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quinta-feira, 7 de abril de 2016

Exemplo de idiotice à direita

Uma das mais evidentes manifestações de burrice e/ou má-fé, desgraçadamente prática corrente em nossos dias, é fazer afirmações totalmente descontextualizadas. E repeti-las à exaustão.

Um argumento extremamente tosco que já cansei de escutar é este: impeachment não é golpe porque está previsto na Constituição. Ponto. Só isso. Amigo, você entrou naquela fila desfavorecida mais de uma vez, não foi?

Para quem resolveu aderir a essa asneira, argumento da seguinte forma: a mesma Constituição também prevê o estado de defesa, que pode ser decretado pelo presidente da República, após a oitiva de conselhos cujas manifestações são obrigatórias, porém não vinculantes (art. 136). Pergunto: se Dilma Rousseff convocasse hoje os conselhos e, após qualquer manifestação deles, decretasse o estado de defesa para preservar a ordem pública ou a paz social, ameaçada pelo cenário de grave instabilidade institucional, podendo com isso restringir o direito de reunião e o sigilo de comunicações, apontando o Distrito Federal como área geográfica da medida extrema, seria golpe?

Pense bem: a decretação do estado de defesa é uma prerrogativa do presidente da República, expressamente assegurado pela Constituição de 1988. Os fundamentos e formalidades da medida estão mencionados aí. Então, aplicada a sua "lógica", Dilma pode fazê-lo, não pode?

De modo semelhante, existem prisões cautelares, mas isso não significa que eu possa prender pessoas levianamente por aí (embora seja o que acontece, na prática). Existem, no direito civil, as figuras da indignidade e da deserdação, mas estas não podem ser aplicadas apenas porque o pai se considerou terrivelmente injuriado quando o filho lhe deu uma resposta torta, escolheu profissão repudiada por aquele ou se revelou homossexual.

Portanto, cidadão, o problema não é de previsão legal, mas das razões pelas quais se faz aquilo que se faz. Esforce-se um pouco e procure um contexto para os fatos da vida. Se possível, tente achar um pouco de bom senso, também.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

STF e poder investigatório do Ministério Público

ATRIBUIÇÃO DO PARQUET

2ª Turma do STF reconhece que Ministério Público pode fazer investigações

Por unanimidade, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal concluiu que o Ministério Público pode fazer investigações. O colegiado seguiu o entendimento do relator, ministro Gilmar Mendes, de que o artigo 129 da Constituição Federal, que trata das atribuições do MP, apesar de não falar sobre a investigação pelo órgão, não a veda. E a interpretação o Código de Processo Penal e da Lei Complementar 75/1993, que trata da organização do MP da União, permite concluir que o Ministério Público pode investigar.
O julgamento teve início em outubro de 2013, mas foi interrompido por um pedido de vista apresentado pelo ministro Ricardo Lewandowski logo após o voto do relator. Nesta terça-feira (2/9), o ministro Lewandowski apresentou seu voto acompanhando o relator. Lewandowski explicou que pediu vista dos autos diante da dúvida relativa à nulidade das provas a partir de investigação presidida pelo MP, e decidiu rejeitar o recurso por ter verificado que a matéria não foi tratada pelas instâncias inferiores. Além disso, lembrou que a questão do poder de investigação do Ministério Público está para ser analisada pelo Plenário do STF.
O caso concreto trata de um cirurgião condenado a 1 ano e 2 meses de detenção, em Goiânia, pela prática de homicídio culposo (artigo 121, parágrafo 3º, do Código Penal). A sentença considerou que houve negligência do médico durante uma cirurgia de angioplastia e colocação de prótese vascular, que acabou causando a morte do paciente. A defesa sustentava a nulidade das provas colhidas no curso da investigação presidida pelo Ministério Público de Goiás, que não disporia de poder investigatório.
Investigação com limites
De acordo com o relator, ministro Gilmar Mendes, as regras constitucionais sobre a investigação não impedem que o Ministério Público presida o inquérito ou que faça a própria investigação, desde que essa atuação seja controlada e regulamentada. Da mesma forma, nada impede que o réu colha provas para compor sua defesa no processo criminal.
Em seu voto, Gilmar afirma que o artigo 129 da Constituição Federal, que trata das atribuições do MP, apesar de não falar sobre a investigação pelo órgão, não a veda. E a interpretação o Código de Processo Penal e da Lei Complementar 75/1993, que trata da organização do MP da União, permite concluir que o Ministério Público pode investigar.
“Considerando o poder-dever conferido ao Ministério Público na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (artigo 127 da Constituição), afigura-me indissociável às suas funções relativa autonomia para colheita de elementos de prova como, de fato, lhe confere a legislação infraconstitucional”, escreveu o ministro em seu voto.
Controle judicial
O ministro rebateu também o argumento de que a investigação pelo MP causaria um desequilíbrio entre acusação e defesa. Para Gilmar Mendes a investigação pelo MP não desequilibra o jogo, pois sempre estará sujeita ao controle judicial “simultâneo ou posterior”. Isso decorre, segundo o ministro, do fato de ser “ínsito ao sistema dialético do processo” a possibilidade da a parte colher provas para instruir a própria defesa. “Ipso facto, não poderia ser diferente com relação ao MP.”
O relator explica, ainda, que a investigação não é atividade exclusiva da polícia judiciária, e o raciocínio oposto impediria que outras instituições fiquem impossibilitadas de promover investigações. No entanto, afirma Gilmar Mendes, o poder de investigação do MP não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita, sem controle, pois isso representa agressão a direitos fundamentais.
Atuação subsidiária
Gilmar Mendes disse que a atuação deve ser subsidiária, ocorrendo apenas nos casos em que não for possível ou recomendável que a investigação seja feita pela polícia judiciária. O órgão só deve ser acionado nos casos em que a polícia não puder investigar, ou quando não for “recomendável” sua atuação no caso. Exemplos citados por Gilmar Mendes são apurações de lesão ao patrimônio público, de excessos cometidos por policiais (como abuso de poder, tortura ou corrupção) ou de omissão da polícia.
O ministro ainda sugere que uma regulamentação da investigação pelo MP deve obrigar o órgão a formalizar o ato investigativo; comunicar formalmente, assim que iniciadas as apurações, o procurador-chefe ou procurador-geral; numerar os autos de procedimentos investigatórios, para que haja controle; publicidade de todos os atos; formalização de todos os atos; assegurar a ampla defesa, entre outros. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2014-set-04/turma-stf-reconhece-ministerio-publico-investigar

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O judiciário deve colocar-se no lugar do paciente

Enquanto a Suprema Corte do Reino Unido não define a legalidade da eutanásia e do suicídio assistido, outra questão que envolve o direito de morrer e viver continua a ocupar a pauta de julgamento dos tribunais. Recentemente, a Corte Superior de Justiça da Inglaterra decidiu que os médicos deviam suspender a respiração artificial de um bebê de pouco mais de um ano, que jamais respirou sozinho e nunca deixou o hospital. A decisão foi tomada contra a vontade da família.
A ortotanásia, como é chamado o ato de suspender tratamento médico para um paciente terminal, é aceita no Reino Unido e foi validada pela Suprema Corte em outubro. Em alguns casos, ela é inclusive recomendada e ordenada pela Justiça, já que o princípio que rege a saúde inglesa é fazer sempre o que for melhor para o doente. Uma pessoa pode, por exemplo, se recusar a receber qualquer tratamento e mesmo alimentação, até morrer. A Justiça entra em cena quando o doente não é capaz de decidir por si só.
Foi o que aconteceu na curta vida do pequeno Reyhan, que nasceu em junho de 2012 com Síndrome de Down e outros problemas de saúde que jamais o deixaram sair da UTI do hospital. Reyhan era o mais novo dos seis filhos de um casal de muçulmanos. Desde que nasceu, nunca conseguiu fazer nada sozinho, nem respirar, nem se alimentar. Tudo era feito a partir de equipamentos médicos ligados 24 horas.
No início de 2013, a família de Reyhan e a equipe médica iniciaram uma disputa judicial sobre o destino do bebê. A família pedia para que ele fosse tratado em casa, mesmo sabendo que sua vida seria curta. O plano era montar uma UTI na casa dos pais e contar com o atendimento médico frequente. Já a equipe médica defendia que o melhor para o bebê era desligar os aparelhos e deixar que ele morresse, já que o sofrimento causado com todas as intervenções era grande demais e o pequeno não tinha nenhuma qualidade de vida.
A discussão foi parar na Corte Superior de Justiça da Inglaterra no segundo semestre do ano passado. Lá, foram ouvidos depoimentos de especialistas e da equipe médica que cuidava de Reyhan. Todos foram unânimes: a vida do menino seria curta, com muito sofrimento e praticamente nenhum prazer. Ele não tinha consciência sobre o que acontecia ao se redor, praticamente não interagia, mas sentia dor e desconforto.
A família, do seu lado, defendeu que o bebê matinha um mínimo de interação com eles e experimentava um pouco de prazer e conforto quando estava perto dos pais. Por isso, insistiam para que ele fosse mantido vivo em casa. O único consenso entre médicos e família é que nenhum tratamento novo invasivo deveria ser feito. Se o estado de saúde do menino deteriorasse, era para deixá-lo morrer.
Ao pesar os dois lados, a Corte Superior de Justiça considerou que o melhor para Reyhan era que os aparelhos que o mantinham vivo fossem desligados. O juiz responsável pelo julgamento, Peter Jackson, reconheceu o sofrimento da família, mas explicou que cabia à Justiça se colocar no lugar do paciente e decidir a alternativa que lhe causasse menos sofrimento. “Manter a respiração artificial seria fútil e causaria a ele cada vez mais sofrimento, sem oferecer nada em termos de experiência positiva de vida, vida esta só mantida com intervenções médicas invasivas”, explicou.
A decisão da Corte Superior foi na anunciada para a família em setembro e foi marcada para o final de outubro uma nova audiência para que decidissem como executar a ordem de desligar os aparelhos. Dias antes dessa audiência, no entanto, Reyhan morreu. O julgamento da corte só foi publicado em dezembro.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2014-jan-11/corte-inglesa-manda-desligar-aparelhos-mantem-bebe-vivo

Já me manifestei antes favorável ao direito de morrer, então o mínimo que posso fazer é destacar este aspecto antes de qualquer opinião, a fim de deixar claro que não tenho a veleidade de professar suposta isenção. Eu já sei qual a decisão que prefiro e busco apenas os argumentos para sustentá-la.
Dito isto, acho que agiu acertadamente a Suprema Corte inglesa, considerando sobretudo o argumento utilizado. Qual seria o provável desejo do paciente, se pudesse emitir sua opinião? Além disso, não sendo possível colher essa manifestação, resta aos terceiros, a quem cabe decidir, deliberar a partir da premissa de causar menos sofrimento ao paciente. É o que me parece mais consentâneo a um direito baseado no objetivo primordial de proteger direitos fundamentais.
Autêntico hard case, esta é daquelas situações em que qualquer solução é uma grande aposta, na medida em que o verdadeiro interessado nunca poderá dizer o que realmente preferia. Por isso, compete à família e às instituições públicas agirem com o máximo de bom senso e humanidade, com olhos no outro, e não nas próprias preferências.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Licença, que eu quero passar

O paciente que desiste da vida, preferindo morrer a se submeter à cirurgia, tem a sua autonomia da vontade reconhecida na Resolução 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina. Esta manifestação, chamada pela norma de Testamento Vital, diz que não se justifica prolongar um sofrimento desnecessário em detrimento da qualidade de vida do ser humano.
O entendimento levou a 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a confirmar decisão que garantiu a um idoso o direito de não se submeter à amputação do pé esquerdo, que viria a salvar sua vida. Assim como o juízo de origem, o colegiado entendeu que o estado não pode proceder contra a vontade do paciente, como pediu o Ministério Público, mesmo com o propósito de salvar sua vida.
Além da Resolução do CFM, o relator da Apelação, desembargador Irineu Mariani, afirmou no acórdão que o direito de morrer com dignidade e sem a interferência da ciência (conhecida como ortotanásia) tem previsão constitucional e infraconstitucional.
Explicou que o direito à vida, garantido pelo artigo 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade humana, previsto no artigo 2º, inciso III, ambos da Constituição Federal. Isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. Entretanto, em relação ao seu titular, o direito à vida não é absoluto, pois não existe obrigação constitucional de viver. Afinal, nem mesmo o Código Penal criminaliza a tentativa de suicídio.
No âmbito infraconstitucional, Mariani citou as disposições do artigo 15 de Código Civil: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica’’.
‘‘Nessa ordem de ideias, a Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter à cirurgia ou tratamento’’, concluiu, sem deixar de considerar que o trauma da amputação pode causar sofrimento moral. O acórdão foi lavrado na sessão dia 20 de novembro.
Álvará judicialO Ministério Público ingressou na Justiça estadual com pedido de Alvará Judicial para suprimento da vontade do idoso e ex-portador de hanseníase (lepra) João Carlos Ferreira, que mora no Hospital Colônia Itapuã (HCI), localizado em Viamão, município vizinho a Porto Alegre.
Diagnosticado com necrose no pé esquerdo desde 2011 e em franco definhamento, ele vem recusando a amputação, cirurgia que poderia salvar a sua vida. Se não o fizer, corre o risco de morrer por infecção generalizada. O idoso, de 79 anos, não apresenta sinais de demência, mas foi diagnosticado com quadro de depressão.
Conforme o laudo da psicóloga que o atende, ‘‘o paciente está desistindo da própria vida vendo a morte como alívio do sofrimento”. Assim, segundo o MP, o paciente estaria sem condições psíquicas de recusar o procedimento cirúrgico. Em síntese, a prevalência do direito à vida justifica contrapor-se ao desejo do paciente.
O juízo da Comarca de Viamão indeferiu o pedido de amputação, negando a concessão do Alvará. Argumentou que o paciente é pessoa capaz, tendo livre escolha para agir e, provavelmente, consciência das eventuais consequências. Assim, não cabe ao estado tal interferência, ainda que porventura possa vir a falecer. Desta decisão é que resultou recurso de Apelação ao TJ-RS.
Acessando a notícia do ConJur, você encontra links para a resolução do CFM e para o acórdão do tribunal gaúcho. Caso bem interessante. E, a propósito, a decisão da corte foi unânime.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Exageros brasileiros

"A inserção da fotografia do acusado na peça da denúncia só é admissível se houver necessidade específica, devidamente demonstrada e fundamentada. Afinal, o Estado não pode ser o violador do direito de imagem, garantido pela Constituição."

Com esse entendimento, a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul confirmou decisão do primeiro grau, que mandara excluir a fotografia do réu da denúncia, porque compete ao réu determinar o uso de sua imagem.

Quem me conhece sabe o quanto prezo as liberdades individuais e o quanto me bato por um direito e um sistema judiciário que respeitem a constituição. Por outro lado, irrito-me profundamente com o excesso de prurido em torno do tema dos direitos, que reputo uma consequência de nossa incapacidade de amadurecer frente ao nosso passado ditatorial. Um fenômeno social que se repete no modo como muitas famílias, hoje, educam seus filhos: lutou-se tanto por liberdade que, no dia em que conseguiram alcançá-la, tal qual o cachorro que corre atrás do automóvel, não souberam o que fazer com ela.

No caso dos direitos, o grande problema é que sua consagração não trouxe junto a noção de que deveres fazem parte do pacote. Ou como dizia Montesquieu, "até a liberdade deve ser restringida, a fim de ser possuída".

Sou totalmente avesso ao sensacionalismo contra acusados de crimes e defendo que os mesmos têm o direito de preservar a sua imagem frente a esses programas tétricos de TV, matérias jornalísticas e congêneres. Em geral, eles são obrigados a mostrar o semblante para as câmeras e até a conceder entrevistas. Policiais seguram seus rostos para cima, a fim de que sejam filmados. É essencial que sejam vistos, para que possam ser reconhecidos no futuro. Isso é violência.

A denúncia, contudo, é a peça por meio da qual o Ministério Público demonstra a sua convicção preliminar em torno de certo crime e pede que o indivíduo seja julgado e condenado pelo fato. Dados qualificativos são apresentados: nome completo, filiação, sinais particulares, etc. Por que não uma fotografia? É somente mais uma forma de qualificação, para cumprir a finalidade da lei: assegurar que a pessoa certa está sendo processada e não um homônimo ou alguém parecido. Mas se o direito à imagem é assim tão absoluto, então até mesmo a qualificação pessoal deveria ser questionada. E aí como viabilizar a ação penal?

E em relação a perícias? Laudos de exame de corpo de delito ou reconstituições, p. ex., hoje cada vez mais documentados em mídia eletrônica. Eventualmente, o acusado pode aparecer nessas imagens. Elas não podem ser usadas? Não posso capturar uma tela para incluir no meu arrazoado, para tentar demonstrar algum aspecto relevante? Ou, no máximo, tenho que borrar a imagem? São diversos questionamentos, problemas que simplesmente não existiriam se as pessoas fossem um pouco mais razoáveis.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que tantas contribuições já deu ao avanço do direito penal, agora se excedeu, a meu ver. Lamento muito por essa decisão exagerada, que tomo por um sintoma de nossa sociedade atual, onde todo mundo é altamente suscetível, se ofende com tudo, se magoa, sofre, chora, arranca os cabelos e exige compreensão de Deus e do mundo. Em suma, um cenário em que todo mundo tem muitos direitos e dever nenhum.

Anote aí: isso não vai dar certo.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-out-27/foto-reu-denuncia-agride-direito-fundamental-decide-tj-rs

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O direito de ser deixado em paz

Uma das maiores belezas do direito é sua transformação por força das mudanças por que passa o próprio mundo. Afinal, estamos na seara de uma ciência social aplicada. Mesmo com a habitual resistência a mudanças e, até mesmo, uma absurda resistência a abraçar o novo, chega uma hora em que as teias de aranha precisam ser espanadas. Com isso, surgem novas demandas e teses. Uma bastante interessante é o direito ao esquecimento. Enquanto cresce a exigência de se assegurar a verdade histórica, debate-se também a questão do direito de ser, literalmente, deixado em paz — o right to be let alone dos anglossaxões.

Na página do Superior Tribunal de Justiça foi publicada, hoje, instigante matéria sobre o tema, que vale a pena ler. Partindo de julgamentos verídicos, ela aborda o direito ao esquecimento:

  • na perspectiva dos acusados de crimes (caso de um dos réus da Chacina da Candelária, que foi absolvido, porém teve sua imagem explorada, anos mais tarde, pelo programa Linha Direta, da TV Globo);
  • dos familiares de vítimas de crimes (caso de pedido de indenização negado, pela exploração naquele mesmo programa de TV, de um caso de estupro e homicídio ocorrido em 1958);
  • da ampla difusão de informações favorecida pela internet, que coloca em confronto a privacidade individual e as liberdades de expressão e imprensa;
Fiquei conhecendo o termo "superinformacionismo", exposição excessiva de fato que não deveria ser divulgado e, por isso, autoriza medidas judiciais, p. ex. determinando a retirada de certos conteúdos da internet (medida sabidamente inócua, que acaba se prestando apenas a justificar provimentos por reparação de danos).

Novas questões com que os estudiosos do direito devem se acostumar. E questões demasiadamente humanas.

Contra o direito ao esquecimento: http://www.conjur.com.br/2013-out-21/direito-fundamental-esquecimento-afirmacao-insustentavel

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Trabalho escravo: mais um pequeno passo

Após anos e anos de enrolação vigarista, a despeito dos esforços de setores mais decentes do Congresso Nacional, a PEC do trabalho escravo retornou à pauta da Câmara dos Deputados em maio deste ano. Mas como a proposição já está aprovada pelo Senado, a turma empenhada em barrar a matéria precisava engendrar mais alguma chicana para impedir a aprovação. A estratégia escolhida foi dizer que, antes de mudar a constituição, era necessário definir claramente o conceito de trabalho escravo. Um conveniente argumento de segurança jurídica.

Coube então à Comissão Mista de Consolidação de Leis e Regulamentação de Dispositivos Constitucionais a tarefa de propor um projeto de lei regulamentando o tema. Naquele momento, pensei comigo: "Pronto: mais alguns anos de omissão criminosa".

Confesso que, com imensa surpresa, soube que a tal comissão aprovou o texto do projeto de lei ontem, em pouco mais de quatro meses. Com isso, a PEC poderá finalmente ser votada. Será que agora a coisa vai? Acho que sim. Mas não se engane: nossos valorosos congressistas estão mais uma vez aplicando a prática de dar os aneis para conservar os dedos. A aprovação da PEC será anunciada com todo o estardalhaço, para mostrar o compromisso da classe política com a justiça social no campo. A mídia, sempre atrelada a quem pode lhe render mais dinheiro, p. ex. através de contratos de publicidade, divulgará essa perspectiva. Mas o povo não saberá que o ouro é de tolo e a vitória, de Pirro.

Depois de supostos debates, a comissão definiu trabalho escravo com base nos seguintes parâmetros:

  • "submissão a trabalho forçado, exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, ou que se conclui da maneira involuntária, ou com restrição da liberdade pessoal"
  • "submissão a jornada exaustiva, quer sujeitando o trabalhador a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto"
  • "cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho"
  • "manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho ou a apropriação de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho"
  • "restrição, por qualquer meio, da locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com empregador ou preposto"

Você realmente acha que essa tragédia vai acabar?
Não com os métodos que vêm sendo empregados.
A malinagem começa a ser percebida pelo fato de que a comissão passou esses meses todos trabalhando para chegar a uma redação que, no final das contas, é apenas um aprimoramento sutil do texto que já define o crime de redução à condição análoga à de escravo (art. 149 do Código Penal, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 10.803, de 2003). Dez anos após a aludida lei, não se avançou na matéria e, inclusive, foram mantidos equívocos conhecidos, como a previsão de que só há ilicitude se a vigilância no local de trabalho for ostensiva, brecha deixada para que os exploradores possam ficar impunes, em caso de vigilância dissimulada. E isto em tempos de popularização da tecnologia e expansão do trabalho escravo urbano.

Seja como for, o que é ruim na origem não tem como se salvar. Sempre em nome da segurança — rectius: da proteção dos escravizadores —, foram engendrados três mecanismos propensos a esvaziar a eficácia da norma.

O primeiro é a previsão de que a expropriação das terras somente pode ocorrer quando a exploração do trabalho escravo for realizada diretamente pelo proprietário das terras. Em princípio, esta ressalva faz todo o sentido, evitando que um inocente seja punido por atos de terceiros. Os parlamentares se lembraram de resguardar o proprietário que, estando distante, não sabe que seus prepostos perversos estão escravizando pessoas sem a sua ordem e conhecimento.

O que os parlamentares fizeram questão de esquecer foi nada menos que a realidade. Dentre as muitas formas de assegurar a própria impunidade, está a ação de atribuir a responsabilidade aos administradores das fazendas. Por meio de uma cadeia de comando, tenta-se dificultar a apuração de responsabilidades, sabendo-se que, na dúvida, os acusados serão inocentados. Insuficiência de provas. Assim, o dono não sabe o que faz o seu gerente; o gerente não sabe o que faz o capataz; o capataz não sabe o que fizeram os empregados enfurnados no mato no meio dos trabalhadores. O argumento é sempre o mesmo: o local do trabalho era distante da sede da fazenda e de difícil acesso. Eu não ia lá e por isso não sabia o que se passava. Resultado: absolvição.

Para conhecer essa tese defensória, os congressistas não precisavam sequer sair do prédio: há uns tantos deputados e senadores acusados de escravizar seres humanos e eles se defenderam exatamente assim. Mas, curiosamente, ninguém se lembrou de pensar em procedimentos de segurança em favor das vítimas.

O segundo estratagema é o condicionamento da exploração a uma sentença penal condenatória. Originalmente, a ideia era permitir a expropriação a partir da constatação do fato em si do trabalho em condições análogas à escravidão. Assim, uma diligência do Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho seria suficiente. Afinal, é um meio idôneo de prova. Mas os advogados internos dos exploradores trataram de condicionar a medida ao reconhecimento de crime, não do fato em si. E aí surgem todos os condicionamentos próprios do processo penal, inclusive a absolvição por falta de provas e especialmente a prescrição.

Com sua pena máxima cominada em 8 anos de reclusão (há duas hipóteses de majoração), a prescrição se dá em 12. Mas se o acusado for maior de 70 anos, o prazo é reduzido pela metade. No judiciário brasileiro, arrastar um processo por mais de 6 anos é trivial, ainda mais para quem conta com bons advogados. Mas essa é a situação considerada a pena máxima. Digamos que o acusado seja condenado à pena mínima, módicos 2 anos de reclusão: prescrição em 4. Nem precisa reduzir à metade para vê-la aparecer. As terras permanecerão nas mesmas mãos, para mais alguns anos de exploração. Afinal, o direito de propriedade é sagrado.

O último malfeito, consequência imediata do tópico anterior, é postergar a expropriação para depois do trânsito em julgado da dita sentença penal condenatória. Embora seja uma medida previsível, traz como efeito prático a impossibilidade de iniciar o procedimento expropriatório durante longos anos, tempo suficiente para que, através da prescrição ou eventuais outras hipóteses, a sentença não transite em julgado e a impunidade seja assegurada, com base na lei.

Estas considerações nada têm de inéditas. São até bastante conhecidas. Só os congressistas é que parecem não ter conhecimento delas. E, certamente, não se importam.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Uma das melhores do mundo

O simpático jurista italiano Luigi Ferrajoli visitou o Brasil, tendo palestrado há dois dias no Instituto Brasiliense de Direito Público. Mais conhecido por estas bandas pela teoria do garantismo penal, vilipendiada por 11 em cada 10 desinformados e desmerecida por meio do uso irrefletido do termo "garantismo", o professor florentino da Universidade de Roma Tre não é exatamente um penalista, como muitos pensam. Ele é um teórico do direito com larga atuação no plano do constitucionalismo.

Com essa bagagem, Ferrajoli elogiou a Constituição brasileira de 1988, classificando-a como "uma das mais avançadas do mundo", embasando sua afirmação no fato de que dispôs acerca dos direitos sociais como fundamentais e criou mecanismos valiosos para efetivá-los.

A percepção teórica de Ferrajoli está correta. Infelizmente, ele não conhece suficientemente o jeitinho brasileiro para saber que, por estas bandas, a constituição ainda segue sendo a folha de papel de que falava Ferdinand Lassalle, patrocinando cidadãos de papel, como disse Gilberto Dimenstein. Em suma, na prática a teoria é diferente. O mestre italiano não merece críticas por isso. Ele fala sob a perspectiva de um europeu que conviveu com os efeitos da 2ª Guerra Mundial (nasceu em 1940), em um país onde grassou o fascismo. É bastante natural que, para ele, uma constituição consagrando direitos seja algo digno dos maiores encômios.

Errados estamos nós, que não nos esforçamos por transformar em realidade tudo aquilo que nossa Carta Magna pode ser, seja porque não nos mobilizamos, seja porque menosprezamos quem se mobiliza; seja porque não fiscalizamos, não cobramos e ainda por cima elegemos justamente os que agirão em sentido contrário; seja porque enaltecemos as aparências e fingimos não ver a realidade.

É por isso que os teóricos são imprescindíveis: porque são capazes de produzir conhecimento sistemático e claro acerca daquilo que todos precisam saber, a fim de poder agir, no dia em que finalmente quiserem.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-out-16/constituicao-brasileira-avancadas-mundo-luigi-ferrajoli

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Eu, em pontos polêmicos

Em 24.11.2006, quando o blog nem chegara aos três meses de existência, publiquei uma postagem informando minhas posições a respeito de certas matérias controversas, propositalmente sem fornecer quaisquer argumentos acerca de minhas escolhas. Em 28.8.2007, o primeiro aniversário do blog me fez revisitar algumas postagens, tendo eu ratificado os meus pontos de vista.

Decidi voltar à questão. Passados seis anos, contudo, algumas coisas mudaram. Felizmente. As questões do abortamento de fetos anencéfalos e das pesquisas com células-tronco embrionárias foram objetos de julgamentos pelo Supremo Tribunal Federal e, em ambos os casos, a decisão foi favorável, como eu preferia. No que tange à divisão do Estado do Pará, a longa perlenga foi objeto de plebiscito em 11.12.2011. Prevaleceu a integridade do território, como eu preferia. Mas não se trata de uma questão definitiva.

Também me manifestei favoravelmente ao controle externo do Poder Judiciário. Naquele momento, o Conselho Nacional de Justiça já estava ativo, mas ganhou força ao longo dos anos, contribuindo muito para o aprimoramento do judiciário. Infelizmente, como toda e qualquer instituição que precisa legitimar a sua existência, tem seus momentos de equívoco e excesso. Não mudei de opinião sobre o controle externo. Só acho que o CNJ precisa manter o foco. A cobrança de metas de produtividade dos juízes, exteriorizadas em relatórios absurdos, é uma das demonstrações mais contundentes de seus equívocos.

Disse não à posse ou porte de arma de fogo pelo cidadão comum, situação prejudicada pelo referendo de 2005, um dos casos mais indecorosos de poder econômico interferindo no processo democrático. Prevaleceu a tibieza do Estatuto do Desarmamento, financiada pela indústria armamentista. Vale a pena permanecer vigilante, porque já se está falando em flexibilizar ainda mais o estatuto. Já se sabe quem ganha com isso.

Eu disse não às quotas raciais em universidades e concursos públicos. Quanto aos concursos, ainda mantenho minha objeção, mas em relação às quotas em universidades, o passar dos anos mostrou que a questão afrontou as certezas da classe média brasileira. Em abril deste ano, a revista IstoÉ publicou uma contundente matéria de capa (reportagem eletrônica aqui) defendendo que a controversa política pública deu certo, elevando a qualidade do ensino e reduzindo a evasão. O suposto nivelamento por baixo não aconteceu. Mesmo lutando contra várias dificuldades, p. ex. a educação prévia em escolas mais frágeis, a diferença de rendimentos acadêmico entre alunos quotistas e não quotistas é bastante similar. Foi, como disseram, um "tapa na cara da hipocrisia brasileira". Adorei isso. Inclusive como mea culpa.

Eu disse não à pena de morte, redução da maioridade penal e endurecimento da legislação penal em geral. Quanto a isso, mantenho minhas posições. Quanto mais estudo a respeito, mais me convenço.

E disse sim à clonagem humana para fins terapêuticos, à efetiva laicização do Estado, com a supressão de quaisquer práticas ou símbolos religiosos em órgãos públicos; ao reconhecimento pleno das uniões homoafetivas e ao financiamento público de campanhas eleitorais. Mantenho minhas posições.

Mostrei-me indeciso e dependente de convencimento quanto ao fim do "voto obrigatório" e à comercialização de transgênicos. Quanto ao primeiro tema, existe uma reforma política engatilhada no Congresso Nacional, que pouco avança, por razões óbvias. É um assunto que pretendo acompanhar com interesse.

Já no que tange aos transgênicos, a questão é científica. Acredito na ciência. Tomarei minha decisão assim que alguém me apresentar argumentos consistentes. Até segunda ordem, não sou avesso aos transgênicos. Até porque, hoje em dia, praticamente que se consome ou que se faz é ilegal, é imoral ou engorda.

Falta compor a minha nova lista de temas controversos. Estou pensando a respeito.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Banco de dados genéticos para combate ao crime

Inicialmente, a notícia:

EUA autorizam polícia a fazer exame de DNA de suspeito

A Suprema Corte dos EUA decidiu, nesta segunda-feira (3/6) que a polícia pode colher
amostras para exame de DNA de qualquer pessoa suspeita de haver cometido um crime
"sério" — e não apenas de pessoas já condenadas, como era a prática adotada
nacionalmente até agora, de acordo com o Washington PostLos Angeles Times e
Boston.com.
Aparentemente, a polícia decide o que é crime "sério" e quem será submetido a um exame
de DNA, porque não terá necessidade de conseguir um mandado judicial para isso.
"Quando um policial faz uma prisão e leva um suspeito à delegacia, colher uma amostra da
bochecha da pessoa com um cotonete passa a ser um procedimento comum, tal como
obter impressões digitais e tirar fotografias", escreveu o ministro relator Anthony Kennedy
pela maioria.
A decisão foi tomada pelo tradicional placar de 5 a 4, mas, desta vez, um ministro
conservador votou com a minoria liberal e um ministro liberal votou com a maioria
conservadora. Além de Kennedy, votaram com a maioria o presidente da corte John Roberts,
os ministros Samuel Alito, Clarence Thomas, todos conservadores, e o ministro liberal
Stephen Breyer. O ministro conservador Antonin Scalia escreveu o voto da minoria e foi
apoiado pelas ministras liberais Ruth Bader Ginsburg, Sonia Sotomayor e Elena Kagan.
Scalia não apenas votou com a minoria, mas amplificou sua discordância lendo um sumário
de seu voto no Plenário. "A corte abandonou um preceito fundamental da Quarta Emenda da
Constituição, que proíbe o governo de fazer buscas em cidadãos para obter provas, sem
uma causa razoável para acreditar que essas provas serão encontradas", ele escreveu.
"E não se enganem: a partir de agora, se você for preso por qualquer razão, esteja a polícia
certa ou errada, ela vai colher amostras para fazer um exame de DNA e vai colocá-lo em um
banco de dados nacional", afirmou Scalia em sua declaração.
Só o FBI já tem um banco de dados nacional com resultados de exames de DNA de 11 milhões
de pessoas, das quais 1,1 milhão foram efetivamente condenadas por crimes. Agora, esse
número deve crescer muito, dizem os jornais, porque os órgãos de segurança de todos os
estados vão adotar o procedimento.
Até agora, 28 estados e o governo federal autorizavam a colheita de amostras de suspeitos
para exame de DNA. Com a decisão da Suprema Corte, o procedimento passará a ser
nacional, como já era o caso de exames de DNA de pessoas condenadas.
Os ministros vencedores argumentaram que o exame de DNA vai ajudar a polícia a vincular
criminosos a seus crimes e também a identificar inocentes. Mas a melhor utilidade dos exames
de DNA de todas as pessoas que são levadas à delegacia, por qualquer razão, é tentar
encontrar autores de crimes que nunca foram resolvidos.

Esse foi o caso que chegou perante a Suprema Corte. Em 2009, Alonzo Jay King Jr., de
Maryland, foi preso por roubo. Um exame de DNA, feito antes mesmo de ele ser julgado, o
vinculou a um crime de estupro de uma mulher de 53 anos. O estupro, seguido de roubo,
ocorrera há seis anos, mas a polícia ainda não havia encontrado o culpado.
Um tribunal superior de Maryland decidiu que os direitos de King Jr. à privacidade e também
de não ser submetido a buscas irrazoáveis, suspeitas e sem mandado judicial foram violados.
Com a decisão desta segunda-feira, a Suprema Corte anulou a decisão do tribunal de
Maryland e restabeleceu a condenação de King Jr. à prisão perpétua.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.

Revista Consultor Jurídico, 3 de junho de 2013
A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos pode surpreender alguns, porque aquele país é muito convicto no que tange à proteção das liberdades individuais. Essa é a sua perspectiva político-jurídica originária. Contudo, aquele também é o país berço dos chamados movimentos de lei e ordem, dentre os quais se destaca a mundialmente conhecida política de tolerância zero, que os brasileiros querem porque querem importar.

O fato é que, aparentemente, existe uma tendência mundial ao incremento da repressão penal. Embora tal tendência seja muito mais perceptível e raivosa nos países menos desenvolvidos socialmente, como o Brasil, ela também pode ser percebida em nações de grande desenvolvimento social e educacional, como a Noruega. Quando Anders Breivik, aquele psicopata atirador que matou 77 pessoas numa só ação, foi condenado a 21 anos de prisão, pena máxima prevista na lei penal norueguesa, houve quem propusesse mudanças na lei, para torná-la mais severa. A diferença em que os escandinavos não têm sangue nos olhos nem necessidade de impor sofrimento, por isso a discussão, lá, deve ser feita em termos civilizados. Espero.

O maior problema da decisão ora sob comento é que, como o sistema jurídico estadunidense pertence à common law, a matéria não aparece disciplinada em lei. Não existe uma norma geral e abstrata dispondo sobre os casos em que a coleta de DNA é possível, ficando a cargo do policial de serviço no dia fazer esse julgamento, baseado na única premissa estabelecida: o crime precisa ser "sério".

De um lado, vemos o perigosíssimo fenômeno do Estado policial. Conceder poderes excessivos às polícias é um dos passos mais resolutos para a oficialização da violência e a supressão de direitos individuais, mesmo os mais comezinhos. Isso pode não ser uma realidade tão flagrante nos Estados Unidos, onde as instituições são mais sérias e respeitáveis, de um modo geral (o que não impedem os abusos, obviamente em relação aos grupos mais vulneráveis), mas aqui no Brasil é uma porta larga e aberta para o inferno.

A par disso, a "seriedade" do crime está longe de ser um critério razoável. Ninguém discutirá que um homicídio, um estupro ou um sequestro são crimes graves. Mas, pensemos, p. ex., numa violação de domicílio. No Brasil, é classificado como crime contra a liberdade individual e tem pena máxima cominada de 3 meses de detenção. Tecnicamente, constitui infração de menor potencial ofensivo, nos precisos termos da Lei n. 9.099, de 1995. Mas não duvide que muitos policiais interpretariam a ação de invadir uma residência como crime sério. Afinal, mesmo que nenhum outro dano seja causado a terceiros (o sujeito, sei lá, invadiu porque queria tirar uma soneca embaixo de uma árvore no quintal), poucas coisas impactam tanto o indivíduo quanto descobrir que sua própria casa não é segura como se pensava. E aí vêm as elucubrações consequentes: ele não roubou nem feriu ninguém, mas podia tê-lo feito.

Fica a advertência do ministro Antonin Scalia: a partir de agora, haverá mais investigações iniciadas sem causa provável. Esta não é uma iniciativa que se deva copiar. Mas logo surgirá, por aqui, gente entusiasmada com a ideia.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Limites do habeas corpus

Quando concebido originalmente, o habeas corpus destinava-se a proteger o indivíduo de ilegalidades que comprometiam a sua liberdade de ir a vir, submetendo-o a prisão injustificada. Com o passar do tempo, a mudança de referenciais político-jurídicos, no sentido de fortalecer o indivíduo contra o excesso de poder do Estado, expandiu aquele remédio jurídico para outras situações, que comprometem a liberdade de modo indireto, tais como declaração de nulidade. Se um processo contém nulidade, mas pode redundar numa condenação, então ele ameaça concretamente a liberdade do indivíduo.

Sem surpresa, constatamos que muitos juízes odeiam essa expansão do HC, fazendo de tudo para limitá-lo. Recorrem ao argumento de banalização de seu uso, que parece plausível, mas mal disfarça o interesse em ter menos processos para julgar e em ver menos atos de autoridade questionados publicamente. Mesmo nos dias de hoje, a luta em favor da liberdade não é nada fácil.

Dia desses, o uso do HC sofreu um revés no Supremo Tribunal Federal. Mas o mesmo ministro Marco Aurélio, responsável pela limitação, agora defende o ponto de vista diametralmente oposto. Teve a hombridade de voltar atrás e de admitir a relevância das manifestações da "comunidade jurídica", enquanto muitos acreditam piamente que só os provimentos jurisdicionais têm dignidade para produzir o direito, revelando inacreditável desprezo, p. ex., pela doutrina.

Sob críticas cada vez mais frequentes, às vezes o STF acerta a mão com categoria.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Juiz de paz convicto

É paraense de Redenção (se não de nascimento, ao menos de atividade) o juiz de paz que teria renunciado à função para não ser obrigado a realizar casamentos entre pessoas do mesmo sexo, porque isso "fere princípios celestiais". O caso ainda está no disse-me-disse, porque o cartório do Único Ofício daquela comarca não confirma a história narrada à imprensa pelo próprio protagonista.

Os ativistas vão espumar pela boca mas, se quiserem saber, José Gregório Bento (75, ao lado em foto de João Lúcio) está corretíssimo. Não aprendemos com nossos avoengos a máxima "os incomodados que se retirem"? Pois é: ele se retirou.

"Não há lei dos homens que me obrigue a fazer aquilo que contrarie os meus princípios."

A escusa de consciência é reconhecida pelo direito, desde a Constituição de 1988. É permitido aos rapazes se recusarem ao serviço militar obrigatório, por motivos de convicção política ou religiosa. Por razões semelhantes, médicos podem recusar atendimento a pacientes, se não houver risco de morte ou de danos relevantes. Leis amparam os profitentes de religiões que impedem a existência social em certos dias e horários da semana. Se assim é, não se pode criticar uma pessoa por pleitear o exercício de uma convicção.

José Gregório é pastor evangélico e por isso considera a homossexualidade antinatural e atentatória a Deus. Abstraindo o desacerto de suas crenças, errado estaria, a meu ver, se permanecesse na função e ali discriminasse os casais homossexuais que procurassem seus serviços. Em vez disso, fez o certo: se não concorda com um ato que reconhece como obrigatório, retira-se e permite que o direito seja exercitado através de outra pessoa.

Podemos repudiar sua decisão no mérito, mas temos que reconhecer que ela é coerente. E, convenhamos, todo mundo pode ter uma ideologia para viver.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Perda do mandato (3)

Com a vasta cultura e conhecimento histórico que o notabilizam (não discuto suas ideologias), o jornalista Élio Gaspari escreveu um artigo (leia) defendendo que a cassação dos mandatos de políticos condenados no "caso mensalão" constitui e precisa constituir prerrogativa do parlamento.
Oferece razões justas e fundamentadas, que eu realmente compreendo, porque o autor da célebre tetralogia sobre a ditadura brasileira parece muito empenhado em valorizar o Poder Legislativo, em um país que tanto sofreu por causa de um regime de exceção. Mas acredito que Gaspari incorreu em um artifício falacioso para justificar seu ponto de vista. Ao fazer comparações com eventos históricos dramáticos, ele enfumaça o debate, desvia-o para um lado pelo qual não precisa seguir e substitui a força do argumento racional pelo engajamento da escolha emocional.
Beira o absurdo comparar a atitude do STF (que ainda não está certa e pode nem ocorrer) de cassar mandatos políticos a partir de uma condenação criminal transitada em julgado e o episódio de 1966, quando seis deputados foram cassados por decreto do Executivo. Lá, vivia-se um regime de exceção e o fundamento do decreto era um poder usurpado à democracia. Agora, temos um tribunal legítimo, no exercício regular de suas funções, interpretando a constituição. Mesmo que, em última análise, ad argumentandum, a corte chegue a uma decisão "errada", decerto não se poderá dizer que ela malferiu a democracia.
Em meio à profissão de fé, Gaspari finge ser objetivo:


(...) Se o Supremo decidir que os mensaleiros devem perder o mandato, cria-se um desequilíbrio entre os Poderes da República que só tem a ver com as delinquências dos mensaleiros num aspecto pontual.Estabelece-se uma norma: 11 magistrados escolhidos monocraticamente pelo presidente da República podem cassar mandatos de parlamentares eleitos pelo povo.

Para que a crítica fosse mais honesta, ele deveria dizer: 11 magistrados escolhidos monocraticamente pelo presidente da República, porque esta é a investidura determinada pela constituição, podem cassar mandatos de parlamentares ("eleitos pelo povo" é uma redundância ideológica, porque naturalmente foi o povo que elegeu os parlamentares, já que a mesma constituição baseia a democracia representativa no sufrágio universal), desde que  e somente nesta hipótese, se quisermos ser bastante enfáticos  como consequência de uma condenação criminal transitada em julgado (lembrando que as leis penais e processuais vigentes também resultaram de um processo legislativo disciplinado pela constituição).
A tudo isso deveríamos somar o fato de que as regras regimentais do STF, embora não sejam lei em sentido estrito, foram elaboradas também no exercício de competências legítimas, com assento constitucional.
No mais, considero que os argumentos de Gaspari não infirmam as ponderações que fiz na postagem anterior sobre o tema. Assim, espero que o Min. Celso de Mello retorne ao julgamento e profira o voto pela perda imediata desses mandatos, imerecidos no contexto do veredito proferido.
Por último, comparar a situação atual com a do deputado que foi preso por chamar um ditador de ditador é apelação.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Perda do mandato (2)

Segundo a assessoria de comunicação do Supremo Tribunal Federal, na ação penal sobre o escândalo do "mensalão" há quatro réus titulares de mandatos políticos, sendo três deputados federais e, o último, atual prefeito de um Município do interior do Paraná. Em relação a este, especificamente, haveria um consenso em torno da perda imediata do mandato, independentemente de qualquer providência posterior.
A diferença dele para os outros três é óbvia: o que segura os deputados federais é o art. 55, § 3º, da Constituição de 1988. Como não existe norma correlata em relação a prefeitos, não há como espernear: o acórdão condenatória transita em julgado e o mandato vai para o espaço.
Argumentar em termos de legem habemus é tão fácil quanto medíocre. Afinal, exatamente do mesmo modo que deputados federais, os prefeitos também se encontram inseridos num contexto de democracia representativa; também são mandatários do povo para o exercício de uma função pública. Como qualquer chefe do Poder Executivo, têm mais poder do que um parlamentar. Até mesmo sob o aspecto simbólico, o eleitor médio pode subestimar a importância de eleger um parlamentar, mas não age do mesmo modo em relação ao administrador de sua cidade, Estado ou país. Por conseguinte, se a questão é assegurar a soberania popular, respeitar o poder do voto e, mesmo, homenagear o princípio da independência dos poderes, então o mesmo tratamento deveria ser dado a todos os réus: ou a decisão do STF não basta à perda de nenhum dos quatro mandatos ou basta para todos.
Entender diferentemente nos joga de volta à questão de que tudo se resume a uma questão de norma particular. E não se diga que se trata de uma norma constitucional e que, por isso, não poderia ser questionada. Afinal, a Constituição brasileira conseguiu a proeza de, no mesmíssimo dispositivo, consagrar o princípio da intranscendência da pena e, imediatamente a seguir, autorizar que a perda de bens, como sanção criminal, pode atingir os herdeiros e sucessores do criminoso. Uma insanidade, mas está lá. Salta aos olhos, portanto, que o constituinte da década de 1980 não foi coerente e lúcido em todos os momentos.
Mantenho minha posição. Vamos ver se a controvérsia será dirimida amanhã, como previsto. E se for, vamos ver se o presidente da Câmara dos Deputados terá o topete de negar cumprimento à ordem do STF. Se o fizer, por respeito à Constituição e ao Estado Democrático de Direito, vou esperar que seja responsabilizado inclusive criminalmente por tão tresloucado gesto.

Perda do mandato

Tenho mantido distância desses debates ridículos que glorificam aqueles que votam pela condenação e punições exemplares para os envolvidos no "caso mensalão" e demonizam os que votam pela absolvição. Repudio a classificação estúpida entre "patriotas" e "vendidos". Tento encarar a questão de modo mais objetivo. Contudo, um ponto sempre foi singular para mim: a controvérsia, que a meu ver não deveria existir, acerca da perda dos mandatos de parlamentares condenados.
Na semana passada, mais um dissenso entre relator e revisor da ação penal envolveu justamente esse tema. Ontem, foi o dia de os demais ministros debatê-lo.
O art. 92, I, do Código Penal  é expresso ao determinar que constitui efeito da condenação "a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo: a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a administração pública; b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a quatro anos nos demais casos". Os réus do processo em apreço se enquadram nos dois casos.
A tese conveniente é de que o Poder Judiciário não pode determinar a perda dos mandatos porque isso violaria uma prerrogativa do Legislativo, entrando em cena o princípio da independência entre os poderes. Esquecem os defensores dela, entretanto, que ao agir dessa forma, os ministros não estariam fazendo outra coisa senão aplicar a lei e, por conseguinte, respeitar a vontade do legislador, que opera (ou deveria operar) de modo impessoal e atemporal.
Para mim, não há outra interpretação possível: uma vez transitada em julgado a decisão condenatória, a perda do mandato é uma simples consequência desse fato. Remetê-la à deliberação da Câmara dos Deputados é um absurdo por qualquer ângulo que se olhe. Conferir ao parlamento o poder de deliberar sobre o tema implica em facultar-lhes a manutenção dos mandatos. Afinal, porque se ele fosse obrigado a meramente convalidar a deliberação judicial, estaríamos diante de um processo inútil, porque já conhecido o seu resultado, havendo pura procrastinação. Nesse meio tempo, enquanto pende a decisão da Câmara, os condenados não apenas estariam recebendo seus generosos subsídios, pagos pelo contribuinte, quanto votariam nas matérias de maior interesse do país. E eu não quero um político corrupto e condenado em definitivo ajudando a decidir nada sobre a vida do país.
Por outro lado, se entendermos que o Legislativo pode rejeitar a decisão do STF e manter os mandatos, aí sim teríamos a violação ao princípio da independência dos poderes, porque se estaria negando validade a um veredito regularmente obtido.
O problema reside no fato de que o art. 55, § 3º, da Constituição determina que, nos casos de condenação criminal transitada em julgado, "a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa".
Ou seja, se fôssemos analisar a literalidade da lei, realmente a decisão seria do parlamento. Mas além de que precisamos analisar as normas de modo sistemático e não isolado, temos que ponderar as razões antes apresentadas e, particularmente, lembrar o corporativismo cínico que levou à elaboração de uma norma tão maliciosa. Devemos lembrar, inclusive, que deputados federais e senadores eleitos para o exercício de mandatos comuns foram alçados à condição de Assembleia Nacional Constituinte e trabalharam não como cidadãos organizando um país, mas como políticos de carreira de olho no próprio umbigo.
Acima de tudo, deve-se pensar que, se o mandato não for perdido imediatamente, indivíduos condenados por crimes contra a Administração Pública, dentre outros, continuarão em um dos mais altos postos da Administração Pública, mesmo na "iminência" de cumprir uma pena longa, em meio fechado. É absolutamente contraditório e uma violência contra todos os valores de uma ordem democrática.
É isso que dá mandar o cachorro tomar conta da linguiça.
Falta um voto para que a questão seja resolvida pelo STF. O voto será do decano da corte, Min. Celso de Mello, que segundo consta já teria sinalizado pela perda imediata dos mandatos. Espero que pelo menos desta vez eu esteja filiado à tese que prevaleça.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

As cotas e suas cotas

LEI N. 12.711, DE 29 DE AGOSTO DE 2012

Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. 
A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita.

Art. 2º  (VETADO).

Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Parágrafo único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.

Art. 4º As instituições federais de ensino técnico de nível médio reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso em cada curso, por turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que cursaram integralmente o ensino fundamental em escolas públicas.
Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita.

Art. 5º Em cada instituição federal de ensino técnico de nível médio, as vagas de que trata o art. 4º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Parágrafo único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser preenchidas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino fundamental em escola pública.

Art. 6º O Ministério da Educação e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, serão responsáveis pelo acompanhamento e avaliação do programa de que trata esta Lei, ouvida a Fundação Nacional do Índio (Funai).

Art. 7º O Poder Executivo promoverá, no prazo de 10 (dez) anos, a contar da publicação desta Lei, a revisão do programa especial para o acesso de estudantes pretos, pardos e indígenas, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, às instituições de educação superior.

Art. 8º As instituições de que trata o art. 1º desta Lei deverão implementar, no mínimo, 25% (vinte e cinco por cento) da reserva de vagas prevista nesta Lei, a cada ano, e terão o prazo máximo de 4 (quatro) anos, a partir da data de sua publicação, para o cumprimento integral do disposto nesta Lei.

Art. 9º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Obstáculos jurídicos removidos, mas nem pense que a polêmica terminou. Pelo contrário. Ainda que sem demandas judiciais, ou justamente por causa disso, agora mesmo é que os candidatos a cursos superiores vão se engalfinhar. Espero que só no plano das ideias.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

O improvável aconteceu

O lado do bem comemora.
Foto: Renato Araújo
E não é que a Câmara dos Deputados votou mesmo, e ainda por cima aprovou, ontem, a PEC 438/2001, a famosa "PEC do trabalho escravo"? Fiquei passado, mas é verdade.

Tratando-se de proposta de emenda constitucional, há necessidade de duas votações em cada casa legislativo. O Senado já tinha aprovado e a própria Câmara, em primeiro turno, esta ocorrida em agosto de 2004 (e mesmo assim à custa de uma chacina, do contrário não teria passado). Foram necessários quase oito anos de malandragens para que a tchurma da criminalidade no campo, aboletada em mandatos políticos conseguidos graças a dinheiro e não por mérito ou interesse público, perdesse a quebra de braço intensificada nas últimas semanas.

A guerra, contudo, ainda não terminou, porque o texto da PEC foi alterado e isso exige nova tramitação perante o Senado, onde as forças do mal certamente farão as suas ofertas. Mas como devemos viver um dia de cada vez, pelo menos hoje temos o que comemorar. Inclusive porque ninguém precisou ser assassinado, desta vez.

A par disso, as declarações dos ruralistas deixam claro o que eles são e que interesses representam. Quando um deles diz que apenas 29 comparsas tiveram "coragem de assumir seu voto" em vez de ceder à pressão pública, mostra de uma só vez que a bancada ruralista conhece os anseios sociais mas não se importa com eles, e que se acovarda diante das consequências político-partidárias, ainda mais em se tratando de um ano eleitoral. Quando outro sentencia com um "perdemos", deixa claro qual é o jogo que jogam. Uma vergonha.

O que eu acho mais engraçado é que, no meio dessa cambada, há gente que abre a boca para dizer que não existe trabalho escravo no Brasil. Que tudo quanto se diz a esse respeito é deturpação das esquerdas e irresponsabilidade de certos setores da imprensa. Mas se eles estiverem certos, então não há motivos para preocupação, porque nesse caso a PEC nunca será aplicada! Simples assim. Se todos os agroempresários são honestos, bonzinhos e humanitários, nenhum explora seres humanos e nenhum perderá suas terras.
Lindo, não?

Fonte: http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/TRABALHO-E-PREVIDENCIA/418078-CAMARA-APROVA-PEC-DO-TRABALHO-ESCRAVO.html

***

Para que você tenha uma ideia do meu interesse sobre o tema, existem atualmente 66 postagens neste blog classificadas sob o marcador "trabalho". Destas, nada menos do que 12 versam sobre trabalho escravo (agora, claro, 67 e 13):
 Dá para perceber minha indignação com esse delito nefando e minha satisfação de hoje.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Tudo pelo trabalho escravo

Responda com sinceridade: existe alguma razão para que não se aprove, no Congresso Nacional, uma medida destinada a coibir o trabalho escravo que não possa ser encarada como desejo de manter essa ignomínia como está?
Nao há meio termo: ou você combate a exploração ou é um canalha que tem interesse nela, mesmo que não seja pessoal. Simples assim.
Quando soube que a PEC 438/2001 entrara na pauta da Câmara dos Deputados, obviamente desconfiei. Nada mais óbvio: os famosos ruralistas, que em certa ocasião prometeram as pragas do inferno para alguém que fez o trocadilho "bancada vigarista", deram um jeito de impedir a votação. E como não podem simplesmente admitir que estão a serviço (ou são, eles mesmos) dos latifundiários que não dão a mínima para a dignidade humana, inventam uma desculpa republicana. A desculpa da vez é condicionar a aprovação da PEC a um projeto de lei que defina claramente o que é trabalho escravo e sob que condições será feita a expropriação das terras onde o crime seja perpetrado.
A intenção é clara e única: aprovar a PEC para inglês ver, simulando preocupação com a cidadania, paera angariar dividendos políticos, porém deixando a norma inexequível, à espera de uma lei complementar que não será feita nunca. Os 11 anos de emperramento só da PEC 438 dão uma prova inequívoca disso. Além, é claro, da presença de parlamentares pessoalmente acusados de explorar trabalho em condições análogas à escravidão.
Nos Estados Unidos, parlamentares nessa condição teriam suas carreiras políticas aniquiladas. No Japão, eles se suicidariam. Neste ponto, gosto muito mais dos americanos. E amo os japoneses.
Vou começar a propor que, se os ruralistas amam tanto a terra, que se enfiem nela de uma vez. A sete palmos, no mínimo.

Convicções

Noticia a jornalista Franssinete Florenzano, em seu blog, que o juiz José Jackson Sodré Ferraz, da 3ª Vara do Tribunal do Júri de Belém, autorizou uma mulher a proceder à interrupção da gestação de feto anencéfalo. No curso do processo, porém, a promotora de justiça Rosana Cordovil se manifestou contrariamente, alegando que seu parecer se pautava em suas "convicções religiosas". A informação pode ser confirmada no site do Tribunal de Justiça do Estado.
Quem acompanha o blog já está cansado de saber o que penso a respeito e os meus argumentos. Admito uma verdadeira exaustão em voltar ao mesmo ponto, como se o tema já não tivesse sido tão debatido nos últimos anos. Ao decidir favoravelmente ao pleito, o juiz nada mais fez do que efetivar uma norma que foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal há alguns dias, em julgamento definitivo. Aí vem a promotora, que é sabidamente uma profissional séria e competente, violar os seus deveres de fiscal da lei, porque ao invés de se pronunciar sobre se a lei estava ou não sendo cumprida de forma correta, pautou-se em suas convicções religiosas. Lamentável.
Sei que, ao tomar posse no cargo, o indivíduo jura defender a Constituição e as leis do país. Nunca soube que, no Brasil republicano, alguém jurasse defender, também, o seu próprio credo religioso. Se os dois valores entram em conflito, o agente público deve fazer sua escolha, lembrando que, na ordem jurídica civil, as escusas de consciência são bastante limitadas, em nome do interesse público.
Um médico pode, p. ex., recusar atendimento a um paciente por motivo de foro íntimo, mas não em caso de risco de morte. Ele deve antes tirar o paciente da crise para somente depois transferi-lo a outro profissional. Quem o diz é o próprio Conselho Federal de Medicina, responsável pela elaboração do Código de Ética Médica.
Um cidadão pode alegar convicções religiosas, políticas ou filosóficas para eximir-se do serviço militar obrigatório, como prevê o art. 143 da Constituição de 1988, mas para tanto será obrigado a cumprir um serviço civil alternativo, submetendo-se às exigências da Lei n. 8.239, de 1991. Não basta não estar a fim.
Por conseguinte, entendo que a nobre promotora, sentindo-se afetada em seus valores religiosos, deveria afastar-se do processo, valendo-se da figura da suspeição por foto íntimo. Jamais poderia, entretanto, agir em nome da instituição Ministério Público, fundamentando a sua manifestação em uma orientação religiosa que pertence a ela, não ao órgão, muito menos ao Estado.
Felizmente, o juiz fez o que era certo. Por "certo" não me refiro a autorizar ou proibir a interrupção da gestação; refiro-me a cumprir as leis deste país, como já decidiu o STF. Quem não concordar com isso tem uma última trincheira: lutar para que o Brasil ganhe uma nova Constituição.
Boa sorte.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Contra os motoristas bêbados

O tema do combate ao ato de dirigir alcoolizado está na ordem do dia, desde que o STJ decidiu, há poucos dias, estabelecer apenas os exames químicos através de etilômetro ou sangue como prova idônea para a responsabilização criminal do condutor. Mas a polêmica é mais antiga, tanto que já havia, no Congresso Nacional, projeto de lei tornando mais duras as regras aplicáveis à matéria. Eis que hoje me deparo com dois artigos que podem lançar algumas luzes, justamente no sentido que, suponho, a sociedade deseja  e os bebedores irresponsáveis não.

O juiz de Direito no Acre Hugo Barbosa Torquato Ferreira, em uma análise muito bem elaborada, mas naturalmente sujeita a ponderações cuidadosas, sustenta que o princípio nemo tenetur se detegere (não autoincriminação) se aplica a situações em que ao próprio suspeito seja exigida uma conduta ativa, porém não nos casos em que ele seja sujeito meramente passivo de uma ação da autoridade, como seria na obrigação de se submeter a revista pessoal, prevista em lei. Soprar no etilômetro é uma conduta ativa, que poderia ser recusada mas, nessa hipótese, caberia a coleta compulsória de sangue. Para fundamentar sua ideia, invoca um precedente, um habeas corpus do STJ, no qual suspeito de transportar drogas no estômago foi submetido a exame radiográfico, entendido como extensão da revista pessoal, e a diligência foi considerada válida.

A tese é controversa, mas elegante.

De outra banda, o engenheiro e jornalista especializado no setor automobilístico Fernando Calmon mostra seu conhecimento sobre a realidade de outros países, destacando, p. ex., que a maioria dos 50 Estados americanos condiciona a habilitação do indivíduo a sua concordância quanto à realização de testes de alcoolemia. Em caso de recusa, a habilitação pode ser suspensa por até 90 dias, sem embargo da prisão em casos de maior gravidade, tais como acidente, excesso de velocidade, transporte de crianças ou o condutor já tenha sido condenado por dirigir sob o efeito de álcool ou outras drogas.

A ideia merece elogios. Se a concordância prévia, expressa e de efeitos permanentes constitui requisito da habilitação (tal como, no Brasil, a idade mínima de 18 anos e a conclusão, com proveito, do curso de formação nas condições regulamentadas pelo Conselho Nacional de Trânsito), então a qualquer momento que seja exigido pelo autoridade, o condutor será obrigado a testar os níveis de álcool em seu organismo. Isto não resolve a prova criminal, se o suspeito se recusar. Mas retirará dele o direito de conduzir veículos, o que já ajuda, e muito, porque elimina o fator de risco (se o delinquente obedecer à restrição, claro).

Por mim, o modelo estadunidense deveria ser aplicado imediatamente no Brasil, valendo para os novos condutores e, para os atuais, a partir da primeira renovação da licença.

Mas aqui é Brasil e  sabe como é  os motoristas que tivessem suspensas ou cassadas as habilitações logo ingressariam em juízo, alegando direito adquirido, haja vista que, ao tempo de sua primeira habilitação, não havia a regra sob comento. Uma tese a meu ver canhestra, mas aposto que haveria um risco enorme de ela ser sufragada, até mesmo na corte constitucional. Aí, meu amigo, o jeito seria beber para relaxar. Solução que não atenderia àqueles que, como eu, não consomem álcool. Para nós, só restaria torcer para não cruzarmos nosso caminho com os que consumiram. E boa sorte.