domingo, 31 de julho de 2016

Para onde pode ir o abuso de autoridade no direito penal brasileiro

Em sua célebre obra Outsiders, referência obrigatória para todos que se ocupam do tema do comportamento desviante (e, na sequência, criminoso), Howard Becker já ensinava, na distante década de 1960, que as autoridades se ocupam muito mais de impor as regras (e leis) existentes do que em elaborar regras adequadas ao momento vivido pela sociedade; e que nessa tarefa de imposição acabam tão obcecadas pela obediência que chegam a se esquecer das finalidades que levaram à criação da regra. Por outras palavras, você deve obedecer não porque existe alguma razão útil para esta ou aquela conduta, e sim porque eu mandei. Ainda é Becker, na mesma obra histórica, quem aponta que muitos policiais entrevistados consideravam normal usar a violência para impor a obediência.

O problema do excesso de poder é inerente à simples existência do poder. Não diz respeito ao Brasil nem a contextos de democracia suspensa ou combalida. É um problema global e permanente, que se exprime com maior ou menor gravidade, sendo que, em nosso país, com extrema gravidade, por diversos fatores, que se originam na formação do povo brasileiro. Não somos uma sociedade de castas, mas nos comportamos como se fôssemos, com brutal convicção. Como ensina Jessé Souza (A construção social da subcidadania e A ralé brasileira), o Brasil ingressou na modernidade sem assimilar os valores próprios da modernidade, entre os quais a noção liberal de que todo ser humano tem valor simplesmente por ser gente.

Saímos da monarquia para a república, mas mantivemos os mesmos hábitos execráveis. No lugar da nobreza e da aristocracia, colocamos a autoridade pública, instituímos a cultura bacharelesca (os bachareis que até hoje se sentem à vontade para usurpar o título de doutor), perpetuamos o menosprezo pelo trabalho e os estereótipos de dignidade, ou falta dela, baseados na fortuna, na aparência física (especialmente na cor), no sobrenome, dentre outros. Convictos que somos de que a sociedade se divide em cidadãos de primeira categoria, cidadãos de segunda categoria e párias, chegamos ao século XXI ignorando que as revoluções liberais do século XVIII tiveram como um de seus principais ingredientes a colocação do indivíduo a salvo do poder desmesurado do Estado.

Esta longa introdução talvez fosse dispensável, diante da minha convicção de que todos concordarão se eu afirmar que vivemos em um país em que as autoridades violam, dolosa e cotidianamente, os direitos individuais, perpetrando toda sorte de abusos. Supostamente para contê-los, veio a lume a Lei n. 4.898, de 1965, que "regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, nos casos de abuso de autoridade", ainda em vigor, com pouquíssimas modificações.

A aparente ironia de uma lei sobre abuso de autoridade produzida pouco mais de um ano após a eclosão de uma ditadura civil-militar é minimizada quando se percebe que a pena privativa de liberdade cominada a esses crimes seria de no máximo 6 meses de detenção. Mais digna de nota era a pena de perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo de até três anos. Era mais ou menos um regulamentar para não punir, na prática. E assim tem sido. Ao longo do tempo, não foram poucas as vozes que se ergueram para denunciar a desproporcionalidade entre o crime (grave) e a pena (inócua), pugnando por um incremento da punição. Matéria naturalmente inconveniente para os aboletados no poder, os reclamos nunca chegaram a um lugar efetivo.

A matéria foi discutida por ocasião da elaboração do Projeto de Lei do Senado (PLS) n. 236, de 2012, que institui o novo código penal. Mas o trabalho ali sofreu inúmeras críticas da comunidade penalista, inconformada que a preocupação com uma reserva de código (toda a matéria penal deve estar contida no código respectivo) tenha conduzido basicamente a um "copiar + colar": várias leis foram simplesmente compiladas no projeto, sem uma discussão aprofundada sobre o seu conteúdo.

A ainda vigente Lei 4.898 considera abuso de autoridade qualquer atentado às liberdades de locomoção, de consciência e de crença, de exercício do culto religioso e de associação; à inviolabilidade do domicílio; ao sigilo da correspondência; aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto; ao direito de reunião; à incolumidade física do indivíduo; aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional (art. 3º).

Também são previstas as condutas de: "a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder; b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; c) deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa; d) deixar o Juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada; e) levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei; f) cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao seu valor; g) recusar o carcereiro ou agente de autoridade policial recibo de importância recebida a título de carceragem, custas, emolumentos ou de qualquer outra despesa; h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal; i) prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade" (art. 4º).

A lei ainda prevê (art. 6º) que o abuso de autoridade admite três sanções cumulativas, nas esferas administrativa, civil (indenização) e penal. No primeiro caso, vamos da advertência à suspensão do cargo, função ou posto por até 180, com prejuízo da remuneração, e à demissão, inclusive a bem do serviço público.

As sanções penais previstas são de multa e de detenção por 10 dias a 6 meses, além da perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por até 3 anos.

No projeto de novo código penal, a justificativa afirma que "os crimes de abuso de autoridade ganharam sistematização mais moderna, passando a abarcar situações não previstas pela Lei de
Abuso de Autoridade da década de 1960". O tipo é o primeiro do Título XI, que define os crimes contra a Administração Pública. Lembremos que o Código Penal dispõe os tipos penais de forma hierarquizada, de modo que o tema que comparece em primeiro lugar é considerado mais importante. Assim, nos injustos contra a Administração Pública, o peculato perde a primazia para o abuso de autoridade, o que não deixa de ser um sintoma interessante.

A lei projetada tem a seguinte redação:

Art. 281. Constituem abuso de autoridade as seguintes condutas de servidor público, se não forem elemento de crime mais grave: [nota-se que o delito foi tratado como subsidiário, facilitando a aplicação de norma mais grave, se for o caso]
I – ordenar ou executar prisão, fora das hipóteses legais; [hipótese já prevista na lei atual, com a redação simplificada]
II – constranger qualquer pessoa, sob ameaça de prisão ou outro ato administrativo ou judicial, a fazer o que a lei não exige ou deixar de fazer o que a lei não proíbe; [inovação interessante, que institui uma forma peculiar de constrangimento ilegal por ato de autoridade, tendo por meio executivo algo semelhante ao metus publicae potestatis, que conhecemos do crime de excesso de exação]
III – retardar ou deixar de praticar ato, previsto em lei ou fixado em decisão judicial, relacionado à prisão de qualquer pessoa; [esta hipótese melhora e atualiza previsões existentes na lei atual]
IV – deixar de conceder ao preso qualquer direito se atendidas as condições legais para sua concessão; [avançamos aqui, em termos de assegurar direitos dos presos, não se restringindo ao campo das cobranças indevidas]
V – exceder-se, mediante violência ou grave ameaça, sem justa causa, no cumprimento de qualquer diligência; [previsão que, se cumprida, pode evitar os habituais excessos na ação da autoridade, sobretudo a policial, p. ex. a utilização injustificada de força]
VI – submeter qualquer pessoa sob sua custódia ou não, durante diligência ou não, a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; [não basta prevenir a violência: precisamos evitar outras formas de excessos, tais como a exposição à execração pública]
VII – submeter preso ou investigado ao uso de algemas quando ele não oferecer resistência à prisão e não expuser a perigo a integridade física de outrem; [uma previsão específica da hipótese do inciso V, porque o uso abusivo de algemas é recorrente na atividade policial, mesmo após a Súmula Vinculante n. 11]
VIII – invadir, entrar ou permanecer em casa ou estabelecimento alheio, ou em suas dependências, contra a vontade de quem de direito, sem autorização judicial ou fora das hipóteses legais; [o tipo de violação de domicílio deixaria de ter existência autônoma, passando a hipótese de alguns outros delitos, tais como este, o que é uma solução adequada, evitando a criminalização de bagatela; no abuso de autoridade, a violação de domicílio, protegida em nível constitucional, é grave o bastante para autorizar a tipificação]
IX – proceder à obtenção de provas ou fontes de provas destinadas a processo judicial ou administrativo por meios não autorizados em lei; [é a criminalização da obtenção de prova ilícita, outra prática recorrente]
X – expor a intimidade ou a vida privada de qualquer pessoa sem justa causa ou fora das hipóteses legais; [outro abuso recorrente na atividade policial, sobretudo, hoje facilitado pelas tecnologias de informação e de comunicação]
XI – exceder-se sem justa causa no cumprimento de qualquer diligência; [quase a mesma previsão do inciso V, só que agora sem violência; trata-se de tipificação muito aberta, o que é sempre um problema]
XII – coibir, dificultar ou impedir reunião, associação ou agrupamento pacífico de pessoas, injustificadamente, para fim não proibido por lei: [os juristas que projetaram o novo Código Penal se preocuparam em não criminalizar os movimentos sociais e os protestos e aqui encontramos uma indicação disto]
Pena – prisão, de dois a cinco anos. [por princípio, sou contra o punitivismo, mas a pena do abuso de autoridade é inócua, de modo que este incremento é necessário; com a definição deste patamar, o legislador afasta a aplicação de qualquer medida da Lei n. 9.099, de 1995]

A lei projetada também prevê, como efeito da condenação, "a perda do cargo, mandato ou função, quando declarada motivadamente na sentença, independentemente da pena aplicada" (art. 282).

Como não há sinais de que o PLS 236 terá movimento na própria casa legislativa que mandou elaborá-lo, o senador Renan Calheiros protocolou, em 6.7.2016, um projeto versando exclusivamente sobre abuso de autoridade. A primeira reserva que precisamos ter diz respeito às intenções de um homem como Calheiros, multicitado em negociatas várias, inclusive na onipresente "Operação Lava Jato", aquela que divide os brasileiros em homens de bem (você) e corruptos (todos os que discordam de você).

Boa parte do projeto constitui mera repetição de normas que já existem nos códigos penal e de processo penal, tais como direito de representação, retratação, decadência, ação de iniciativa privada subsidiária e efeitos da condenação, exceto no que tange à perda do cargo, mandato ou função, que somente seria possível em caso de reincidência (art. 4º). Aqui a norma se torna muito benéfica para os abusadores. Também há repetição desnecessária no que tange à relativa independência das responsabilidades administrativa, cível e penal, inclusive no que tange à impossibilidade de punição, nos âmbitos cível e administrativo, em caso de sentença penal que tenha reconhecido a prática da conduta sob as circunstâncias que o Código Penal classifica como excludentes da ilicitude (arts. 7º e 8º).

O PLS 280 tenta ser original quando deixa claro que o crime de abuso de autoridade pode ser perpetrado por agentes da Administração Pública, servidores públicos ou a eles equiparados e por membros dos poderes legislativo e judiciário, além do Ministério Público (art. 2º). Fora do Executivo, há quem insista em se considerar "agente político", tanto para satisfazer o próprio ego quanto para escapar à aplicação de certas regras (embora aceitem ser tratados como servidores públicos quando isso implique a percepção de vantagens financeiras ou de outras ordens, como licenças). Com este projeto, essa discussão seria sepultada.

O crime passaria a ser submetido a ação penal pública condicionada à representação do ofendido ou a requisição do Ministro da Justiça (art. 3º).

Há previsão de penas restritivas de direitos (art. 5º), sendo prestação de serviços à comunidade (já existe); suspensão do exercício do cargo, função ou mandato pelo prazo de 1 a 6 meses, com perda dos vencimentos e vantagens (nada de novo); e proibição de exercer funções de natureza policial ou militar no município da culpa, pelo prazo de 1 a 3 anos. Aqui, pela limitação a funções policiais ou militares, a norma também é restritiva. Outro ponto para os abusadores.

No que tange à tipificação, o projeto desmembra as hipóteses de abuso de autoridade, diferenciando as penas e, com isso, voltando a permitir a aplicação, em tese, de institutos despenalizadores da Lei n. 9.099, inclusive mantendo algumas condutas na condição de infrações de menor potencial ofensivo.

Dispenso-me de transcrever as modalidades do crime, porque o projeto é preciosista e cria um elenco desnecessariamente grande de hipóteses. São basicamente as mesmas previsões do PLS 236, porém divididas em muitos mais incisos, que apenas esmiúçam particularidades. Sabemos que leis prolixas e muito específicas podem se tornar uma armadilha para o intérprete. Aos interessados, a íntegra do PLS 280 pode ser acessada neste endereço: http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getPDF.asp?t=196675&tp=1.

De interessante, destaco a previsão do art. 13 do projeto, que tipifica a conduta de "constranger alguém, sob ameaça de prisão, a depor sobre fatos que possam incriminá-lo", equiparando as condutas de "quem constrange a depor, sob ameaça de prisão, pessoa que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, deva guardar segredo" Também me chamou a atenção a tipificação de condutas que retardem a comunicação, ao magistrado, da prisão ou condições da custódia, bem como da omissão do magistrado (art. 17).

Também destaco a tipificação da conduta de manter presos no mesmo espaço homens e mulheres, ou adultos e menores de idade (art. 20).

Algumas previsões parecem, à primeira vista, inconvenientes, como o constrangimento com finalidade sexual (art. 19) e de interceptação de comunicações (art. 22), que podem gerar problemas interpretativos. O velho problema de legislar sobre o que já existe (inflação e superposição legislativa).

O terceiro crime mais grave previsto no PLS 280, com pena de 1 a 5 anos de reclusão, além de multa, consiste em "dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa, sem justa causa fundamentada" (art. 30), algo meio diáfano, que pode ser explorado por advogados competentes, ou seja, uma boa norma para resguardar aqueles que são habitualmente invulneráveis à persecução criminal. Legislando em causa própria? Algo a se pensar, considerando que o tipo mais grave, com pena de 3 a 6 anos, e multa, consiste em "deixar de corrigir, de ofício, erro que sabe existir em processo ou procedimento, quando provocado e tendo competência para fazê-lo". Honestamente, esta conduta me parece menos grave do que várias outras do projeto, mas ganhou a mão mais pesada do legislador. Pense: o juiz pode ser punido por não corrigir, de ofício, erros nos processos que presida. Sintomático.

O segundo crime mais grave, com pena de 2 a 6 anos, e multa, é uma nova previsão de excesso de exação, ou seja, proteção ao dinheiro, não ao ser humano (art. 34). O Brasil não muda, mesmo.

O projeto é tão longo e minudente que precisaríamos passar um pente fino nele, em cotejo com o PLS 236, para definir quais seriam as condutas que realmente deveriam ser mantidas. Minha primeira impressão, passível de convencimento em sentido contrário, não é de receptividade. Sempre me preocupa o complicar para não aplicar. Acho que o PLS 236, ganhando mais um ou dois incisos, poderia dar conta do recado.

Por fim, a justificativa do projeto contém apenas aquelas frases de efeito, típicas de políticos, invocando inclusive a mais conhecida panaceia jurídica (dignidade da pessoa humana). Por enquanto, mantenho os meus pés atrás. Trata-se de um projeto que merece ser amplamente debatido pela sociedade civil, para auxiliar o processo legislativo. Se a lei for debatida apenas no âmbito dos poderes constituídos, não me inspira confiança.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Uma verdade para Isabela

Você conhece o filme Philomena? Lançado em 2013, sob a direção do respeitável cineasta Stephen Frears (de Ligações perigosas), baseia-se na história real de Philomena Lee que, quando adolescente, engravidou e foi, por isso, demonizada pela família. Sua punição foi a internação em uma instituição católica onde a madre superiora, provavelmente imbuída das melhores intenções, vendia os filhos das internas, inclusive para casais de outros países. O filho de Philomena foi vendido para americanos. O filme retrata o seu esforço, cinco décadas mais tarde, para encontrá-lo. Quem a auxilia é um jornalista meio decadente e bastante mal humorado, que aceita a missão a contragosto e quer uma história para a BBC.

Embora definido como "comédia dramática", classificação que não me cai muito bem, Philomena trata de temas difíceis e revoltantes. Qualquer pessoa com sangue nas veias sentirá raiva. E o jornalista Martin Sixsmith sente muita raiva quando a verdade vem à tona. Furioso, quer que as freiras sejam entregues à justiça, a que se opõe Philomena. Ele brada: "As pessoas precisam saber o que aconteceu aqui!" E Philomena, com firmeza e doçura, redargue: "Aconteceu comigo!"

Incrível como essa cena me causou um profundo impacto. Naquele instante, vendo um filme em casa, surgiu em mim uma memória-base (agora estamos em Divertida mente). Aprendi que não devemos usurpar o protagonismo de outras pessoas, nem mesmo em nome de um suposto senso de justiça. Aquilo que, no popular, definimos como "ser mais realista do que o rei". Precisamos respeitar as emoções daqueles que efetivamente viveram os dramas. Por isso, hoje me incomoda profundamente que o monopólio da jurisdição, característica do Estado moderno, implique o confisco do conflito, como muito bem explica, dentre outros, Gabriel Ignacio Anitua em seu excelente História dos pensamentos criminológicos.

Mas se devemos nos esforçar para que os conflitos sejam mantidos sob as rédeas de seus próprios personagens, qual deve ser o nosso papel enquanto observadores externos? Será que, em nome da justiça, devemos intervir no que não é da nossa conta? Para mostrar, talvez, que somos nobres? Isso não seria basicamente o mesmo que fizeram as freiras irlandesas traficantes de crianças, convencidas de que uma criança seria mais feliz com pais adotivos clandestinos do que com a mãe verdadeira, sendo ela uma decaída? Ou não seria a mesma coisa porque, enfim, nós estamos certos?

Toda esta reflexão surgiu de um acontecimento aparentemente prosaico, do qual tomei conhecimento pelo Facebook: a moça que usou aquela rede social para dar uma dica, para uma mulher desconhecida, sobre um possível adultério.


A postagem viralizou. De repente, mulheres na minha linha do tempo passaram a repercutir o alerta em nome, veja só, da necessidade que as mulheres têm de se ajudar, algo que está no discurso do empoderamento feminino contra a violência de gênero, a cultura do estupro, etc. Ou seja, uma agenda importante do feminismo foi suscitada para justificar algo que soa a uma simples delação. Daí eu me pergunto: combater a "traição" se equipara àquelas outras lutas?

Pessoalmente, acho que todo mundo tem direito à verdade. Contudo, não entendo que seja meu o papel de porta-voz. Claro, já escutei que penso assim porque sou homem e, no fundo, minimizo a traição masculina; que estou sendo omisso por empatia com o traidor; que se fosse o contrário eu estaria criticando a mulher, etc. Todo um conjunto de julgamentos baseados em nada de concreto, apenas porque eu havia dito que, se tomasse conhecimento do adultério praticado por um amigo, não o revelaria à parte prejudicada. Motivo alegado na época: se o casal se reconciliar, eu serei o único vilão da história. Um tribunal de exceção julgou todo o meu caráter a partir de uma única alegação.

A bem da autora da postagem, destaco que ela não pediu repercussão de seu texto. Não pediu que a ajudassem na divulgação. Apenas deu o recado e concluiu com um "de nada", denunciando que ela acredita mesmo ter feito algo de valor. Mas o ambiente da Internet se encarregou do resto. Aparentemente, muita gente assumiu a bandeira de chegar à moça que está sendo traída, para que ela possa ser iluminada com a verdade e exercer a sua justiça, que só pode ser a punição do adúltero.

O interessante é que ninguém sabe se existe mesmo um adultério. Quem sabe o fulano não estava apenas contando vantagem para um amigo, a fim de parecer mais macho do que é? Ou se tratou como realidade algo que é mera fantasia? Aqui, cabe todo tipo de especulação. E se ele mantém um relacionamento aberto com a tal Isabela? O fato é que, qualquer hora dessas, alguma Isabela por aí pode enquadrar o namorado, haja ou não motivo para isso. E mesmo que haja, qual é o nosso papel nessa história? O meu? O seu? Nós realmente precisamos fazer essa campanha? Viramos os guardiões da monogamia? Uma versão cibernética das carolas de igreja que defendiam a moral e os bons costumes? No entanto, em nome de nossa honra, não somos as múmias da moral e dos bons costumes e sim os paladinos do empoderamento feminino, então isso justifica tudo. Será?

Pode me acusar de machismo, mas realmente acho que essa atitude é uma variação do punitivismo de esquerda, ou seja, uma deturpação da ideia de que as minorias devem ser auxiliadas a assumir o protagonismo de suas existências. Sempre voltaremos ao mesmo dilema ético: quem nos salva da bondade dos bons? Você quer ser salvo?

De minha parte, só revelaria um adultério mediante três condições: se tivesse plena certeza de sua materialidade, preferencialmente com meios de prova; se tivesse uma relação muito próxima com os dois envolvidos (abstraindo o outro ou outra); e após dar ao "traidor" a oportunidade de resolver a questão pessoalmente, para não confiscar alguma parcela do conflito. Do contrário, estaria interferindo em aspectos de um relacionamento que não posso conhecer, simplesmente porque não faço parte dele. Estaria afetando a vida privada de alguém em nome de sentimentos que, talvez, escavando bem fundo, possam ser descobertos como uma necessidade egoísta de autovalorização e não como um suposto desejo de ajudar alguém.

Enfim, não há respostas simples. Concluo com Renato Russo, na canção "L'avventura":

Nada é fácil
Nada é certo
Não façamos do amor
Algo desonesto

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Saiba mais: http://g1.globo.com/pop-arte/oscar/2014/noticia/2014/02/mulher-que-inspirou-filme-philomena-e-recebida-pelo-papa-francisco.html

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Chegando aos 41

Ainda me soa estranho, mas cheguei aos 41 anos. E, parafraseando Zeca Baleiro, considerando que já tenho uma filha e uma cachorra, reúno motivos para ser "tão feliz quanto os felizes". Embora eu realmente não estivesse em clima de comercial de margarina.

Nunca me importei com o meu aniversário. Mas, ano após ano, escutei que o dia do nosso nascimento é o mais importante do ano. Ela realmente acreditava nisso e repetia esse mantra, na esperança de um dia me convencer. Este ano ela não repetiu, não disse nada, não me acordou cedo, não desejou que eu continuasse sendo "esse bom filho", não lamentou o fato de eu estar a 3.600 Km de casa, etc.

Não acordei triste. Fiquei triste quando me lembraram de sua ausência, agora há 9 meses. Mas toquei adiante, porque, enfim, não temos muita alternativa.

Horas mais tarde, em um lugar de beleza estonteante, em meio a vegetação nativa, encontrei um oratório. Minto: na verdade, eu sabia que ele estava lá e fui até ele. E ali precisei ficar uns minutos. Há muito tempo que não faço mais orações. Não vejo mais sentido nisso. No entanto, naquele momento, fiz o que de mais perto posso chegar de uma oração. É a segunda vez que o faço. Não penso em deuses, santos, anjos ou em qualquer força transcendental. Penso simplesmente nela. Converso com ela: diretamente com minha mãe. Se há mesmo alguém por aí ouvindo, deve ser ela.

Espero que meus pensamentos a tenham alcançado. E que, de algum modo, eu possa receber o seu beijo de boa noite. E seguir meu caminho, trilhado não mais como filho, mas como pai. Que eu possa ser um bom pai.

De permeio, recebi muitas e muitas bênçãos, sendo elas as manifestações carinhosas de diversos amigos, que tornaram meu dia mais alegre. Por tantas coisas belas ditas, o meu agradecimento comovido. Não há como negar que sou privilegiado.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Diário de férias ― Viajar no Brasil

Quando decidimos visitar novamente a nossa querida cidade de Florianópolis, gastei algum tempo escolhendo o melhor voo, ou seja, aquele que durasse menos tempo e que tivesse no máximo uma conexão breve. Assim, escolhi o voo da Gol identificado como G3 6720, que partia de Belém às 6h com destino ao Aeroporto Internacional de Guarulhos, onde deveria chegar às 9h35. Dali, pegaríamos o voo G3 6751, às 10h10, com chegada à capital catarinense às 11h13.

Decolamos em Belém com uma ligeira antecedência, tanto que às 6h estávamos contemplando nossa cidade das alturas. Partida suave, céu claro, tudo ótimo. Tudo daria certo se a grande quantidade de voos em Guarulhos não tivesse gerado uma fila de aeronaves para pousos e decolagens. Não conseguir dar adequada vazão à demanda é um velho problema do maior aeroporto do país, que se orgulha de suas obras e de ser novo todo dia.

Devido a esse problema, nosso pouso foi adiado em 15 minutos, depois mais 10, e mais um tanto, até que nos assustamos. Chamei a comissária de bordo e expliquei o nosso problema. Ela me garantiu que havia outros passageiros na mesma situação e que o problema já era conhecido, de modo que poderiam aguardar um pouco. Garantiu também que a equipe de solo nos ajudaria.


Conseguimos desembarcar às 9h45. Corri até um funcionário da Gol, que me encaminhou para o portão 202, previsto originalmente para a nossa conexão. Mas esse é outro problema de Guarulhos: os portões de embarque mudam o tempo inteiro e o nosso havia mudado para o 218. A distância entre eles é maior do que os números sugerem. Corremos e, quando conseguimos chegar, descobrimos que havia uns poucos passageiros na mesma situação nossa e nenhum deles poderia embarcar. Motivo: impossibilidade de migrar a bagagem.


Fomos orientados a recolher nossa bagagem na esteira, o que nos obrigou a fazer todo o trajeto de volta, eventualmente errando o caminho, o que seria minorado se realmente houvesse algum funcionário da companhia nos auxiliando. Mas a bagagem não aparecia. Acionei um funcionário e ele descobriu que os volumes estavam por ali pelo pátio. Conseguimos recuperar tudo. Aí descobrimos que havíamos sido remanejados para um voo às 16h30. Teríamos que esperar 5 horas. Queixei-me e mencionei que estávamos com uma criança. O funcionário então me disse ― destacando que era em off e que poderia sofrer algum prejuízo se soubessem que ele havia comentado ― que havia um voo às 14h50.


Dali fomos a um tal de check in 36, onde uma jovem conversadora e lenta pelo menos acolheu nossa reivindicação e nos acomodou no voo das 14h50. Detalhe: lado a lado. Ou seja, havia uma fileira inteira livre. Ora, diabos, então por que não nos puseram desde logo nela? Por que em um voo que nos afetaria muito mais? Enfim, conseguimos o voo e recebemos o nosso voucher para almoço, tão minguadinho que nem usamos.


Após a espera, embarcamos. E aí sofremos novo atraso. Motivo: um fulano fez o check in mas não embarcou. Como ele não apareceu, a companhia decidiu retirar a mala dele do avião. Mas era necessário procurá-la no bagageiro. Que tal? Não quiseram atrasar um voo por alguns minutos, em favor de cerca de seis ou sete passageiros, por atraso provocado pelo sistema aéreo. Mas atrasaram outro voo, por causa de um único passageiro, que talvez tenha provocado o incômodo. 


Depois de tudo isso, chegamos ao nosso destino, mais cansados e estressados do que o necessário, mas chegamos. As férias começaram. Espero que agora venham as alegrias. 


Brasileiro sofre.