Tenho escutado com alguma frequência, por parte de estudiosos de viés crítico, que os canalhas têm perdido a vergonha. Com efeito, foi-se o tempo em que as pessoas tentavam disfarçar a canalhice, a maldade, a burrice, o preconceito e outras vilanias. Agora está na moda mostrar tudo isso, porque você se alinha ao "pensamento" e ao sentimento reinantes no país.
Começou a repercutir na internet o anúncio de um seminário a ser realizado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em 15.9.2017, sob o tema "Segurança pública como direito fundamental". Basta o título para entendermos a proposta: o negócio é parar com esse papo de direitos humanos, porque o direito fundamental que realmente interessa é o tal à segurança. O resto é balela de intelectualoides esquerdistas.
Como não se deve acreditar no que se vê na internet, dei-me ao trabalho de acessar o sítio do MPRJ. Naveguei por ele e encontrei o link "Eventos". Clicando nele, fui redirecionado a uma página contendo quatro atividades, datadas para julho e agosto. Nada sobre setembro, nada sobre o deboche aí em cima. Mas é importante ressaltar, em favor daquela instituição, que as pautas confirmadas envolvem questões técnicas sobre obras públicas, uma audiência pública sobre segurança e os dois eventos de agosto são relacionados à justiça restaurativa: um com o belo tema "Perdão e resiliência" e o outro é um relato de experiência da Promotoria de Justiça de Petrópolis sobre álcool e outras drogas.
Importante ressaltar, portanto, que há trabalho sério e honesto sendo realizado no MPRJ. Nem tudo está perdido. Mas voltando ao tal seminário, não encontrei nada sobre ele no sítio institucional, por isso decidi dar uma googlada. Obtive alguns resultados, inclusive estudos acadêmicos, mas simplesmente não surgiu nada sobre o tal seminário. Observei, então, um selo com a legenda "Movimento de Combate à Impunidade". Procurei por ele e encontrei uma página do Facebook, que se apresenta assim: "Cansados de ver a impunidade que impera e que traz enorme desânimo aos cidadãos do Brasil, Juízes e Membros do MP se uniram para debater e reagir."
Nessa página, contudo, também não há qualquer alusão ao seminário. Em consequência, sou forçado a duvidar da veracidade da iniciativa, apesar de algumas pessoas respeitáveis, como o criminólogo Pedro Abramovay, estarem registrando seus protestos.
Eu teria algumas coisas a dizer, afinal, se por um lado há alguma sutileza em discursos do tipo "direito penal da vítima", por outro causa perplexidade ver subtemas como "Desencarceramento mata" e "Bandidolatria e democídio", que são absurdos tão escandalosos que, honestamente, me puseram incrédulo desde que vi o tal prospecto pela primeira vez. Seria o alinhamento descarado de uma agência de segurança pública à mais deliberada violência institucional contra direitos fundamentais. Seria o MP capaz disso?
Seria, sim. Nós todos sabemos que seria. As agências de segurança pública, em países de democracia combalida como o Brasil, discursam em nome do tal bem comum, que obviamente não existe, da proteção de bens jurídicos e, justamente, dos direitos fundamentais, mas sua praxe é violentamente oposta a todos eles. E nestes tempos em que mergulhamos fundo e convictamente no fascismo e no mais descarado escárnio contra valores humanos, seria uma ocasião oportuna para iniciativas como esta.
Mas para não correr o risco de cair na pegadinha, fico por aqui. Caso esse seminário seja verdadeiro, mesmo, teremos mais o que dizer sobre ele.
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quarta-feira, 19 de julho de 2017
sexta-feira, 5 de setembro de 2014
STF e poder investigatório do Ministério Público
ATRIBUIÇÃO DO PARQUET
2ª Turma do STF reconhece que Ministério Público pode fazer investigações
Por unanimidade, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal concluiu que o Ministério Público pode fazer investigações. O colegiado seguiu o entendimento do relator, ministro Gilmar Mendes, de que o artigo 129 da Constituição Federal, que trata das atribuições do MP, apesar de não falar sobre a investigação pelo órgão, não a veda. E a interpretação o Código de Processo Penal e da Lei Complementar 75/1993, que trata da organização do MP da União, permite concluir que o Ministério Público pode investigar.
O julgamento teve início em outubro de 2013, mas foi interrompido por um pedido de vista apresentado pelo ministro Ricardo Lewandowski logo após o voto do relator. Nesta terça-feira (2/9), o ministro Lewandowski apresentou seu voto acompanhando o relator. Lewandowski explicou que pediu vista dos autos diante da dúvida relativa à nulidade das provas a partir de investigação presidida pelo MP, e decidiu rejeitar o recurso por ter verificado que a matéria não foi tratada pelas instâncias inferiores. Além disso, lembrou que a questão do poder de investigação do Ministério Público está para ser analisada pelo Plenário do STF.
O caso concreto trata de um cirurgião condenado a 1 ano e 2 meses de detenção, em Goiânia, pela prática de homicídio culposo (artigo 121, parágrafo 3º, do Código Penal). A sentença considerou que houve negligência do médico durante uma cirurgia de angioplastia e colocação de prótese vascular, que acabou causando a morte do paciente. A defesa sustentava a nulidade das provas colhidas no curso da investigação presidida pelo Ministério Público de Goiás, que não disporia de poder investigatório.
Investigação com limites
De acordo com o relator, ministro Gilmar Mendes, as regras constitucionais sobre a investigação não impedem que o Ministério Público presida o inquérito ou que faça a própria investigação, desde que essa atuação seja controlada e regulamentada. Da mesma forma, nada impede que o réu colha provas para compor sua defesa no processo criminal.
De acordo com o relator, ministro Gilmar Mendes, as regras constitucionais sobre a investigação não impedem que o Ministério Público presida o inquérito ou que faça a própria investigação, desde que essa atuação seja controlada e regulamentada. Da mesma forma, nada impede que o réu colha provas para compor sua defesa no processo criminal.
Em seu voto, Gilmar afirma que o artigo 129 da Constituição Federal, que trata das atribuições do MP, apesar de não falar sobre a investigação pelo órgão, não a veda. E a interpretação o Código de Processo Penal e da Lei Complementar 75/1993, que trata da organização do MP da União, permite concluir que o Ministério Público pode investigar.
“Considerando o poder-dever conferido ao Ministério Público na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (artigo 127 da Constituição), afigura-me indissociável às suas funções relativa autonomia para colheita de elementos de prova como, de fato, lhe confere a legislação infraconstitucional”, escreveu o ministro em seu voto.
Controle judicial
O ministro rebateu também o argumento de que a investigação pelo MP causaria um desequilíbrio entre acusação e defesa. Para Gilmar Mendes a investigação pelo MP não desequilibra o jogo, pois sempre estará sujeita ao controle judicial “simultâneo ou posterior”. Isso decorre, segundo o ministro, do fato de ser “ínsito ao sistema dialético do processo” a possibilidade da a parte colher provas para instruir a própria defesa. “Ipso facto, não poderia ser diferente com relação ao MP.”
O ministro rebateu também o argumento de que a investigação pelo MP causaria um desequilíbrio entre acusação e defesa. Para Gilmar Mendes a investigação pelo MP não desequilibra o jogo, pois sempre estará sujeita ao controle judicial “simultâneo ou posterior”. Isso decorre, segundo o ministro, do fato de ser “ínsito ao sistema dialético do processo” a possibilidade da a parte colher provas para instruir a própria defesa. “Ipso facto, não poderia ser diferente com relação ao MP.”
O relator explica, ainda, que a investigação não é atividade exclusiva da polícia judiciária, e o raciocínio oposto impediria que outras instituições fiquem impossibilitadas de promover investigações. No entanto, afirma Gilmar Mendes, o poder de investigação do MP não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita, sem controle, pois isso representa agressão a direitos fundamentais.
Atuação subsidiária
Gilmar Mendes disse que a atuação deve ser subsidiária, ocorrendo apenas nos casos em que não for possível ou recomendável que a investigação seja feita pela polícia judiciária. O órgão só deve ser acionado nos casos em que a polícia não puder investigar, ou quando não for “recomendável” sua atuação no caso. Exemplos citados por Gilmar Mendes são apurações de lesão ao patrimônio público, de excessos cometidos por policiais (como abuso de poder, tortura ou corrupção) ou de omissão da polícia.
Gilmar Mendes disse que a atuação deve ser subsidiária, ocorrendo apenas nos casos em que não for possível ou recomendável que a investigação seja feita pela polícia judiciária. O órgão só deve ser acionado nos casos em que a polícia não puder investigar, ou quando não for “recomendável” sua atuação no caso. Exemplos citados por Gilmar Mendes são apurações de lesão ao patrimônio público, de excessos cometidos por policiais (como abuso de poder, tortura ou corrupção) ou de omissão da polícia.
O ministro ainda sugere que uma regulamentação da investigação pelo MP deve obrigar o órgão a formalizar o ato investigativo; comunicar formalmente, assim que iniciadas as apurações, o procurador-chefe ou procurador-geral; numerar os autos de procedimentos investigatórios, para que haja controle; publicidade de todos os atos; formalização de todos os atos; assegurar a ampla defesa, entre outros. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2014-set-04/turma-stf-reconhece-ministerio-publico-investigar
quinta-feira, 30 de janeiro de 2014
Quem é o humorista, afinal?
Longe de mim falar do que não sei e julgar o caráter de pessoas que nem conheço, mas meu primeiro impulso, ao saber que o Ministério Público de São Paulo vai apurar se o canal Porta dos Fundos violou direitos difusos de cidadãos cristãos por causa de seu vídeo "Especial de Natal", foi pensar: será que não há nada mais importante para o MP paulista fazer? Lá não tem improbidade administrativa, crime organizado, PCC, estoque de processos colossal, essas coisas em que vale mais a pena investir tempo?
Ora, eu sou um cidadão cristão. E não me senti minimamente ofendido, muito menos reduzido em meus direitos, difusos, confusos ou de outra ordem, por causa do vídeo. Muito ao contrário, eu me acabei de rir e considerei um dos melhores trabalhos da equipe, à altura de uma data especial. Achei que eles tinham voltado aos bons tempos.
Além do mais, a provocação ao MP padece de um vício de origem, qual seja a assinatura do deputado e pastor Marcos Feliciano, esta criatura odiada pela expressiva maioria da população brasileira (ou então os seus asseclas são muito tímidos, porque ninguém fora da igreja dele fala a seu respeito senão para repudiar seus sucessivos desatinos). Claro que não é por ser, o representante, uma pessoa odiosa e sem credibilidade que o MP deveria rechaçar suas pretensões, mas devido ao ódio que o mesmo nutre pelos comediantes, com os quais já teve outros embates. Aliás, a trupe já gravou o vídeo "Deputado", inspirado justamente em seu inimigo público n. 1. O fato é notório.
Parece bastante claro que, sem apoio popular, o deputado pretende atingir financeiramente a produtora dos comediantes, ou eles individualmente, e para não ser acusado de locupletamento, quer que o dinheiro vá para os fundos de direitos difusos. O objetivo é dificultar a vida dos inimigos, não defender qualquer causa justa. Até porque, se fosse mesmo para lutar por causas justas, o deputado pastor poderia começar explicando aquele outro vídeo famoso do YouTube, no qual aparece dizendo que os fieis devem entregar à igreja o cartão de crédito e a senha, pois senão depois Deus não vai conceder nenhuma graça e ele não poderá reclamar!
Isso aí não viola nenhum direito cristão, não? Gostaria que o MP paulista me respondesse. E se a pergunta for muito difícil e ele mesmo não saiba responder, poderia começar me dizendo qual crime em tese haveria no tal vídeo, para justificar o encaminhamento do caso à Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância.
Intolerância. Seria cômico se não fosse trágico. Numa hora dessas não aparece um procurador ou promotor de justiça que, invocando a prerrogativa de independência funcional, prevista em lei, mande essa representação para o quinto dos infernos, que é o seu lugar, inclusive de origem. Palhaçada.
Ora, eu sou um cidadão cristão. E não me senti minimamente ofendido, muito menos reduzido em meus direitos, difusos, confusos ou de outra ordem, por causa do vídeo. Muito ao contrário, eu me acabei de rir e considerei um dos melhores trabalhos da equipe, à altura de uma data especial. Achei que eles tinham voltado aos bons tempos.
Além do mais, a provocação ao MP padece de um vício de origem, qual seja a assinatura do deputado e pastor Marcos Feliciano, esta criatura odiada pela expressiva maioria da população brasileira (ou então os seus asseclas são muito tímidos, porque ninguém fora da igreja dele fala a seu respeito senão para repudiar seus sucessivos desatinos). Claro que não é por ser, o representante, uma pessoa odiosa e sem credibilidade que o MP deveria rechaçar suas pretensões, mas devido ao ódio que o mesmo nutre pelos comediantes, com os quais já teve outros embates. Aliás, a trupe já gravou o vídeo "Deputado", inspirado justamente em seu inimigo público n. 1. O fato é notório.
Parece bastante claro que, sem apoio popular, o deputado pretende atingir financeiramente a produtora dos comediantes, ou eles individualmente, e para não ser acusado de locupletamento, quer que o dinheiro vá para os fundos de direitos difusos. O objetivo é dificultar a vida dos inimigos, não defender qualquer causa justa. Até porque, se fosse mesmo para lutar por causas justas, o deputado pastor poderia começar explicando aquele outro vídeo famoso do YouTube, no qual aparece dizendo que os fieis devem entregar à igreja o cartão de crédito e a senha, pois senão depois Deus não vai conceder nenhuma graça e ele não poderá reclamar!
Isso aí não viola nenhum direito cristão, não? Gostaria que o MP paulista me respondesse. E se a pergunta for muito difícil e ele mesmo não saiba responder, poderia começar me dizendo qual crime em tese haveria no tal vídeo, para justificar o encaminhamento do caso à Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância.
Intolerância. Seria cômico se não fosse trágico. Numa hora dessas não aparece um procurador ou promotor de justiça que, invocando a prerrogativa de independência funcional, prevista em lei, mande essa representação para o quinto dos infernos, que é o seu lugar, inclusive de origem. Palhaçada.
sexta-feira, 20 de setembro de 2013
Contra a pederastia — o tipo penal, bem entendido
No mês de agosto, durante as aulas iniciais que ministrei para minhas novas turmas de Direito Penal I, mencionei o crime de pederastia, como exemplo das escolhas ardilosas que o legislador faz, na hora de decidir o que deve ser crime. Acabo de tomar conhecimento de que a Procuradoria-Geral da República concorda comigo:
A Procuradoria-Geral da República ajuizou, no Supremo Tribunal Federal, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 291, na qual questiona a constitucionalidade do artigo 235 do Código Penal Militar, que tipifica como crime a “pederastia ou outro ato de libidinagem” em lugar sujeito a administração militar. O dispositivo, segundo a PGR, viola os princípios da isonomia, da liberdade, da dignidade da pessoa humana, da pluralidade e do direito à privacidade.
A PGR afirma que, a partir da Constituição Federal de 1988, não há fundamento “que sustente a permanência do crime de pederastia no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que é nitidamente discriminatório ao se dirigir e buscar punir identidades específicas, sem qualquer razão fática ou lógica para tal distinção”. O crime estaria inserido num contexto histórico de “criminalização da homossexualidade enquanto prática imoral, socialmente indesejável e atentatória contra os bons costumes”, visão que não mais se sustenta internacionalmente.
Discriminação
A norma do artigo 235 do Código Penal Militar, que criminaliza o militar que praticar ou permitir que com ele se pratique “ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”, sujeitando-o à pena de detenção de seis meses a um ano, foi, de acordo com a PGR, criada no contexto histórico de um regime militar ditatorial, e escancara visões de um momento político autoritário e pouco aberto às diferenças e à exposição delas. Os termos “pederastia” e “homossexual ou não”, portanto, teriam viés totalizante e antiplural.
Para corroborar a argumentação, a Procuradoria remete à exposição de motivos do Código Penal Militar para incluir entre os crimes sexuais a “nova figura” da pederastia: “É a maneira de tornar mais severa a repressão contra o mal, onde os regulamentos disciplinares se revelarem insuficientes”, diz o texto. A PGR sustenta que a discriminação é explícita, e, mesmo com a retirada dos termos “pederastia” e “homossexual”, sua aplicação continuará afetando primordial e intencionalmente os homossexuais. Uma vez que a grande maioria do contingente das Forças Armadas é masculina, e havendo ambientes estritamente masculinos, “os heterossexuais, em tese, não seriam atingidos pela norma de austeridade sexual”.
Liberdade sexual
Além do aspecto discriminatório, a Procuradoria aponta que a norma tem o objetivo de limitar a liberdade sexual dos militares. Finalmente, a PGR diz que, em qualquer ambiente de trabalho, os atos inapropriados são punidos. No caso, porém, o Código Penal Militar utiliza o Direito Penal, “cujo princípio é o da intervenção mínima”, para reprimir “o que é considerado inapropriado em algumas situações”. O que seria passível de punição, assim, seria o assédio sexual, de acordo com a PGR. “Não pode haver criminalização do exercício pleno da sexualidade consensual entre dois adultos, ainda mais quando os indivíduos não estejam exercendo qualquer função”.
Assim, a PGR pede a concessão de medida cautelar para suspender a eficácia do artigo 235 do Código Penal Militar, até o julgamento definitivo da arguição. No mérito, pede que seja declarada a não recepção do dispositivo pela Constituição de 1988. O relator da ADPF é o ministro Luís Roberto Barroso. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.
Revista Consultor Jurídico, 19 de setembro de 2013
Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-set-19/pgr-fim-criminalizacao-pratica-sexual-area-militar
Algo mais poderia ser dito sobre a questão. Embora o penúltimo parágrafo mencione o princípio da intervenção mínima, a argumentação segue em termos de proteger a liberdade de autodeterminação: o indivíduo tem o direito de conduzir sua vida de acordo com suas preferências, se isso não implica em danos a terceiros. Mas a intervenção mínima conduz a uma outra observação: a de que não existe a menor necessidade de intervenção penal sobre essa matéria.
Com efeito, se pensarmos que atos sexuais (independentemente do sexo dos envolvidos) praticados dentro de unidades militares podem comprometer o serviço e conduzir ao descrédito social uma instituição que depende bastante de sua honorabilidade, ainda assim podemos afirmar que o modo de reprimir ou prevenir esse tipo de comportamento não precisa ser através de intervenção penal, porquanto há outros modos eficientes de fazê-lo. Para os militares, a responsabilização disciplinar é particularmente grave. Crime para quê? Para gerar efeitos estigmatizantes, claro.
Andou bem a PGR. Pena que seja uma medida pontual. O país realmente precisa é de uma reforma geral de sua legislação, que inspire uma nova mentalidade entre os brasileiros.
A Procuradoria-Geral da República ajuizou, no Supremo Tribunal Federal, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 291, na qual questiona a constitucionalidade do artigo 235 do Código Penal Militar, que tipifica como crime a “pederastia ou outro ato de libidinagem” em lugar sujeito a administração militar. O dispositivo, segundo a PGR, viola os princípios da isonomia, da liberdade, da dignidade da pessoa humana, da pluralidade e do direito à privacidade.
A PGR afirma que, a partir da Constituição Federal de 1988, não há fundamento “que sustente a permanência do crime de pederastia no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que é nitidamente discriminatório ao se dirigir e buscar punir identidades específicas, sem qualquer razão fática ou lógica para tal distinção”. O crime estaria inserido num contexto histórico de “criminalização da homossexualidade enquanto prática imoral, socialmente indesejável e atentatória contra os bons costumes”, visão que não mais se sustenta internacionalmente.
Discriminação
A norma do artigo 235 do Código Penal Militar, que criminaliza o militar que praticar ou permitir que com ele se pratique “ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”, sujeitando-o à pena de detenção de seis meses a um ano, foi, de acordo com a PGR, criada no contexto histórico de um regime militar ditatorial, e escancara visões de um momento político autoritário e pouco aberto às diferenças e à exposição delas. Os termos “pederastia” e “homossexual ou não”, portanto, teriam viés totalizante e antiplural.
Para corroborar a argumentação, a Procuradoria remete à exposição de motivos do Código Penal Militar para incluir entre os crimes sexuais a “nova figura” da pederastia: “É a maneira de tornar mais severa a repressão contra o mal, onde os regulamentos disciplinares se revelarem insuficientes”, diz o texto. A PGR sustenta que a discriminação é explícita, e, mesmo com a retirada dos termos “pederastia” e “homossexual”, sua aplicação continuará afetando primordial e intencionalmente os homossexuais. Uma vez que a grande maioria do contingente das Forças Armadas é masculina, e havendo ambientes estritamente masculinos, “os heterossexuais, em tese, não seriam atingidos pela norma de austeridade sexual”.
Liberdade sexual
Além do aspecto discriminatório, a Procuradoria aponta que a norma tem o objetivo de limitar a liberdade sexual dos militares. Finalmente, a PGR diz que, em qualquer ambiente de trabalho, os atos inapropriados são punidos. No caso, porém, o Código Penal Militar utiliza o Direito Penal, “cujo princípio é o da intervenção mínima”, para reprimir “o que é considerado inapropriado em algumas situações”. O que seria passível de punição, assim, seria o assédio sexual, de acordo com a PGR. “Não pode haver criminalização do exercício pleno da sexualidade consensual entre dois adultos, ainda mais quando os indivíduos não estejam exercendo qualquer função”.
Assim, a PGR pede a concessão de medida cautelar para suspender a eficácia do artigo 235 do Código Penal Militar, até o julgamento definitivo da arguição. No mérito, pede que seja declarada a não recepção do dispositivo pela Constituição de 1988. O relator da ADPF é o ministro Luís Roberto Barroso. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.
Revista Consultor Jurídico, 19 de setembro de 2013
Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-set-19/pgr-fim-criminalizacao-pratica-sexual-area-militar
Algo mais poderia ser dito sobre a questão. Embora o penúltimo parágrafo mencione o princípio da intervenção mínima, a argumentação segue em termos de proteger a liberdade de autodeterminação: o indivíduo tem o direito de conduzir sua vida de acordo com suas preferências, se isso não implica em danos a terceiros. Mas a intervenção mínima conduz a uma outra observação: a de que não existe a menor necessidade de intervenção penal sobre essa matéria.
Com efeito, se pensarmos que atos sexuais (independentemente do sexo dos envolvidos) praticados dentro de unidades militares podem comprometer o serviço e conduzir ao descrédito social uma instituição que depende bastante de sua honorabilidade, ainda assim podemos afirmar que o modo de reprimir ou prevenir esse tipo de comportamento não precisa ser através de intervenção penal, porquanto há outros modos eficientes de fazê-lo. Para os militares, a responsabilização disciplinar é particularmente grave. Crime para quê? Para gerar efeitos estigmatizantes, claro.
Andou bem a PGR. Pena que seja uma medida pontual. O país realmente precisa é de uma reforma geral de sua legislação, que inspire uma nova mentalidade entre os brasileiros.
segunda-feira, 8 de julho de 2013
O que está faltando?
'Domínio do fato' poderá punir mão de obra escrava
Ministério Público do Trabalho defende que teoria do mensalão seja usada contra empresas
08 de julho de 2013 | 2h 07
Fernando Gallo - O Estado de S.Paulo
Assim que for consolidado o julgamento do mensalão, no Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público do Trabalho vai utilizar a teoria do domínio do fato para buscar a responsabilização judicial de empresas que utilizam mão de obra escrava.
Na mira estão empresas que comandam as respectivas cadeias produtivas, mas terceirizam a produção justamente para tentar se dissociar da responsabilidade da contratação de funcionários que trabalham em condições análogas à da escravidão.
Entre os setores investigados pelos procuradores, e nos quais eles dizem ser comum a prática, estão o da construção civil, o de frigoríficos, o sucroalcooleiro, de fazendas e vestuário. A título de exemplo, só nos últimos dois anos viraram alvo de operações do Ministério Público a construtora MRV, maior parceira do governo federal no programa Minha Casa, Minha Vida, a grife multinacional Zara e o grupo GEP, detentor das marcas de roupas Luigi Bertolli, Cori e Emme.
Todas essas empresas estão no topo de cadeias produtivas nas quais auditores e procuradores do trabalho encontraram o uso de mão de obra escrava durante as operações - jornadas exaustivas de até 16 horas, pagamento por produtividade e moradia precária no mesmo local do trabalho. Todas terceirizavam a produção, subcontratando outras empresas que forneciam a mão de obra e o produto, e todas alegam que não tinham conhecimento das condições a que os fornecedores submetiam funcionários. As empresas sustentam que não podem ser responsabilizadas porque os funcionários não eram seus.
A súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, de 2011, proíbe a terceirização da atividade-fim das empresas. Significa dizer que uma fábrica de sorvete pode terceirizar atividades-meio do trabalho, como o serviço de limpeza, mas não pode terceirizar a produção do sorvete. Contudo, há questionamentos sobre ela no STF, que ainda não pacificou entendimento sobre o assunto.
Coordenador nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho, o procurador Jonas Ratier Moreno refuta a tese das empresas do topo da cadeia em que foi flagrado o trabalho escravo. Ele é um dos entusiastas do uso da teoria do domínio do fato na acusação dessas empresas. "Será mais um material para a gente alegar. Esse julgamento (do mensalão) vem consolidar muitas posições, e principalmente essa. De que a empresa quando assume essa atividade, contrata alguém para produzir esse produto e coloca para vender, ela tem que saber que tem responsabilidade objetiva por esse produto", afirma.
Moreno diz também que as empresas "não podem dar uma de avestruz e não monitorar a cadeia produtiva", e utiliza o exemplo das confecções de roupa. "Pergunta: já que são confecção, onde está a fábrica? Vocês monitoram o produto? Não estão sendo negados direitos? Muitas vezes terceirizam para ter um produto barato. Em que condições se costura uma peça a R$ 0,20? Não pode alegar ignorância."
Amparo. A tese do coordenador encontra eco entre os pares. Chefe da instituição, o procurador-geral do Trabalho, Luís Antônio Camargo, lembra que o Ministério Público do Trabalho já vem, desde meados da década de 1990, buscando a responsabilidade objetiva das empresas do topo das cadeias produtivas, e endossa o uso do domínio do fato como mais um instrumento jurídico para o Ministério Público do Trabalho. "Essa linha de argumentação vem à baila com muita força na medida em que é adotada pelo Supremo Tribunal Federal. Você passa a ter uma jurisprudência muito significativa."
Os procuradores do Trabalho pretendem incentivar colegas de outras áreas a também usarem o instrumento.
A teoria do domínio do fato foi desenvolvida por Hans Welzel em 1939, mas hoje tem em Claus Roxin o seu grande expoente. Mesmo considerando que os avanços teóricos demoram décadas para aportar aqui no Brasil, não pode ser considerada uma novidade de modo algum. Tenho em mãos uma edição do manual de direito penal do bom e velho Damásio de Jesus, edição de 2003, dez anos atrás, que já tratava do tema. E não era a primeira edição a fazê-lo.
Vale lembrar que leis, quando bem elaboradas, são inspiradas em orientações teóricas, mas a lei, em si mesma, não existe para fixar teorias. É o intérprete que, no instante de enfrentar o caso concreto, fará a aplicação da norma de acordo com alguma teoria. Ou ao menos assim deveria ser. Por isso, causa-me surpresa a notícia de que o Ministério Público do Trabalho vai aguardar o desfecho do caso do "mensalão" para, somente então, perseguir a responsabilização de empresas exploradoras de trabalho escravo.
Responsabilização penal ou não penal, pouco importa. A teoria existe e pode ser suscitada como base de argumentação, porque os fatos estão aí, à disposição do intérprete. Ora, convenhamos: se mesmo que não houvesse lei, doutrina, jurisprudência, etc. e tal, o juiz não pode eximir-se de decidir, qual a lógica de se esperar o trânsito em julgado de um processo específico para que o MPT cumpra a sua missão institucional? Só para poder alegar um precedente?
A meu ver, a coisa está mal explicada.
quarta-feira, 3 de julho de 2013
Protesto por melhores condições de trabalho
Enquanto os reacionários continuam dizendo que manifestações são coisa de vagabundo, o mundo segue seu curso e coisas mudam de verdade.
Fiquei impressionado com a atitude dos trabalhadores do Grupo Líder, que cruzaram os braços, interromperam o funcionamento de, ao menos, três de suas lojas mais importantes, com direito à obstrução da via pública em frente (avenidas Visconde de Souza Franco e Augusto Montenegro, além da BR-316). Após as ondas grevistas das décadas de 1970/1980, o trabalhador brasileiro aprendeu a ser submisso, dado o seu pavor de perder o emprego, numa conjuntura tão propícia a isso.
Muitas vezes escutei pessoas dizendo que devíamos valorizar o nosso emprego, porque se você não quer, tem muita gente que quer. E é isso, mesmo: crise econômica, desemprego, necessidades batendo na porta e na cara, o trabalhador se submete a tudo, por mais humilhante que seja. Somente em conjunturas menos opressivas é que se pode conceber uma relação entre capital e trabalho menos aviltante.
Desconheço a real situação dos empregados do Grupo Líder. O que sei, porque vejo, é que os empregados de todas as redes de supermercados da cidade são extremamente sacrificados: trabalham muitas horas por dia, muitos dias por semana e recebem salários baixos. Lidam com o público, escutam desaforo, são obrigados a suportar tudo porque o cliente tem sempre razão e, ainda por cima, sofrem intensas cobranças, seja de produtividade, seja com suspeições sobre o modo como lidam com o patrimônio das empresas, notadamente mercadorias. Não é uma vida nada simples. E a despeito de tantos sacrifícios, a recompensa é pouca.
O fato é que o Ministério Público do Trabalho ajuizou ação civil pública por dano moral coletivo contra o Grupo Líder. Pede 3 milhões de reais como reparação. O réu alega que as acusações são infundadas e se diz até surpreso com o processo. Mas no dia de hoje negociou concessões, prometendo atender 10 das 12 reivindicações constantes da pauta dos trabalhadores. Não foi suficiente: a proposta foi recusada, porque a classe obreira tem duas prioridades sobre as quais nada se prometeu: cumprimento de carga horária de 6 horas diárias e pagamento de tíquete-alimentação. Ou seja, menos trabalho e um pouco mais de dinheiro. As mesmas prioridades de sempre.
Amanhã, os funcionários do Grupo Yamada devem aderir a movimento. Especula-se que as duas outras grandes redes supermercadistas irão atrás, mas por enquanto parece ser apenas boato. Seja como for, o trabalhador voltou a gritar, na rua, para lembrar ao capitalista por qual motivo ele está onde se encontra. E em apoio a esses brasileiros sofridos, vale um trecho do extraordinário poema de Vinícius de Moraes, "O operário em construção":
Fontes:
Fiquei impressionado com a atitude dos trabalhadores do Grupo Líder, que cruzaram os braços, interromperam o funcionamento de, ao menos, três de suas lojas mais importantes, com direito à obstrução da via pública em frente (avenidas Visconde de Souza Franco e Augusto Montenegro, além da BR-316). Após as ondas grevistas das décadas de 1970/1980, o trabalhador brasileiro aprendeu a ser submisso, dado o seu pavor de perder o emprego, numa conjuntura tão propícia a isso.
Muitas vezes escutei pessoas dizendo que devíamos valorizar o nosso emprego, porque se você não quer, tem muita gente que quer. E é isso, mesmo: crise econômica, desemprego, necessidades batendo na porta e na cara, o trabalhador se submete a tudo, por mais humilhante que seja. Somente em conjunturas menos opressivas é que se pode conceber uma relação entre capital e trabalho menos aviltante.
Desconheço a real situação dos empregados do Grupo Líder. O que sei, porque vejo, é que os empregados de todas as redes de supermercados da cidade são extremamente sacrificados: trabalham muitas horas por dia, muitos dias por semana e recebem salários baixos. Lidam com o público, escutam desaforo, são obrigados a suportar tudo porque o cliente tem sempre razão e, ainda por cima, sofrem intensas cobranças, seja de produtividade, seja com suspeições sobre o modo como lidam com o patrimônio das empresas, notadamente mercadorias. Não é uma vida nada simples. E a despeito de tantos sacrifícios, a recompensa é pouca.
O fato é que o Ministério Público do Trabalho ajuizou ação civil pública por dano moral coletivo contra o Grupo Líder. Pede 3 milhões de reais como reparação. O réu alega que as acusações são infundadas e se diz até surpreso com o processo. Mas no dia de hoje negociou concessões, prometendo atender 10 das 12 reivindicações constantes da pauta dos trabalhadores. Não foi suficiente: a proposta foi recusada, porque a classe obreira tem duas prioridades sobre as quais nada se prometeu: cumprimento de carga horária de 6 horas diárias e pagamento de tíquete-alimentação. Ou seja, menos trabalho e um pouco mais de dinheiro. As mesmas prioridades de sempre.
Amanhã, os funcionários do Grupo Yamada devem aderir a movimento. Especula-se que as duas outras grandes redes supermercadistas irão atrás, mas por enquanto parece ser apenas boato. Seja como for, o trabalhador voltou a gritar, na rua, para lembrar ao capitalista por qual motivo ele está onde se encontra. E em apoio a esses brasileiros sofridos, vale um trecho do extraordinário poema de Vinícius de Moraes, "O operário em construção":
(...) Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.
Fontes:
quarta-feira, 19 de junho de 2013
Idosos do Brasil
Dia desses, mencionei o aniversário de minha mãe e uma pessoa (de 68 anos) me perguntou quantos anos ela completaria. Quando informei 71, sua reação foi enfática: "Ah, mas ela é nova!" Achei curioso na hora porque, convenhamos, 71 não é pouco. Contudo, mais de uma pessoa manifestou a mesma opinião quanto à juventude de minha mãe (que não se considera nova). Os tempos são outros, a expectativa de vida aumentou, a maturidade produtiva e saudável dispõe de recursos para durar mais tempo e, além disso, há todo um esforço de respeito e valorização da turma da melhor idade. Ratifico tudo isso, mas daí a dizer que a pessoa é nova, parece haver uma longa distância.
Mas veja que interessante: o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) está propondo que o Estatuto do Idoso seja modificado, a fim de que o conceito legal de idoso passe a abranger pessoas a partir de 65 anos, por considerar os atuais 60 incondizentes com a realidade atual.
Acho a ideia boa, se a mudança da lei não implicar em restrições a direitos, e acho até que os adultos dessa faixa etária podem se sentir valorizados. Afinal, há questões emocionais intensas relacionadas ao tema do envelhecimento.
Este tema me faz recordar um dos maiores exemplos de cinismo deste país. Refiro-me à proposta de emenda constitucional destinada a subir, de 70 para 75 anos, a idade para aposentadoria compulsória no serviço público, ofensivamente apelidada de "PEC da bengala" (PEC 457/2005). Estagnada na Câmara dos Deputados há mais de três anos, é apoiada, p. ex., pelos ministros do Supremo Tribunal Federal. Por sinal, nos últimos meses, as aposentadorias dos ministros Cézar Peluso e Carlos Ayres Britto reacenderam a discussão, por se tratar de juristas com plena capacidade física e mental para o exercício de suas funções.
Enquanto no setor privado a aposentadoria vai-se tornando um sonho cada vez mais distante e improvável, no público há um discurso canalha, que apela à necessidade de "oxigenar" os tribunais. Falo tribunais porque, na verdade, ninguém está preocupado com o serviço público em si. Aqueles que lutam pela manutenção do status quo não estão nem aí se a tia que serve o cafezinho deve ou não ir para casa descansar. Cuida-se de uma medida focada em classes privilegiadas, cujas bem remuneradas carreiras se organizam em regras de promoção e, claro, todos os membros da classe querem chegar ao topo.
Quando escuto esses caras defendendo argumentos supostamente honoráveis para se justificar, tenho vontade de vomitar. Queria perguntar se eles realmente acham que enganam alguém. Eles é que precisam ser oxigenados. Defender reserva de mercado não é resguardar o interesse público.
Para ficar no âmbito dos tribunais, deixo apenas esta provocação: você acha que o STF está melhor com a juventude do Dias Toffoli do que estaria com a experiência do Ayres Britto?
Pense nisso.
Mas veja que interessante: o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) está propondo que o Estatuto do Idoso seja modificado, a fim de que o conceito legal de idoso passe a abranger pessoas a partir de 65 anos, por considerar os atuais 60 incondizentes com a realidade atual.
Acho a ideia boa, se a mudança da lei não implicar em restrições a direitos, e acho até que os adultos dessa faixa etária podem se sentir valorizados. Afinal, há questões emocionais intensas relacionadas ao tema do envelhecimento.
Este tema me faz recordar um dos maiores exemplos de cinismo deste país. Refiro-me à proposta de emenda constitucional destinada a subir, de 70 para 75 anos, a idade para aposentadoria compulsória no serviço público, ofensivamente apelidada de "PEC da bengala" (PEC 457/2005). Estagnada na Câmara dos Deputados há mais de três anos, é apoiada, p. ex., pelos ministros do Supremo Tribunal Federal. Por sinal, nos últimos meses, as aposentadorias dos ministros Cézar Peluso e Carlos Ayres Britto reacenderam a discussão, por se tratar de juristas com plena capacidade física e mental para o exercício de suas funções.
Enquanto no setor privado a aposentadoria vai-se tornando um sonho cada vez mais distante e improvável, no público há um discurso canalha, que apela à necessidade de "oxigenar" os tribunais. Falo tribunais porque, na verdade, ninguém está preocupado com o serviço público em si. Aqueles que lutam pela manutenção do status quo não estão nem aí se a tia que serve o cafezinho deve ou não ir para casa descansar. Cuida-se de uma medida focada em classes privilegiadas, cujas bem remuneradas carreiras se organizam em regras de promoção e, claro, todos os membros da classe querem chegar ao topo.
Quando escuto esses caras defendendo argumentos supostamente honoráveis para se justificar, tenho vontade de vomitar. Queria perguntar se eles realmente acham que enganam alguém. Eles é que precisam ser oxigenados. Defender reserva de mercado não é resguardar o interesse público.
Para ficar no âmbito dos tribunais, deixo apenas esta provocação: você acha que o STF está melhor com a juventude do Dias Toffoli do que estaria com a experiência do Ayres Britto?
Pense nisso.
terça-feira, 23 de outubro de 2012
Capa de hoje
Por onde anda aquela decisão judicial que proibia a veiculação de imagens de cadáveres nos jornais?
Sr. Ministério Público, por favor?
Sr. Ministério Público, por favor?
quinta-feira, 23 de agosto de 2012
Reforma do Código Penal XXVIII: a vez da OAB e outros
Realizada a segunda audiência pública pela comissão do Senado encarregada de analisar o anteprojeto de Código Penal, representantes das instituições participantes divergiram sobre o mérito de algumas proposições, mas falaram a mesma língua num aspecto: é preciso mais tempo para um debate seguro sobre uma lei tão importante, no interesse de toda a sociedade.
A Ordem dos Advogados do Brasil demorou, mas finalmente instituiu uma comissão própria. Pede ao menos 60 dias para fazer uma análise conclusiva. Para o presidente nacional, Ophir Cavalcante Júnior, há preceitos incriminadores vagos e duvidosos, grave desproporcionalidade nas penas e certas matérias reclamam abordagens sociológicas. A tipificação do bullying, p. ex., deve ter um caráter mais pedagógico do que punitivo.
O presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, Fernando Fragoso, defendeu que debater certos temas (citou especificamente o abortamento) pode ser importante para a sociedade brasileira, além de demonstrar preocupação com o aumento de penas e dificultação da progressão de regime, que pode agravar o problema da superpopulação carcerária.
Representante do Conselho Nacional do Ministério Público, Taís Schilling Ferraz mostrou preocupação com a redução da pena para alguns delitos (não nega que é do MP...) e quer sugerir medidas no que tange a crimes contra crianças e adolescentes. Curiosamente, ela afirmou algo que nada tem de novo: a certeza da punição é mais importante do que a quantidade de pena imposta.
As audiências públicas são fundamentais, mas por enquanto só os juristas estão falando. E uma lei não é feita para juristas, e sim para toda a sociedade. É preciso ouvir as razões de todos os segmentos sociais. Leigos ou não, todos têm interesse no resultado desse processo legislativo.
A Ordem dos Advogados do Brasil demorou, mas finalmente instituiu uma comissão própria. Pede ao menos 60 dias para fazer uma análise conclusiva. Para o presidente nacional, Ophir Cavalcante Júnior, há preceitos incriminadores vagos e duvidosos, grave desproporcionalidade nas penas e certas matérias reclamam abordagens sociológicas. A tipificação do bullying, p. ex., deve ter um caráter mais pedagógico do que punitivo.
O presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, Fernando Fragoso, defendeu que debater certos temas (citou especificamente o abortamento) pode ser importante para a sociedade brasileira, além de demonstrar preocupação com o aumento de penas e dificultação da progressão de regime, que pode agravar o problema da superpopulação carcerária.
Representante do Conselho Nacional do Ministério Público, Taís Schilling Ferraz mostrou preocupação com a redução da pena para alguns delitos (não nega que é do MP...) e quer sugerir medidas no que tange a crimes contra crianças e adolescentes. Curiosamente, ela afirmou algo que nada tem de novo: a certeza da punição é mais importante do que a quantidade de pena imposta.
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As audiências públicas são fundamentais, mas por enquanto só os juristas estão falando. E uma lei não é feita para juristas, e sim para toda a sociedade. É preciso ouvir as razões de todos os segmentos sociais. Leigos ou não, todos têm interesse no resultado desse processo legislativo.
quarta-feira, 30 de maio de 2012
Estardalhaço jurídico (parte 2)
O autor da representação contra Márcio Thomaz Bastos, publicada na postagem anterior, é o procurador da República Manoel do Socorro Tavares Pastana, 50, da 4ª Região do Ministério Público Federal (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná). Pastana é paraense, nascido na Ilha do Marajó e teve uma vida de grande pobreza, até dar a guinada através da educação que tanto comove as pessoas em geral, inclusive eu, claro, posto que sou um educador. A tal superação, que lhe rendeu até um prêmio televisivo em 2009.
Ele é elogiado nesta postagem da querida Franssinete Florenzano, que sintetiza o livro autobiográfico do procurador, De faxineiro a Procurador da República.
Pesa contra Pastana, porém, um certo estrelismo que já custou caro, p. ex., ao ex-delegado de Polícia Federal e hoje deputado federal Protógenes Queiroz. Com o tempo, a autoridade, por mais certa que esteja, começa a perder a credibilidade, acusada de agir movida pelo desejo de autopromoção ou, como se convencionou chamar, de holofotes. Em matéria do Consultor Jurídico, ele é citado como alguém que "interpela personalidades de processos sob holofotes", aludindo-se expressamente ao seu esforço por incluir o então presidente Lula como réu no processo do "mensalão".
Estou aqui matutando e uma dúvida me roi: atuando no Rio Grande do Sul, Pastana tem competência funcional para intervir nos dois casos aqui mencionados, que correm no Distrito Federal? Do contrário, qual o seu objetivo fazendo tais manifestações, que obviamente ganham enorme repercussão?
Ao pesquisar na Internet, deparei-me com um blog mencionando haver acusações criminais contra Pastana, a quem se refere como "mais um daqueles que não têm cabaço, mas posa de vestal". Um Demóstenes Torres, portanto. Sei que é complicado verificar a autenticidade dessas informações, mas o blog O Terror do Nordeste, de perfil declaradamente esquerdista, louva-se em uma reportagem do jornal O Liberal de 2003, segundo a qual os servidores da Procuradoria da República do Amapá teriam representado formalmente contra Pastana perante a Procuradoria Geral da República, Tribunal de Contas da União, Corregedoria e Auditoria do Ministério Público da União. Segundo os queixosos, ao tempo em que chefiou aquela unidade, o procurador teria se locupletado do cargo, auferindo benefícios indevidos para si, familiares e amigos.
Convém conhecer bem os personagens dessa trama tão rocambolesca quanto vergonhosa, para não sairmos por aí cheios de razão (para acusar ou defender) quando, na verdade, não sabemos exatamente o que há por baixo dos panos.
Ele é elogiado nesta postagem da querida Franssinete Florenzano, que sintetiza o livro autobiográfico do procurador, De faxineiro a Procurador da República.
Pesa contra Pastana, porém, um certo estrelismo que já custou caro, p. ex., ao ex-delegado de Polícia Federal e hoje deputado federal Protógenes Queiroz. Com o tempo, a autoridade, por mais certa que esteja, começa a perder a credibilidade, acusada de agir movida pelo desejo de autopromoção ou, como se convencionou chamar, de holofotes. Em matéria do Consultor Jurídico, ele é citado como alguém que "interpela personalidades de processos sob holofotes", aludindo-se expressamente ao seu esforço por incluir o então presidente Lula como réu no processo do "mensalão".
Estou aqui matutando e uma dúvida me roi: atuando no Rio Grande do Sul, Pastana tem competência funcional para intervir nos dois casos aqui mencionados, que correm no Distrito Federal? Do contrário, qual o seu objetivo fazendo tais manifestações, que obviamente ganham enorme repercussão?
Ao pesquisar na Internet, deparei-me com um blog mencionando haver acusações criminais contra Pastana, a quem se refere como "mais um daqueles que não têm cabaço, mas posa de vestal". Um Demóstenes Torres, portanto. Sei que é complicado verificar a autenticidade dessas informações, mas o blog O Terror do Nordeste, de perfil declaradamente esquerdista, louva-se em uma reportagem do jornal O Liberal de 2003, segundo a qual os servidores da Procuradoria da República do Amapá teriam representado formalmente contra Pastana perante a Procuradoria Geral da República, Tribunal de Contas da União, Corregedoria e Auditoria do Ministério Público da União. Segundo os queixosos, ao tempo em que chefiou aquela unidade, o procurador teria se locupletado do cargo, auferindo benefícios indevidos para si, familiares e amigos.
Convém conhecer bem os personagens dessa trama tão rocambolesca quanto vergonhosa, para não sairmos por aí cheios de razão (para acusar ou defender) quando, na verdade, não sabemos exatamente o que há por baixo dos panos.
quinta-feira, 10 de maio de 2012
Convicções
Noticia a jornalista Franssinete Florenzano, em seu blog, que o juiz José Jackson Sodré Ferraz, da 3ª Vara do Tribunal do Júri de Belém, autorizou uma mulher a proceder à interrupção da gestação de feto anencéfalo. No curso do processo, porém, a promotora de justiça Rosana Cordovil se manifestou contrariamente, alegando que seu parecer se pautava em suas "convicções religiosas". A informação pode ser confirmada no site do Tribunal de Justiça do Estado.
Quem acompanha o blog já está cansado de saber o que penso a respeito e os meus argumentos. Admito uma verdadeira exaustão em voltar ao mesmo ponto, como se o tema já não tivesse sido tão debatido nos últimos anos. Ao decidir favoravelmente ao pleito, o juiz nada mais fez do que efetivar uma norma que foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal há alguns dias, em julgamento definitivo. Aí vem a promotora, que é sabidamente uma profissional séria e competente, violar os seus deveres de fiscal da lei, porque ao invés de se pronunciar sobre se a lei estava ou não sendo cumprida de forma correta, pautou-se em suas convicções religiosas. Lamentável.
Sei que, ao tomar posse no cargo, o indivíduo jura defender a Constituição e as leis do país. Nunca soube que, no Brasil republicano, alguém jurasse defender, também, o seu próprio credo religioso. Se os dois valores entram em conflito, o agente público deve fazer sua escolha, lembrando que, na ordem jurídica civil, as escusas de consciência são bastante limitadas, em nome do interesse público.
Um médico pode, p. ex., recusar atendimento a um paciente por motivo de foro íntimo, mas não em caso de risco de morte. Ele deve antes tirar o paciente da crise para somente depois transferi-lo a outro profissional. Quem o diz é o próprio Conselho Federal de Medicina, responsável pela elaboração do Código de Ética Médica.
Um cidadão pode alegar convicções religiosas, políticas ou filosóficas para eximir-se do serviço militar obrigatório, como prevê o art. 143 da Constituição de 1988, mas para tanto será obrigado a cumprir um serviço civil alternativo, submetendo-se às exigências da Lei n. 8.239, de 1991. Não basta não estar a fim.
Por conseguinte, entendo que a nobre promotora, sentindo-se afetada em seus valores religiosos, deveria afastar-se do processo, valendo-se da figura da suspeição por foto íntimo. Jamais poderia, entretanto, agir em nome da instituição Ministério Público, fundamentando a sua manifestação em uma orientação religiosa que pertence a ela, não ao órgão, muito menos ao Estado.
Felizmente, o juiz fez o que era certo. Por "certo" não me refiro a autorizar ou proibir a interrupção da gestação; refiro-me a cumprir as leis deste país, como já decidiu o STF. Quem não concordar com isso tem uma última trincheira: lutar para que o Brasil ganhe uma nova Constituição.
Boa sorte.
Quem acompanha o blog já está cansado de saber o que penso a respeito e os meus argumentos. Admito uma verdadeira exaustão em voltar ao mesmo ponto, como se o tema já não tivesse sido tão debatido nos últimos anos. Ao decidir favoravelmente ao pleito, o juiz nada mais fez do que efetivar uma norma que foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal há alguns dias, em julgamento definitivo. Aí vem a promotora, que é sabidamente uma profissional séria e competente, violar os seus deveres de fiscal da lei, porque ao invés de se pronunciar sobre se a lei estava ou não sendo cumprida de forma correta, pautou-se em suas convicções religiosas. Lamentável.
Sei que, ao tomar posse no cargo, o indivíduo jura defender a Constituição e as leis do país. Nunca soube que, no Brasil republicano, alguém jurasse defender, também, o seu próprio credo religioso. Se os dois valores entram em conflito, o agente público deve fazer sua escolha, lembrando que, na ordem jurídica civil, as escusas de consciência são bastante limitadas, em nome do interesse público.
Um médico pode, p. ex., recusar atendimento a um paciente por motivo de foro íntimo, mas não em caso de risco de morte. Ele deve antes tirar o paciente da crise para somente depois transferi-lo a outro profissional. Quem o diz é o próprio Conselho Federal de Medicina, responsável pela elaboração do Código de Ética Médica.
Um cidadão pode alegar convicções religiosas, políticas ou filosóficas para eximir-se do serviço militar obrigatório, como prevê o art. 143 da Constituição de 1988, mas para tanto será obrigado a cumprir um serviço civil alternativo, submetendo-se às exigências da Lei n. 8.239, de 1991. Não basta não estar a fim.
Por conseguinte, entendo que a nobre promotora, sentindo-se afetada em seus valores religiosos, deveria afastar-se do processo, valendo-se da figura da suspeição por foto íntimo. Jamais poderia, entretanto, agir em nome da instituição Ministério Público, fundamentando a sua manifestação em uma orientação religiosa que pertence a ela, não ao órgão, muito menos ao Estado.
Felizmente, o juiz fez o que era certo. Por "certo" não me refiro a autorizar ou proibir a interrupção da gestação; refiro-me a cumprir as leis deste país, como já decidiu o STF. Quem não concordar com isso tem uma última trincheira: lutar para que o Brasil ganhe uma nova Constituição.
Boa sorte.
terça-feira, 29 de novembro de 2011
O sistema jurídico-penal "mais brando do mundo"
Dois sujeitos furtaram uma bicicleta usada e o juiz decidiu aplicar o princípio da insignificância, absolvendo os réus sumariamente. Obviamente, houve recurso do Ministério Público. Posteriormente, ao exarar o seu parecer, o procurador de justiça se pronunciou nestes termos:
Com a devida vênia aos fundamentos garantistas da sentença em exame, não podemos dissociar a ocorrência do fato da ação ativa e consciente de seu autor dentro de qualquer lógica existente. O fato não pode acontecer sem a ação ativa do agente que deseja seu resultado.
Ad argumentandum, de acordo com Bobbio "um sistema geral do garantismo ou, se preferir, a construção das vigas-mestras do Estado de direito que tem por fundamento e por escopo a tutela da liberdade do indivíduo contra as várias formas de exercício arbitrário do poder, particularmente odioso no direito penal", o garantismo é muito bem vindo em ditaduras, o que não é o caso do Brasil que possui o sistema jurídico penal mais brando do mundo.
Como não vivemos numa ditadura, nossa Constituição, mesmo que totalmente retalhada, está em pleno vigor e, principalmente, porque in casu o réu [recorrido] não está sendo vítima de nenhuma forma de exercício arbitrário do poder, não vemos procedência da aplicação ex oficio do garantismo no caso vertente.
(...) Juiz é juiz, promotor é promotor, advogado é advogado. Um diz o Direito, outro defende a sociedade contra os que violam o pacto e o outro defende os que violaram o pacto. O problema surge quando perdemos de vista nosso múnus institucional ou quando esquecemos ou não sabemos quem somos.
O último páragrafo transcrito é explicado, pelo parecerista, em alusão ao fato de que, para o juiz, 10 reais ou uma bicicleta podem não significar nada, mas para uma pessoa "menos afortunada pode significar sua própria subsistência".
O parecer em apreço saiu de uma caneta que conhece Filosofia, por isso imagino que tenha todas as condições de construir um raciocínio razoável. Mas eu realmente não consigo sufragar suas conclusões. De saída, confesso minha absoluta ignorância quanto ao fato de o Brasil possuir o sistema jurídico-penal "mais brando do mundo". Até me sinto no dever de investigar essa questão, sem cuja resposta me sinto amesquinhado em minha carreira docente.
Também me causa espécie a ideia de que o garantismo jurídico (olvidemos um pouco a teoria cunhada por Luigi Ferrajoli e apliquemos o termo no sentido de conjunto de princípios e regras destinados a limitar a incidência do direito penal, pela prevalência dos direitos e liberdades individuais) só é útil, necessário ou admissível em ditaduras. Ora pois, em ditaduras não existe garantismo! Tal perspectiva é sumariamente irreal. A única possibilidade de se instituir mecanismos garantistas é no contexto de uma democracia, justamente onde o parecerista supõe que eles não devem ser aplicados. Resulta daí, segundo penso, que não sobra nenhum espaço para o garantismo.
Incomoda-me particularmente o discurso construído sobre premissas formais, artificiais e nevadas pelo obsoletismo. Veja-se as referências a "pacto", o tal "pacto social", fundamento de teorias como as de Rousseau, Hobbes, Locke e outros, mas que não passa de uma hipótese de controle porquanto nunca aconteceu de fato. Mas é impressionante como existem pessoas que realmente acreditam que, certo dia, os homens (absolutamente livres, não se esqueça), traçaram um diagnóstico preciso de suas dificuldades na vida comunitária e chegaram à conclusão de que precisavam ceder parcelas de seus poderes naturais para um soberano, que os protegeria e conduziria para a felicidade. Então, reuniram-se um dia num grande evento e assinaram o tal contrato social!
Naturalmente, o parecerista sabe que isso não aconteceu, mas escreve como se fosse uma verdade histórica, o que para fins comunicacionais dá no mesmo.
A par disso, há um profundo hermetismo na definição dos papeis sociais do juiz, do promotor de justiça e do advogado. Primeiro, há uma idealização. Segundo, descamba para elucubrações totalmente valorativas, ingênuas (para dizer o mínimo), como se o juiz apenas "dissesse o direito", sem qualquer contaminação de juízos pessoais e como se esse direito proclamado fosse necessariamente bom. Como se o promotor de justiça "defendesse a sociedade" e, pior, como se defender a sociedade implicasse, obrigatoriamente, em acusar e punir condutas tidas por desviadas. E puni-las com o Direito Penal.
Tudo isso parece surreal para mim. Não consigo sequer entender como esse tipo de argumentação ainda pode ser formulado em nossos dias, mas o aludido parecer foi subscrito há quatro meses. Faltando-me bagagem cultural suficiente para enfrentar uma questão assim tormentosa, estou precisando do socorro do André Coelho, do Sandro Simões, do Klelton Mamed, da Ana Cláudia Pinho e de outras pessoas mais inteligentes do que eu, para saber se, afinal, sou eu que estou totalmente por fora.
Com a devida vênia aos fundamentos garantistas da sentença em exame, não podemos dissociar a ocorrência do fato da ação ativa e consciente de seu autor dentro de qualquer lógica existente. O fato não pode acontecer sem a ação ativa do agente que deseja seu resultado.
Ad argumentandum, de acordo com Bobbio "um sistema geral do garantismo ou, se preferir, a construção das vigas-mestras do Estado de direito que tem por fundamento e por escopo a tutela da liberdade do indivíduo contra as várias formas de exercício arbitrário do poder, particularmente odioso no direito penal", o garantismo é muito bem vindo em ditaduras, o que não é o caso do Brasil que possui o sistema jurídico penal mais brando do mundo.
Como não vivemos numa ditadura, nossa Constituição, mesmo que totalmente retalhada, está em pleno vigor e, principalmente, porque in casu o réu [recorrido] não está sendo vítima de nenhuma forma de exercício arbitrário do poder, não vemos procedência da aplicação ex oficio do garantismo no caso vertente.
(...) Juiz é juiz, promotor é promotor, advogado é advogado. Um diz o Direito, outro defende a sociedade contra os que violam o pacto e o outro defende os que violaram o pacto. O problema surge quando perdemos de vista nosso múnus institucional ou quando esquecemos ou não sabemos quem somos.
O último páragrafo transcrito é explicado, pelo parecerista, em alusão ao fato de que, para o juiz, 10 reais ou uma bicicleta podem não significar nada, mas para uma pessoa "menos afortunada pode significar sua própria subsistência".
O parecer em apreço saiu de uma caneta que conhece Filosofia, por isso imagino que tenha todas as condições de construir um raciocínio razoável. Mas eu realmente não consigo sufragar suas conclusões. De saída, confesso minha absoluta ignorância quanto ao fato de o Brasil possuir o sistema jurídico-penal "mais brando do mundo". Até me sinto no dever de investigar essa questão, sem cuja resposta me sinto amesquinhado em minha carreira docente.
Também me causa espécie a ideia de que o garantismo jurídico (olvidemos um pouco a teoria cunhada por Luigi Ferrajoli e apliquemos o termo no sentido de conjunto de princípios e regras destinados a limitar a incidência do direito penal, pela prevalência dos direitos e liberdades individuais) só é útil, necessário ou admissível em ditaduras. Ora pois, em ditaduras não existe garantismo! Tal perspectiva é sumariamente irreal. A única possibilidade de se instituir mecanismos garantistas é no contexto de uma democracia, justamente onde o parecerista supõe que eles não devem ser aplicados. Resulta daí, segundo penso, que não sobra nenhum espaço para o garantismo.
Incomoda-me particularmente o discurso construído sobre premissas formais, artificiais e nevadas pelo obsoletismo. Veja-se as referências a "pacto", o tal "pacto social", fundamento de teorias como as de Rousseau, Hobbes, Locke e outros, mas que não passa de uma hipótese de controle porquanto nunca aconteceu de fato. Mas é impressionante como existem pessoas que realmente acreditam que, certo dia, os homens (absolutamente livres, não se esqueça), traçaram um diagnóstico preciso de suas dificuldades na vida comunitária e chegaram à conclusão de que precisavam ceder parcelas de seus poderes naturais para um soberano, que os protegeria e conduziria para a felicidade. Então, reuniram-se um dia num grande evento e assinaram o tal contrato social!
Naturalmente, o parecerista sabe que isso não aconteceu, mas escreve como se fosse uma verdade histórica, o que para fins comunicacionais dá no mesmo.
A par disso, há um profundo hermetismo na definição dos papeis sociais do juiz, do promotor de justiça e do advogado. Primeiro, há uma idealização. Segundo, descamba para elucubrações totalmente valorativas, ingênuas (para dizer o mínimo), como se o juiz apenas "dissesse o direito", sem qualquer contaminação de juízos pessoais e como se esse direito proclamado fosse necessariamente bom. Como se o promotor de justiça "defendesse a sociedade" e, pior, como se defender a sociedade implicasse, obrigatoriamente, em acusar e punir condutas tidas por desviadas. E puni-las com o Direito Penal.
Tudo isso parece surreal para mim. Não consigo sequer entender como esse tipo de argumentação ainda pode ser formulado em nossos dias, mas o aludido parecer foi subscrito há quatro meses. Faltando-me bagagem cultural suficiente para enfrentar uma questão assim tormentosa, estou precisando do socorro do André Coelho, do Sandro Simões, do Klelton Mamed, da Ana Cláudia Pinho e de outras pessoas mais inteligentes do que eu, para saber se, afinal, sou eu que estou totalmente por fora.
domingo, 16 de outubro de 2011
Notas absurdas
Já me manifestei, aqui no blog e em sala de aula, sobre o caráter abusivo da determinação do promotor de justiça militar Armando Brasil, que determinou a prisão em flagrante de todo médico que se recuse a atender pacientes, seja lá qual for o motivo da recusa. Agindo dessa forma, o membro do Parquet exige dos policiais, que estão na linha de frente, o papel de fazer um juízo preliminar de omissão de socorro criminosa, sem que eles possuam aptidão técnica e competência funcional para fazê-lo. Na dúvida, é óbvio, prenderão quem aparecer na frente, para evitar o risco de responsabilização disciplinar e criminal.
Se é verdade que médicos não têm o poder de decidir quem vive ou morre, também é verdade que o Ministério Público não pode assumir de forma apriorística, acrítica e sem conhecimento dos próprios fatos, que um profissional é criminoso.
Para não deixar dúvida de que o MP anda querendo ser mais realista do que o rei, já se está falando em mudar uma interpretação tradicional e passar a considerar que os médicos, pela simples condição de médicos, são garantidores (conceito técnico do Direito Penal) das pessoas que chegam aos hospitais à procura de atendimento (alô, alunos de Penal I!). Somente assim seria possível imputá-los em homicídio por omissão, em vez de omissão de socorro, simplesmente.
E como ameaça pouca é bobagem, a nota já sugere que o crime seja doloso, para que o homicídio seja qualificado (qual seria a qualificadora, mesmo?) e a pena possa chegar ao patamar máximo, 30 anos. O objetivo é causar efeito, sugerindo ao médico que ele, por uma recusa de atendimento, pode ficar 30 anos preso.
É para apavorar qualquer um, não? Desde que, claro, ignore-se que poucos, raros mesmo, são os juízes que aplicam a pena em seu grau máximo. Salvo aquele nosso conhecido, não é, Antônio Graim Neto?
sábado, 8 de outubro de 2011
Causa e efeito
Sabe o que leva um grupo de alunos a contratar um hacker para ter acesso fraudulento às provas da escola em que estudam e, assim, promover uma grande cola por via virtual?
Medo da prova?
Excesso de rigor dos professores?
Ausência de transparência do processo avaliativo?
O clima tórrido de Manaus?
Nada disso. Pense mais um pouco.
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Pois bem, o que explica uma ação calhorda dessas é a existência de famílias que, em vez de apoiar uma instituição de ensino que deseja manter a sua credibilidade pública e ensinar um pouco de cidadania à classe média alta da cidade (e bem sabemos que "classe média" e "cidadania" são conceitos o mais das vezes incompatíveis, no Brasil), ofendem-se e querer que a escola seja punida.
Não me venham com esse papo de que apenas 15 alunos se locupletaram e todos foram punidos. A redução das férias pode ser uma punição generalizada e vá lá que se rediscuta isso (não conheço o regimento interno da escola). Mas a determinação de que todos se submetam a uma nova prova é imperiosa, já que toda a avaliação foi comprometida. Se alunos inocentes vão pagar a fatura, que cobrem o prejuízo dos únicos e verdadeiros vigaristas: os miseráveis que fraudaram a avaliação, não a escola que se defende.
E o Ministério Público, aparentemente, decidiu criar caso com a escola. No final, quem se ferra é quem tem a razão. Tão Brasil, isso...
Se uma escola não educar, quem educará? As famílias, como se constata mais uma vez, já desistiram desse papel faz tempo.
Medo da prova?
Excesso de rigor dos professores?
Ausência de transparência do processo avaliativo?
O clima tórrido de Manaus?
Nada disso. Pense mais um pouco.
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Pois bem, o que explica uma ação calhorda dessas é a existência de famílias que, em vez de apoiar uma instituição de ensino que deseja manter a sua credibilidade pública e ensinar um pouco de cidadania à classe média alta da cidade (e bem sabemos que "classe média" e "cidadania" são conceitos o mais das vezes incompatíveis, no Brasil), ofendem-se e querer que a escola seja punida.
Não me venham com esse papo de que apenas 15 alunos se locupletaram e todos foram punidos. A redução das férias pode ser uma punição generalizada e vá lá que se rediscuta isso (não conheço o regimento interno da escola). Mas a determinação de que todos se submetam a uma nova prova é imperiosa, já que toda a avaliação foi comprometida. Se alunos inocentes vão pagar a fatura, que cobrem o prejuízo dos únicos e verdadeiros vigaristas: os miseráveis que fraudaram a avaliação, não a escola que se defende.
E o Ministério Público, aparentemente, decidiu criar caso com a escola. No final, quem se ferra é quem tem a razão. Tão Brasil, isso...
Se uma escola não educar, quem educará? As famílias, como se constata mais uma vez, já desistiram desse papel faz tempo.
quarta-feira, 28 de setembro de 2011
O lixo da prefeitura e o lixo da Câmara
Após dois anos, ele, o inominável, aquele que consegue tudo, conseguiu mais uma. Finalmente, aprovou o projeto de lei que entregará à iniciativa privada o recolhimento e o destino do lixo em Belém. Para quem não sabe, essa área, pela imprescindibilidade dos serviços e pelo tamanho extraordinário da tarefa, é uma das maiores fontes de enriquecimento para quem a exerce.
Com menos pruridos do que eu, o Diário do Pará dá nome aos bois e provoca quem deve ser provocado:
Mais um pé de meia assegurado.
Com menos pruridos do que eu, o Diário do Pará dá nome aos bois e provoca quem deve ser provocado:
Mais um pé de meia assegurado.
sábado, 3 de setembro de 2011
Inacreditável, mas verdadeiro
A reportagem da BandNews já estava sendo exibida quando entrei. O tema era a nova lei sobre remição da pena pelo estudo, sobre a qual reproduzi uma reportagem do Consultor Jurídico, em julho. Fiquei escutando enquanto pintava um desenho para Júlia (redescobri o prazer de pintar com giz de cera).
A certa altura, mencionou-se que, antes, o apenado que cometesse falta grave perderia todos os dias remidos. Pela nova lei, a perda incide apenas sobre um terço dos dias remidos pelo estudo. Seguiu-se a manifestação de um promotor de justiça, confortavelmente instalado em sua sala refrigerada, fazendo uma "análise" impressionante. Ele começou reconhecendo o grave problema da superpopulação carcerária brasileira e disse que a solução para ela seria construir mais presídios. Nesse momento, meus sensores ligaram o alarme; parei o giz sobre o papel. A sequência: como o governo não investe na construção de novas penitenciárias, o legislador prefere tomar medidas paliativas (a expressão foi exatamente essa), como a lei em questão.
Não me contive e gritei um "puta que pariu!!!"
Perdão, leitores, não pretendo baixar o nível da postagem. É que eu fiquei desarvorado com a manifestação. Como não estava olhando a TV, não tive como ver o nome do sujeito, nem sei em qual lugar do país ele trabalha. Deve ser São Paulo, porque a grande imprensa só consulta "especialistas" de São Paulo. Mas não posso admitir que um representante de instituição que exerce uma das funções mais importantes e diretas nesse campo, e que supostamente estudou para passar num concurso público, seja capaz de um reducionismo tão estúpido e fora da realidade como esse. Daí o tabuísmo.
Somente por apontar a construção de presídios como solução para a superpopulação carcerária nos faz retroceder muitos anos. Mas ao classificar uma lei que foi discutida em nível técnico, antes de ser aprovada, como uma espécie de mero escapismo, além de ignorar que o legislador brasileiro raramente faz coisa que preste em matéria penal, o sujeito dá a entender que vive num mundo à parte.
Infelizmente, esse mundo não é particular. É um mundo em que o Ministério Público, enquanto instituição, continua a agir como mero acusador e aplica o Direito Penal como medida higienizadora, sem se preocupar com qualquer outro viés que não seja o punitur quia pecatum.
É a Idade Média da execução penal. Sou capaz de citar rapidamente alguns ex-alunos que mereciam um bem remunerado cargo de promotor de justiça muito mais do que esse grande especialista!
A certa altura, mencionou-se que, antes, o apenado que cometesse falta grave perderia todos os dias remidos. Pela nova lei, a perda incide apenas sobre um terço dos dias remidos pelo estudo. Seguiu-se a manifestação de um promotor de justiça, confortavelmente instalado em sua sala refrigerada, fazendo uma "análise" impressionante. Ele começou reconhecendo o grave problema da superpopulação carcerária brasileira e disse que a solução para ela seria construir mais presídios. Nesse momento, meus sensores ligaram o alarme; parei o giz sobre o papel. A sequência: como o governo não investe na construção de novas penitenciárias, o legislador prefere tomar medidas paliativas (a expressão foi exatamente essa), como a lei em questão.
Não me contive e gritei um "puta que pariu!!!"
Perdão, leitores, não pretendo baixar o nível da postagem. É que eu fiquei desarvorado com a manifestação. Como não estava olhando a TV, não tive como ver o nome do sujeito, nem sei em qual lugar do país ele trabalha. Deve ser São Paulo, porque a grande imprensa só consulta "especialistas" de São Paulo. Mas não posso admitir que um representante de instituição que exerce uma das funções mais importantes e diretas nesse campo, e que supostamente estudou para passar num concurso público, seja capaz de um reducionismo tão estúpido e fora da realidade como esse. Daí o tabuísmo.
Somente por apontar a construção de presídios como solução para a superpopulação carcerária nos faz retroceder muitos anos. Mas ao classificar uma lei que foi discutida em nível técnico, antes de ser aprovada, como uma espécie de mero escapismo, além de ignorar que o legislador brasileiro raramente faz coisa que preste em matéria penal, o sujeito dá a entender que vive num mundo à parte.
Infelizmente, esse mundo não é particular. É um mundo em que o Ministério Público, enquanto instituição, continua a agir como mero acusador e aplica o Direito Penal como medida higienizadora, sem se preocupar com qualquer outro viés que não seja o punitur quia pecatum.
É a Idade Média da execução penal. Sou capaz de citar rapidamente alguns ex-alunos que mereciam um bem remunerado cargo de promotor de justiça muito mais do que esse grande especialista!
sábado, 27 de agosto de 2011
Absolvição questionada
Outro questionamento que recebi foi quanto à postagem "Absolvição", da quinta-feira passada. Ela se refere ao caso da mulher que matou o próprio pai depois de ser estuprada por ele desde os 9 anos de idade e ter com ele 12 filhos. Como disse, para o público em geral a decisão teve um efeito de lavar a alma. Mas o leitor Gabriel Parente, que foi meu aluno e não tem muita simpatia pelo Ministério Público, questionou a atitude do promotor de justiça, que pediu a absolvição da ré para, em seu entendimento, "satisfazer a sociedade com posições humanitárias e politicamente corretas". Na verdade, o grande questionamento de Gabriel é como foi possível absolver a autora intelectual do crime se os dois executores foram condenados e se encontram cumprindo pena.
Inicialmente, respondo a Gabriel quanto ao fato de o MP instaurar uma ação penal e depois pedir a absolvição do réu. Não há qualquer inconveniente nisso. Quando a denúncia é oferecida, parece ao órgão ministerial, a partir de elementos idôneos, que certa pessoa pode ser autora do crime. Mas isso é uma hipótese plausível, não uma certeza. A certeza só virá, se vier, após a instrução processual. E se ela não vier, o mais correto é que o próprio denunciante reconheça a fragilidade da imputação e peça a absolvição do réu. Aliás, é interessante que a Constituição de 1988 mudou a nomenclatura "promotor público" para "promotor de justiça", o que pode ser interpretado como a intenção de mostrar que a função do Parquet não é e nem deve ser acusar (como muitos integrantes da instituição, ridiculamente, ainda pensam ser), mas aplicar corretamente o Direito, inclusive o penal, ainda que isso implique em pedir absolvições ou benefícios para os acusados ou condenados.
Neste caso, a irresignação de Gabriel não tem a ver exatamente com o pedido de absolvição, mas com o seu fundamento: reconhecer que a ré agiu de forma não reprovável (ausência de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, o que é um conceito técnico e pode não ser corretamente compreendido por quem não seja iniciado no Direito Penal).
Para entender melhor o caso, é preciso destacar que o pedido de absolvição feito pelo promotor, aparentemente, não se prendeu apenas ao passado (a mulher reagiu a uma vida de maus tratos, violação e anulação), mas atentou para um risco iminente: consta que o homem pretendia estuprar uma de suas filhas-netas. Assim, como já aconteceu tantas vezes antes, a vítima suporta a violência que sofre, mas se rebela quando percebe que a violência atingirá alguém que ela ama, ainda mais uma filha.
Naturalmente, para que a tese de inculpabilidade prevalecesse, pelos motivos alegados, seria necessário demonstrar que a mulher não dispunha de outros meios para prevenir o estupro, mas os fatos denotam o contrário. Afinal, se ela foi capaz de contratar dois assassinos de aluguel, decerto que teria acesso a outras opções, inclusive fugir. Tecnicamente, a tese ministerial é estranha e pouco crível, mas é exatamente assim que se faz o tribunal do júri: afastando a técnica para julgar de acordo com os valores e sentimentos do lugar onde aconteceu o fato. Não justifica, mas talvez ao menos explique. A grande surpresa, mesmo, é esse caminho ter sido trilhado pelo Ministério Público.
Destaco, ainda, que qualquer julgamento moral sobre a mulher que passou décadas sendo violada e deu fim a esse ciclo com um homicídio é pernicioso. Sei que, por impulso, perguntarão por que ela não fugiu, não matou antes ou tantas outras coisas. É a síndrome de Estocolmo, provavelmente, que leva a vítima a desenvolver uma relação de tanta dependência com seu agressor, que não foge mesmo quando pode. Por isso mesmo, recomendo mais uma vez a leitura do livro Tigre, tigre, sobre o qual já escrevi.
Em suma, este caso de simples não tem nada. E demonstra por que o Direito Penal apaixona, mesmo que tudo em seu redor seja tão feio e triste.
Inicialmente, respondo a Gabriel quanto ao fato de o MP instaurar uma ação penal e depois pedir a absolvição do réu. Não há qualquer inconveniente nisso. Quando a denúncia é oferecida, parece ao órgão ministerial, a partir de elementos idôneos, que certa pessoa pode ser autora do crime. Mas isso é uma hipótese plausível, não uma certeza. A certeza só virá, se vier, após a instrução processual. E se ela não vier, o mais correto é que o próprio denunciante reconheça a fragilidade da imputação e peça a absolvição do réu. Aliás, é interessante que a Constituição de 1988 mudou a nomenclatura "promotor público" para "promotor de justiça", o que pode ser interpretado como a intenção de mostrar que a função do Parquet não é e nem deve ser acusar (como muitos integrantes da instituição, ridiculamente, ainda pensam ser), mas aplicar corretamente o Direito, inclusive o penal, ainda que isso implique em pedir absolvições ou benefícios para os acusados ou condenados.
Neste caso, a irresignação de Gabriel não tem a ver exatamente com o pedido de absolvição, mas com o seu fundamento: reconhecer que a ré agiu de forma não reprovável (ausência de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, o que é um conceito técnico e pode não ser corretamente compreendido por quem não seja iniciado no Direito Penal).
Para entender melhor o caso, é preciso destacar que o pedido de absolvição feito pelo promotor, aparentemente, não se prendeu apenas ao passado (a mulher reagiu a uma vida de maus tratos, violação e anulação), mas atentou para um risco iminente: consta que o homem pretendia estuprar uma de suas filhas-netas. Assim, como já aconteceu tantas vezes antes, a vítima suporta a violência que sofre, mas se rebela quando percebe que a violência atingirá alguém que ela ama, ainda mais uma filha.
Naturalmente, para que a tese de inculpabilidade prevalecesse, pelos motivos alegados, seria necessário demonstrar que a mulher não dispunha de outros meios para prevenir o estupro, mas os fatos denotam o contrário. Afinal, se ela foi capaz de contratar dois assassinos de aluguel, decerto que teria acesso a outras opções, inclusive fugir. Tecnicamente, a tese ministerial é estranha e pouco crível, mas é exatamente assim que se faz o tribunal do júri: afastando a técnica para julgar de acordo com os valores e sentimentos do lugar onde aconteceu o fato. Não justifica, mas talvez ao menos explique. A grande surpresa, mesmo, é esse caminho ter sido trilhado pelo Ministério Público.
Destaco, ainda, que qualquer julgamento moral sobre a mulher que passou décadas sendo violada e deu fim a esse ciclo com um homicídio é pernicioso. Sei que, por impulso, perguntarão por que ela não fugiu, não matou antes ou tantas outras coisas. É a síndrome de Estocolmo, provavelmente, que leva a vítima a desenvolver uma relação de tanta dependência com seu agressor, que não foge mesmo quando pode. Por isso mesmo, recomendo mais uma vez a leitura do livro Tigre, tigre, sobre o qual já escrevi.
Em suma, este caso de simples não tem nada. E demonstra por que o Direito Penal apaixona, mesmo que tudo em seu redor seja tão feio e triste.
quinta-feira, 28 de julho de 2011
Paridade de armas
Na pequena cidade maranhense de Turiaçu, em fevereiro deste ano, um julgamento do tribunal do júri deixou de ser realizado porque os defensores dos réus abandonaram a sessão, em protesto contra a decisão do juiz, que negou o pedido de reposicionamento da bancada defensória.
Eu sei que a maioria das pessoas classificará esta questão como de somenos importância, sobretudo os que estão fora do mundo do Direito. Mas ela não é tão insignificante quanto parece. A começar pelo fato de que o Direito é o universo mais ritualístico que existe, perdendo apenas para a religião (os termos aqui estão empregados no sentido mais genérico possível). Aliás, não é à toa que os discursos e a simbologia de ambas as searas vivem se confundindo. A toga do juiz se confunde com o batina do padre. A solenidade dos ambientes, a formalidade dos comportamentos, o uso do latim são mecanismos para restringir a atuação aos iniciados e a forçar o reconhecimento da autoridade. No tribunal do júri, o simbolismo atinge o seu ápice. O lugar onde se sentam a acusação e a defesa não são, por conseguinte, mera questiúncula.
A reportagem que li demonstra que os advogados de Turiaçu tinham boas e concretas razões para reclamar. Mas esse fato isolado apenas enuncia um debate que está longe do fim. Como é óbvio, para a advocacia o prejuízo é manifesto. Mais óbvia ainda é a posição do Ministério Público, para quem não há problema algum (quem gosta de perder privilégios?) em se sentar à direita do juiz, enquanto o advogado fica mais distante. À falta de argumentos consistentes, aferram-se na tradição (sempre foi assim, então para que mudar?) e na condição de representante da sociedade, o que lhe daria uma dupla função no julgamento (acusar e velar pela legalidade, como se todo representante do MP fosse um poço de isenção). Daí a concluir que isso vale um privilégio é um passo. Um rápido e conveniente passo.
Não é porque sou advogado e não promotor de justiça que defendo a adequação física das salas de julgamento à tão decantada e utópica isonomia entre as partes. É por reconhecer o excesso de simbolismo nos atos judiciais e por saber que, desde sempre, o Ministério Público foi tratado com supremacia em relação ao advogado, no foro. Isto é fato. Mas é um fato que só pode ser compreendido por quem milita no dia-a-dia forense e sabe que, quando um promotor entra numa secretaria ou numa sala de juiz, ele é autoridade; quando entra o advogado, ele é um estorvo e precisa ser vigiado, como se fosse presumida a sua má intenção.
Muitos juízes, até hoje, permitem-se o acinte de não receber advogados (deveriam ser expulsos da magistratura por isso). Mas eu nunca soube de uma placa dizendo "Não atendemos o Ministério Público. Não insista!" em lugar algum. Porque o MP é o próprio Estado. E o Judiciário o reconhece como membro do mesmo clube, embora não reconheça o advogado, sequer a própria OAB, em que pese o conteúdo do art. 133 da Constituição.
Em suma, a discussão não é pequena e, ao amesquinhá-la, o que pretende o MP é simplesmente deixar as coisas como sempre foram, o que é bom para ele e somente para ele.
Eu sei que a maioria das pessoas classificará esta questão como de somenos importância, sobretudo os que estão fora do mundo do Direito. Mas ela não é tão insignificante quanto parece. A começar pelo fato de que o Direito é o universo mais ritualístico que existe, perdendo apenas para a religião (os termos aqui estão empregados no sentido mais genérico possível). Aliás, não é à toa que os discursos e a simbologia de ambas as searas vivem se confundindo. A toga do juiz se confunde com o batina do padre. A solenidade dos ambientes, a formalidade dos comportamentos, o uso do latim são mecanismos para restringir a atuação aos iniciados e a forçar o reconhecimento da autoridade. No tribunal do júri, o simbolismo atinge o seu ápice. O lugar onde se sentam a acusação e a defesa não são, por conseguinte, mera questiúncula.
A reportagem que li demonstra que os advogados de Turiaçu tinham boas e concretas razões para reclamar. Mas esse fato isolado apenas enuncia um debate que está longe do fim. Como é óbvio, para a advocacia o prejuízo é manifesto. Mais óbvia ainda é a posição do Ministério Público, para quem não há problema algum (quem gosta de perder privilégios?) em se sentar à direita do juiz, enquanto o advogado fica mais distante. À falta de argumentos consistentes, aferram-se na tradição (sempre foi assim, então para que mudar?) e na condição de representante da sociedade, o que lhe daria uma dupla função no julgamento (acusar e velar pela legalidade, como se todo representante do MP fosse um poço de isenção). Daí a concluir que isso vale um privilégio é um passo. Um rápido e conveniente passo.
Não é porque sou advogado e não promotor de justiça que defendo a adequação física das salas de julgamento à tão decantada e utópica isonomia entre as partes. É por reconhecer o excesso de simbolismo nos atos judiciais e por saber que, desde sempre, o Ministério Público foi tratado com supremacia em relação ao advogado, no foro. Isto é fato. Mas é um fato que só pode ser compreendido por quem milita no dia-a-dia forense e sabe que, quando um promotor entra numa secretaria ou numa sala de juiz, ele é autoridade; quando entra o advogado, ele é um estorvo e precisa ser vigiado, como se fosse presumida a sua má intenção.
Muitos juízes, até hoje, permitem-se o acinte de não receber advogados (deveriam ser expulsos da magistratura por isso). Mas eu nunca soube de uma placa dizendo "Não atendemos o Ministério Público. Não insista!" em lugar algum. Porque o MP é o próprio Estado. E o Judiciário o reconhece como membro do mesmo clube, embora não reconheça o advogado, sequer a própria OAB, em que pese o conteúdo do art. 133 da Constituição.
Em suma, a discussão não é pequena e, ao amesquinhá-la, o que pretende o MP é simplesmente deixar as coisas como sempre foram, o que é bom para ele e somente para ele.
quinta-feira, 26 de maio de 2011
Um pedaço da verdade
MPF irá digitalizar documentos da ditadura militar
Redação Portal IMPRENSA
O Ministério Público Federal de São Paulo vai disponibilizar na internet um milhão de páginas de 707 documentos e processos abertos contra presos políticos no período da ditadura (1964-1984), informa a Folha de S.Paulo, nesta segunda-feira (23).
Orçado em R$380 mil, o processo de digitalização dos documentos está previsto para começar em junho, e informações serão publicadas em 2012. Os documentos, que originaram o projeto "Brasil: Nunca Mais", serão publicados na íntegra, sem tarjas sobre os nomes, como é feito atualmente nos autos para consulta no Arquivo Nacional, ligado ao Ministério da Justiça. Será possível acessar nos depoimentos e relatos, detalhes sobre as torturas empregadas pelo Estado contra os dissidentes políticos.
Uma iniciativa do bispo Dom Paulo Evaristo Arns e do reverendo Jaime Wright, o "Brasil : Nunca Mais", foi idealizado em 1980 e é o mais completo relato sobre a violência empregada pelo Estado contra a resistência à ditadura."O projeto se insere nesse momento em que o país quer tornar pública a sua história", afirmou Marlon Weichert, procurador da República que coordena o projeto, à Folha.
Parabéns ao MPF paulista e aos religiosos que, após mais de três décadas, finalmente veem o poder público levar adiante uma iniciativa tão importante.
Redação Portal IMPRENSA
O Ministério Público Federal de São Paulo vai disponibilizar na internet um milhão de páginas de 707 documentos e processos abertos contra presos políticos no período da ditadura (1964-1984), informa a Folha de S.Paulo, nesta segunda-feira (23).
Orçado em R$380 mil, o processo de digitalização dos documentos está previsto para começar em junho, e informações serão publicadas em 2012. Os documentos, que originaram o projeto "Brasil: Nunca Mais", serão publicados na íntegra, sem tarjas sobre os nomes, como é feito atualmente nos autos para consulta no Arquivo Nacional, ligado ao Ministério da Justiça. Será possível acessar nos depoimentos e relatos, detalhes sobre as torturas empregadas pelo Estado contra os dissidentes políticos.
Uma iniciativa do bispo Dom Paulo Evaristo Arns e do reverendo Jaime Wright, o "Brasil : Nunca Mais", foi idealizado em 1980 e é o mais completo relato sobre a violência empregada pelo Estado contra a resistência à ditadura."O projeto se insere nesse momento em que o país quer tornar pública a sua história", afirmou Marlon Weichert, procurador da República que coordena o projeto, à Folha.
Parabéns ao MPF paulista e aos religiosos que, após mais de três décadas, finalmente veem o poder público levar adiante uma iniciativa tão importante.
terça-feira, 19 de abril de 2011
Negócio esquisito
Quando me disseram que o Ministério Público recorrera de uma sentença absolutória, porém nas razões recursais pedira a manutenção da dita sentença, sustentando os mesmos argumentos da peça recorrida, achei que era brincadeira. Afinal, devido à exigência do interesse de agir, você só pode recorrer de uma decisão que pretende modificar. Para piorar, o defensor do réu concordou com as razões, porém pediu o não provimento do apelo.
O jeito foi manusear os autos para entender a curiosa situação.
Uma moça fora denunciada pelo crime de porte ilegal de munição de uso permitido (art. 12 da Lei n. 10.826, de 2003). Após a instrução, o juízo decidiu absolvê-la sumariamente, reconhecendo a atipicidade da conduta. O motivo era a abolitio criminis temporária trazida pela Lei n. 11.706, de 2008, que prorrogou o prazo para que o cidadão comum se desfizesse de armas e munições, sem ser incriminado. Inconformado, o promotor de justiça apelou, mas não apresentou imediatamente suas razões. Talvez tenha entrado de férias ou de licença. Por isso, as razões foram apresentadas por outro promotor, que discordou do rigor do colega e reconheceu que a sentença estava correta. Admitindo implicitamente a estranheza da situação, pediu a manutenção do julgado, invocando o princípio da independência funcional.
Restou ao defensor da ré, coitado, ao se manifestar sobre o surto esquizofrênico ministerial, pensar nas manifestações como peças distintas, pedindo o improvimento do recurso em si, devido a sua concordância com as razões sustentadas posteriormente.
Com efeito, a instituição Ministério Público é una, mas cada promotor de justiça é independente. A não é obrigado a concordar com B. No entanto, é forçoso reconhecer que esse tipo de situação inquieta; provoca surpresa em quem é acostumado aos meandros jurídicos e provável insegurança em quem está em fase de formação. Sobretudo, deixa estarrecido um leigo, com a sensação de que o sistema é uma bagunça total. E não é, evidentemente, se não a esta altura estaríamos todos mortos.
O jeito foi manusear os autos para entender a curiosa situação.
Uma moça fora denunciada pelo crime de porte ilegal de munição de uso permitido (art. 12 da Lei n. 10.826, de 2003). Após a instrução, o juízo decidiu absolvê-la sumariamente, reconhecendo a atipicidade da conduta. O motivo era a abolitio criminis temporária trazida pela Lei n. 11.706, de 2008, que prorrogou o prazo para que o cidadão comum se desfizesse de armas e munições, sem ser incriminado. Inconformado, o promotor de justiça apelou, mas não apresentou imediatamente suas razões. Talvez tenha entrado de férias ou de licença. Por isso, as razões foram apresentadas por outro promotor, que discordou do rigor do colega e reconheceu que a sentença estava correta. Admitindo implicitamente a estranheza da situação, pediu a manutenção do julgado, invocando o princípio da independência funcional.
Restou ao defensor da ré, coitado, ao se manifestar sobre o surto esquizofrênico ministerial, pensar nas manifestações como peças distintas, pedindo o improvimento do recurso em si, devido a sua concordância com as razões sustentadas posteriormente.
Com efeito, a instituição Ministério Público é una, mas cada promotor de justiça é independente. A não é obrigado a concordar com B. No entanto, é forçoso reconhecer que esse tipo de situação inquieta; provoca surpresa em quem é acostumado aos meandros jurídicos e provável insegurança em quem está em fase de formação. Sobretudo, deixa estarrecido um leigo, com a sensação de que o sistema é uma bagunça total. E não é, evidentemente, se não a esta altura estaríamos todos mortos.
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