=281650
- http://www.conjur.com.br/2014-dez-10/reincidencia-nao-impedir-aplicacao-bagatela-afirma-barroso
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