terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Salvando datas

Em quase 18 anos de docência, tive a ventura e a honra de construir belos relacionamentos com várias turmas, algumas das quais foram especialmente marcantes. Hoje, contudo, preciso confessar uma distinção muito singular e me justificar por isso, a fim de que não fique parecendo, aos alunos de ontem e de hoje, que estão em plano menor. Sou de opinião que todas as pessoas, ou grupo de pessoas, possuem um lugar próprio no coração de quem as ama, então não se trata de amar mais ou menos, e sim de amar de um jeito insubstituível, pessoal e intransferível. 
Para justificar a deferência, preciso abordar, rapidamente, um assunto sobre o qual já não gosto de falar. Por ocasião do velório de minha mãe, houve uma única ocasião em que chorei. Anestesiado pelo encerramento de uma longa batalha contra o câncer, do modo que menos queríamos, fui me aguentando até a chegada de uma coroa de flores, enviada por meus "eternos alunos da DI6TA". Fazia pouco mais de três meses que encerráramos a nossa convivência de dois anos, mas eles subitamente ressurgiram ao meu lado, literalmente transformados em flores. Aí eu me permiti chorar um pouco. E não era de tristeza. 

Tive vontade, porém não condições íntimas de ir até a sala deles para agradecer pelo gesto, cujo efeito não pode ser descrito. Hoje, passados 16 meses, eles voltaram a mim. Enviaram duas das minhas orientandas de monografia, com expressões graves, para me convocar. Certamente que não pensei que havia uma comitiva do lado de fora e, ali, escutei palavras profundamente cariciosas, apostas ao pergaminho aí ao lado. Com elas, o convite para receber uma das grandes honrarias do meio acadêmico: a de ser paraninfo da turma, que se graduará em menos de um ano.

No texto acima reproduzido, lembranças de mais acontecimentos do que eu pensava, que esses adoráveis jovens guardaram para me entregar. Uma confirmação de que fazemos parte das vidas uns dos outros.


Confesso minha reticência em relação a postagens que possam soar como cabotinismo, mas aqui não se trata de exibir uma láurea, porque o prêmio já foi conquistado lá atrás, ao me tornar parte da trajetória de pessoas que me concederam um capítulo feliz (ainda que trabalhoso!) em seus respectivos livros da vida. Trata-se, isto sim, apenas de agradecer por todo o bem que me têm proporcionado, fazendo-o por esta via porque as palavras ainda estão tremulando em minha garganta. Terei que fazer um treinamento para dar conta do discurso, no futuro!


Muito feliz, deixo-os com o nosso registro, a turma na formação de que me lembro, em 5.6.2015. Esta é a foto oficial de despedida, que sempre tiro com minhas turmas de Direito Penal IV. Para abraçar cada um de vocês.

As datas estão salvas, meus amores. Estarei com vocês. Para sempre, é claro.

Descobrindo Vargas Llosa

No começo deste ano, em uma de minhas habituais devassas por livrarias, deparei-me com um livro do escritor peruano Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura em 2010. Estava na sessão infantil. Pensando de imediato em minha filha, passei a mão no volume e li a sinopse aposta à contracapa:

Da janela de casa, Fonchito observa um solitário homem que contempla o oceano. A cena se repete todos os dias até que, não se aguentando de curiosidade, vai ao encontro do velho senhor e pergunta o que ele procura com tanta insistência.

Com um sorriso nos lábios, o velhinho promete lhe contar uma história. A cada manhã, antes que o ônibus da escola chegue, Fonchito ouve um novo capítulo das aventuras de um barco cheio de crianças que, desde o século XII, singra os mares do mundo.

Encantado instantaneamente, comprei o livro, já pensando em fazer dele a leitura de antes de dormir com minha Júlia. Seria uma oportunidade de apresentá-la a um dos maiores escritores vivos, estimulando o gosto por um nível superior de literatura, como antes já fizera com A maior flor do mundo, de José Saramago.

Dias atrás, iniciamos a leitura. Eu não tinha a menor ideia de por onde iríamos, até porque, confesso, não lera nada de Vargas Llosa. Mas a proposta do livro se mostrou muito sedutora logo de saída. Voltamos ao século XII, ao tempo das cruzadas, quando exércitos marchavam a Jerusalém para libertá-la dos muçulmanos. Em meio àquele cenário, sem qualquer explicação possível, crianças de todas as partes da Europa decidem participar da retomada da Cidade Santa, mas não com luta. Diz o autor:

 Ao contrário dos cruzados, que partiam com escudos, cavalos, lanças, espadas, arcos, porretes e todo tipo de armas, essas crianças queriam realizar a façanha de salvar a cidade onde Cristo morreu munidos apenas de seus cantos, suas súplicas e suas orações. Todos eles usavam uma túnica branca com uma cruz bordada. Levavam nas mãos, também, uma cruz tosca de madeira fabricada por eles mesmos e uns cajados de pastor para abrir passagem nas difíceis trilhas cheias de mato e de bichos.

É assim, atendendo a um impulso sobrenatural, que milhares de crianças marcham até Marselha, onde embarcam em navios doados para sua extraordinária expedição. Contudo, adverte o narrador, aquela é uma história triste. Ele logo avisa que nenhum dos barcos chegou à Terra Santa.

Naturalmente, não fornecerei maiores detalhes que possam comprometer o imenso prazer de ler este livro belíssimo. Compartilho apenas a viva impressão que me ficou desse anúncio, feito pelo autor logo ao começo da trama, e que realmente me despertou um profundo desejo de saber qual teria sido o destino daquelas crianças.

O barco das crianças foi lançado em 2014, quando seu autor já contava 78 primaveras. É seu segundo romance infanto-juvenil (o primeiro é Fonchito e a lua e, sim, trata-se do mesmo Fonchito, personagem d'o barco, que é filho de Don Rigoberto, protagonista de outro romance do autor). Foi inspirado no conto A cruzada das crianças, de Marcel Schwob (falecido em 1905), obra citada em epígrafe.

O romance integra um projeto da editora de oferecer literatura infanto-juvenil escrita por grandes escritores, sem linguagem infantilizada, permitindo um verdadeiro mergulho no prazer da leitura. Posso dizer que o texto de Vargas Llosa é adorável, envolvente e muito terno. Além de propiciar curiosidade histórica para os pequenos leitores. Quando cheguei ao final, Júlia estava com os olhos arregalados, digerindo as palavras que acabara de ouvir.

Para tornar a experiência ainda melhor, temos as lindas gravuras da premiada ilustradora polonesa Zuzanna Celej, que você vê nesta postagem. E ainda temos a elevada qualidade da edição, com capa dura costurada, papel de primeira e capricho em todos os detalhes.

Estou realmente feliz de ter encontrado esta pequena joia e feito dela um momento carinhoso com minha filha. Por isso, estou compartilhando esta experiência com você, que também tem uma criança em casa. Pegue-a pela mão e vá ver se o tal barco aparece.