quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Kids for cash

Os estadunidenses inventaram as chamadas políticas de lei e ordem; e, como expressão aguda delas, a política de tolerância zero, que tantos fãs conquistaram por lá e por aqui, pois em toda parte existem pessoas convictas de sua absoluta moralidade, o que as faz desejar e aprovar as pragas infernais para os outros, sob o pretexto de que cometeram transgressões, crimes, violências.

O desejo da máxima punição, ainda que pelas mínimas faltas, não incide apenas sobre adultos. Também existe uma justiça juvenil ávida por aplicar os mesmos critérios. No ano de 1995, um juiz foi eleito no Condado de Luzerne, Pensilvânia, com a promessa de que conteria a má conduta dos adolescentes. Nomeado para o Juizado de Menores, avisou: se você fizer besteira, vou mandá-lo à prisão. Prometeu e cumpriu. As ruas ficaram tranquilas. As escolas se acalmaram, porque qualquer coisa se tornava assunto para policiais e para agentes de condicional. O juiz foi aclamado por toda a sociedade. Foi reeleito em 2005.

Havia um contexto ali: em 20.4.1999, os adolescentes Eric Harris e Dylan Klebold assassinaram 15 estudantes, e feriram outros 24, no massacre da Columbine High School. Os pacíficos americanos não queriam repetir a experiência que, afinal, não tinha absolutamente nada a ver com sua cultura armamentista. Columbine fora, apenas, fruto da mente doentia de dois bandidos. Era preciso se antecipar ao surgimento de novos sociopatas, por isso juízes implacáveis eram indispensáveis.

O nome do juiz era Mark Ciavarella. Ele mandou mais de 3 mil meninos e meninas para trás das grades, por fatos que podiam ser um ato banal de agressividade, uma resposta mal-criada, uma página supostamente ofensiva na internet. Fazia isso em audiências sumárias, que duravam cerca de um minuto. A estratégia era simples: Ciavarella visitava as escolas e advertia que, em caso de má conduta, mandaria qualquer um para a cadeia. No dia da audiência, ele perguntava ao acusado: Você estava na escola naquele dia? O que eu disse que faria? Então podem levá-lo.

Um registro adicional: as famílias eram coagidas, pelos policiais, a dispensar advogados. Assinavam um termo de renúncia à representação e os adolescentes eram apresentados ao juiz assim, desprotegidos. O resultado só podia ser o que era.

http://kidsforcashthemovie.com/
Ciavarella hoje cumpre pena de 28 anos em uma prisão federal. Seu colega, Michael Conahan, que fora juiz-presidente do centro de detenção juvenil do condado, cumpre pena de 17 anos, também em uma prisão federal. O motivo é esclarecido no documentário Kids for cash (dir. Robert May, 2014), disponível no respeitável catálogo da Netflix.

A questão se origina no sistema americano, que permite a privatização do sistema penitenciário-correicional. Um negócio absolutamente lucrativo, como comprovam inúmeros estudos, denúncias e outros documentários, inclusive o soberbo 13ª Emenda. À vista de que você pode criar empresas para explorar esse ramo de atividade, basta manter as celas cheias e o lucro é garantido.

O documentário elege algumas vítimas do juiz Ciavarella e mostra como a detenção arruinou suas vidas; em alguns casos, no mínimo a retardou drasticamente, roubando-lhes os anos da adolescência.  Mas mostra, também, como o sistema se protege. O que mais me deixou indignado vendo o filme é que, a despeito do apelo midiático do escândalo "kids for cash", para o sistema legal a questão não era de direitos humanos, mas financeira. Ao final, os juízes corruptos foram condenados por corrupção, extorsão, fraude, sonegação tributária e crimes afins. O que menos importava eram os danos irreversíveis perpetrados contra seres humanos.

Também me indignou a absurda convicção dos juízes de que não fizeram nada demais, do ponto de vista humano. Eles se arrependem de haver aceitado dinheiro. Consideram que foi um "erro", mas o tempo todo minimizam tudo. Acham que foi um problema de contabilidade, uma doação, uma comissão, algo legítimo. Insistem, Ciavarella sobretudo, que jamais receberam um único centavo para mandar crianças à prisão. Ele insiste que suas decisões sempre foram tomadas exclusivamente para o bem dos próprios jovens. Porque, afinal, ir para a prisão e ser corrigido pelo Estado amoroso e gentil é a melhor coisa que lhes poderia ter acontecido. Quem estuda criminologia já ouviu falar nas técnicas de neutralização e na ideologia da defesa social. Pois bem, esses dois sujeitos aí acreditam em ambas as coisas, em um nível superlativo.

A cena mais impactante do documentário (ao lado) mostra Ciavarella saindo do tribunal, após sua condenação, e com sua fleuma habitual, falando em "assumir responsabilidades". É quando a mãe de uma de suas vítimas o aborda e pergunta se ele se lembra dela e de seu filho. Ed jamais se recuperou após voltar à liberdade. Matou-se com um tiro no coração. Amanda tem diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático. Charlie, desajustado, envolveu-se em outros problemas e acabou na prisão, como adulto. Os danos vão se avolumando, mas ninguém parece preocupado em responder à altura.

Caso você ainda esteja pensando que vá lá, houve falhas, mas no fundo esses moleques aprontaram alguma e fizeram por merecer, ressalto que a questão não é esta ou aquela pessoa. É a concepção do sistema. Os números mostrados ao final do documentário impressionam:

  • 2 milhões de menores são presos todos os anos nos Estados Unidos, cinco vezes mais do que em qualquer outro país;
  • 95% dos "crimes" que levam a esse encarceramento massivo dizem respeito a atos não violentos;
  • os Estados Unidos gastam, por ano, 10.500 dólares por criança na escola, mas são 88 mil dólares nas casas de correção (a revelar a lucratividade da empreitada);
  • 66% dos egressos do sistema juvenil abandonam os estudos (demonstrando a desgraça social provocada por essa máquina de moer gente).
Portanto, antes de pensar se o moleque aprontou, devemos nos perguntar se o modo como tratamos as faltas da juventude deve mesmo envolver prisão e degradação. Que futuro queremos?

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Conversando sobre cidadania e polícia

Hoje foi uma ocasião profundamente gratificante para mim. Na segunda noite da XVII Semana Jurídica do CESUPA, participei com o minicurso "Manifestações sociais e intervenção policial". O evento nasceu do meu inconformismo com o excesso de arbitrariedade que tem permeado a atuação das polícias pelo país afora, nessa longa trajetória de manifestações públicas que têm ocorrido, nos últimos anos, pelos mais variados motivos.

Vendo o abuso recrudescer, ante a omissão criminosa das autoridades e a concordância, às vezes implícita, às vezes psicopática de expressiva parcela da sociedade, senti que tínhamos o compromisso de  conversar sobre isso com os nossos alunos, já que o projeto político-pedagógico de nosso curso está assentado sobre o eixo dos direitos humanos e porque precisamos formar não apenas profissionais, mas acima de tudo cidadãos.

Mas o evento me trouxe também emoções muito pessoais. Afinal, dividi o tempo com duas ex-alunas extremamente queridas, hoje profissionais valorosas. Lembrei-me delas em sala de aula, tão tímidas, e vendo-as hoje, tão seguras, tão articuladas em suas falas, com tanto conhecimento apropriado, eu realmente me emocionei. A sensação é única.


Nossa noite começou com Vitória Monteiro, integrante do Grupo Cabano de Criminologia, que foi minha monitora e que orientei em sua monografia, sob o tema "A ilegitimidade da criminalização dos protestos no Brasil: uma análise sobre a repressão criminal nas manifestações de junho de 2013 à luz da Criminologia Crítica" (2015), hoje nossa aluna da pós-graduação em ciências criminais, que vem aprofundando suas pesquisas no campo da ação política popular e, graças a isso, nos proporcionou uma importante visão sobre como as manifestações sociais são essenciais para a existência de democracia.


A segunda a falar foi Verena Mendonça, que orientei em sua monografia sob o tema "A aplicação extensiva das penas alternativas como forma de melhorar a situação prisional brasileira" (2012), hoje engajada na docência e que nos trouxe uma visão desenvolvida em sua pesquisa no mestrado, destinada a compreender, justamente, a instituição Polícia Militar, inclusive investigando a autopercepção da tropa.


Fui o terceiro a falar e me concentrei nos aspectos constitucionais que fazem do Brasil, segundo consta, um Estado democrático de Direito, em sua oposição ao Estado de polícia, ora fortemente em expansão. Usei como estratégia a exibição de vídeos sobre ações policiais reais e recentes, para confrontá-las com os mandamentos constitucionais. Mas não com uma perspectiva de demonização da Polícia Militar, porque cada vez mais defendo a necessidade de trazer essa instituição para os debates sobre conquista da cidadania. E aí apresentamos o nosso trunfo.


O Cabo PM Luiz Fernando Passinho, coordenador geral da Associação de Defesa dos Direitos dos Policiais Militares do Estado do Pará, abriu os meus olhos e, claramente, também os dos alunos, sobre aspectos que nunca passaram por nossas cabeças. Com sua visão interna da questão e grande conhecimento dos problemas relativos à segurança pública, Passinho nos falou sobre a exclusão de que padecem os policiais, também eles recrutados entre a juventude negra da periferia, que acabam se tornando algozes de seus pares, tragados por um sistema impiedoso que não os reconhece como sujeitos de direitos. As reflexões que ele nos trouxe quebraram paradigmas.


Necessário registrar um agradecimento especial aos nossos alunos, que aguentaram uma apresentação que extrapolou o horário e, mesmo assim, alguns ainda ficaram mais um pouco para debater. Os questionamentos, dirigidos todos ao nosso convidado Passinho (o que considerei excelente: os alunos não desperdiçaram a oportunidade), permitiram um diálogo pautado na empatia, que é a base para a construção de relações solidárias. Com isso, nosso minicurso alcançou os objetivos que tínhamos. Só posso desejar que os alunos tenham gostado como nós.