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quinta-feira, 31 de julho de 2014

Senzala do Murutucu

Reproduzo na íntegra a matéria do Diário do Pará pelo grande interesse que tenho no assunto e na pesquisa do Prof. Diogo Costa. O Murutucu (que eu saiba, esta é a grafia correta) é pauta este blog.

Senzala do Murucutu pode ter sido encontrada

Quinta-Feira, 31/07/2014, 06:17:02 - Atualizado em 31/07/2014, 06:18:21


Senzala do Murucutu pode ter sido encontrada (Foto: Alzyr Quaresma)
Pesquisadores podem ter localizado a senzala do histórico engenho do Murucutu (Foto: Alzyr Quaresma)
















Ao acordar todos os dias você nem se percebe que está escrevendo a história. O que hoje é algo comum do cotidiano pode se tornar peça rara para entender o modo de vida de um povo. As descobertas realizadas nas ruínas do engenho do Murucutu, em Belém, mostram que itens como um cachimbo, uma moeda, pedaços de objetos de metais e vidro e que parecem simplórios aos olhos leigos são tesouros que, muito mais do que o valor econômico que carregam, são fragmentos de uma história que alguém não contou e que clama por uma preservação responsável do passado.
Após quatro semanas de escavações durante o mês de julho, a equipe de Diogo Costa, arqueólogo e professor da pós-graduação em Antropologia da UFPA, conseguiu mapear o local onde seria a possível senzala do engenho, também de uma lixeira que haveria no local e itens variados que agora serão estudados em laboratório. “Todo o material encontrado como louças, vidros, peças em metal a gente usa para investigar o cotidiano das pessoas que moravam aqui. Com eles talvez possamos entender melhor questões sobre as práticas de alimentação da época, através da análise do talher, ou os vidros podem nos ajudar a identificar práticas de higiene. Os objetos de metal podem ser o caminho para verificar os tipos de usos medicinais que eram feitos. No caso da louça podemos ver se era de valor alto ou baixo, e qual era o status econômico das pessoas que moravam aqui. Este cotidiano não fica registrado em documentos históricos, porque faziam parte de um cotidiano. Hoje mesmo, se você olhar o lixo de uma pessoa pode descobrir o que ela fez o dia todo. É esse princípio que a gente usa na arqueologia”, esclarece o pesquisador.
O projeto dele partiu de um objetivo - encontrar o que seria a senzala do engenho - e felizmente há muitas evidências de que o local realmente tenha sido localizado. De brinde, os pesquisadores encontraram a lixeira e outros itens. Com uma foto de 1860 nas mãos e estudos que indicavam o que seria esse espaço, ele partiu para a escavação.
“Houve então a confirmação de que existia um prédio em uma área próxima de onde fica a capela. A princípio não sabemos qual era a função dele dentro do engenho, mas depois do laboratório é que vamos confirmar se era realmente a senzala ou não. A ideia agora é analisar este material e tentar descobrir se pertencia só aos escravos indígenas, ou aos africanos, ou a ambos, além de responder seeles moravam juntos, o que eles faziam no dia a dia”, detalha o arqueólogo.
“O material encontrado ainda vai ser analisado em laboratório e isso pode trazer resultados que nem imaginamos, mas ainda vai demorar no mínimo mais seis meses de estudos. O que podemos adiantar agora, com o encerramento desta etapa de campo, que corresponde a apenas 10% do trabalho que fazemos na arqueologia, é a atenção que estamos conseguindo a respeito deste sítio.
Queremos provocar as pessoas a manter esse espaço para ser usado como estudo, porque o uso do espaço ajuda na preservação. Manter simplesmente uma coisa preservada, mas fechada e longe das pessoas, não faz com que ela se torne parte da vida delas”, explica o professor que levou para as escavações de sua pesquisas os acadêmicos envolvidos no projeto, outros pesquisadores e os graduandos e pós-graduandos de Antropologia da UFPA em Arqueologia Histórica, transformando a iniciativa em um sítio-escola para treinamento dos alunos no método que trabalha as descobertas em sítios pós-coloniais, após a chegada dos europeus.
O projeto continua e a proposta é que se perdure por mais dois anos e com mais escavações. “Vamos usar esse espaço como estação científica para muitos alunos não só da arqueologia, mas de outras áreas. A arquitetura pode trabalhar com as ruínas, o pessoal da geologia com o material que está sendo extraído daqui, os biólogos poderiam trabalhar com o manejo da área, já que esse lugar foi usado a partir de 1930 como campo de estudo da Embrapa, então isso é uma história ambiental do cultivo de alimentos também”, planeja Diogo.

Pesquisa terá mapa preciso da área

Em parceria com a equipe de pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi, o projeto de pesquisa arqueológica nas ruínas do Murucutu ganhou equipamentos que ajudaram na realização do levantamento topográfico da área e mapeamento das estruturas que ainda estão erguidas. “Com isso vamos ter um mapa bem preciso dessas evidências. Tudo que foi descoberto nas escavações já vai estar relacionado com esse mapeamento, o que é um avanço fantástico na documentação do sítio do engenho do Murucutu”, comemora Fernando Marques, pesquisador em arqueologia do Museu Emílio Goeldi, e que há 31 anos tem contatos com pesquisas naquelas ruínas.
“Experimentamos equipamentos da geofísica para não utilizar escavação, um GPR, que é uma espécie de radar que passa e identifica as anomalias na terra. Percebemos uma área que apresentou bastante anomalia e que indicou a necessidade de escavação neste setor.
Outro equipamento chamado magnetrômeto também indicou as anomalias na área. Além disso, a fotografia que foi feita por Felipe Fidanza, que se estabeleceu em Belém no século 19, documenta o aspecto do engenho neste período e mostra a casa grande (que fica atrás da capela e que depois foi demolida em um acidente em 1995), a própria capela e um prédio que supostamente seria a senzala, praticamente neste local, compatível com as anomalias registradas. A fotografia é uma fonte fiel, pois, na época, não era manipulada e por isso é muito fidedigna. Ainda bem que Fidanza fez várias fotos de Belém desta época e felizmente esteve no engenho”, acrescenta o arqueólogo.
“As fotos mostram coisas interessantes, como o traço da casa grande, bem característico de um dos seus proprietários, o arquiteto italiano Antônio Landi. Ele comprou este lugar em 1776 e morreu aqui em 1791. Por isso aqui também tem este aspecto arquitetônico a ser destacado e que contribui mais ainda para a valorização deste lugar. Existe até uma hipótese de que o corpo dele possa estar aqui, mas também há notícias de que ele estaria enterrado na igreja de Sant’Ana, que era a igreja de sua predileção, mas isso são coisas ainda a serem investigadas e que a história pode responder e subsidiar para a pesquisa da arqueologia poder comprovar futuramente”, projeta o arqueólogo.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Só eu posso pensar se Deus existe

O título desta postagem remete à canção "Cérebro eletrônico", de Gilberto Gil, e aqui foi destacada para dizer que, se a liberdade de expressão no Brasil é um direito controverso, imagine na Indonésia, maior país insular do mundo, localizado entre o sudeste asiático e a Austrália. Seus mais de 230 milhões de habitantes precisam seguir à risca as disposições do Islamismo, sob pena de prisão.

O crime do momento foi praticado por um homem de 31 anos, identificado apenas como "Alexander". E consistiu em afirmar, em publicações no Facebook, que Deus não existe, citando trechos do Alcorão para justificar o seu ateísmo. O resultado foi imediato: o rapaz foi preso (as autoridades falam em "custódia protetora", que tal?), foi demitido do serviço público e será processado, correndo o risco de condenação a até 5 anos de prisão.

Nem vale a pena dizer o quanto isso é absurdo, mas se trata da minha mentalidade ocidental, claro. E existe a autodeterminação dos povos. Seja como for, prefiro aqui.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Além da intolerância

Senadora Marta Suplicy, relatora do projeto,
durante a sessão (foto da Agência Senado).
Como 8 de dezembro não é um feriado nacional, o Congresso Nacional estava ativo (ao seu modo) ontem, quando a Comissão de Direitos Humanos do Senado se reuniu para discutir, mais uma vez, o projeto de lei que criminaliza a homofobia. No plenário, dois grupos interessados rivalizavam: de um lado, representantes dos grupos que lutam pelos direitos dos homossexuais; de outro, religiosos evangélicos.

Já dizia Winston Churchill (salvo engano) que a democracia não é boa, mas que nunca inventaram nada melhor. Deveras. Por isso, devemos conviver com situações que me parecem inaceitáveis, o que explica a palavra "interessados" ter sido destacada no parágrafo anterior.

Explico. Grupos gays podem ser considerados interessados no projeto sob discussão? Sim, claro. É deles que estamos falando. É sobre seus direitos de cidadania, prerrogativas familiares, acesso à justiça, etc. São tão interessados quanto os maiores de 60 anos foram em relação ao Estatuto do Idoso e a malta de torcedores de futebol, no que tange ao Estatuto do Torcedor. Mas e os evangélicos? São interessados no projeto por quê? Já bati cabeça, até perdi um tempo do meu sono ontem à noite refletindo sobre isso e não encontrei justificativa.

Estou cansado de repetir (com a sensação de que só eu ouvi falar disso) que o Brasil é, por autoproclamação feita na Constituição de 1988, um Estado laico. Tudo bem que soa no mínimo estranho que sejamos um Estado laico "sob a proteção de Deus" (preâmbulo da Carta Política), mas vá lá, que Deus nos protege mesmo que não acreditemos nele. No entanto, deveria ser proibido, tem que ser proibido inexoravelmente que qualquer restrição de fundo religioso seja imposta a qualquer pessoa que não seja voluntariamente profitente do respectivo credo.

As regras da minha casa não valem na casa do vizinho. As regras do seu clube social não valem nos demais clubes da cidade. As regras do basquete não são aplicáveis à equitação. Por que, diabos, uma pessoa tem que ser guiada por regras de um culto que ela não reconhece, na estrita medida em que o ordenamento jurídico brasileiro oficialmente não privilegia culto algum?

A questão se torna ainda mais grave quando se lembra que apenas a Igreja Católica e os segmentos evangélicos têm voz ativa. A primeira é a mais forte, pela tradição; os demais, são mais organizados para eleger representantes (as tais bancadas evangélicas, que não fazem o menor sentido para mim). Todas as demais religiões são claramente menosprezadas e nada apitam, muito embora sejam justamente as que fazem o certo: ficam ocupadas com seus assuntos internos e não com a política nacional.

Com direito ao cântico-clichê "Glória, glória, aleluia", a sessão da Comissão de Direitos Humanos quase virou um culto evangélico, à frente o Senador Magno Malta, que dispensa apresentações. Absurdo. Digam o que disserem, é um absurdo. Direitos de cidadania só deviam conhecer uma única bíblia: a Constituição de 1988. E mais nada.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Advogado de partido

É isso que dá colocar um advogado acostumado a defender partidos políticos e seus representantes perante a Justiça Eleitoral na função de Ministro do Supremo Tribunal Federal.

O cidadão ao lado do ministro está empolgadíssimo.
 Em seminário sobre a reforma do Código Eleitoral, realizado ontem, o ministro, que também atua perante o Tribunal Superior Eleitoral, defendeu a tese de criminalização da política e do político, que seria uma tendência crescente em nossa sociedade. Segundo ele, a criminalização do político é uma "forma indireta de criminalizar o eleitor" que, afinal, é o titular do poder político do qual o eleito é apenas representante.
Faz-me rir.
Se o ministro dissesse que o eleitor sai prejudicado porque o mandatário por ele escolhido fica impedido de exercer seu mandato, vá lá. Mas mesmo esta afirmação precisaria ser interpretada, porque a democracia representativa não se esgota no efetivo exercício da função por quem foi eleito. Ao menos em tese, quando vota, o eleitor tem a expectativa da boa representação, o que implica no cumprimento das promessas de campanha e na gestão honesta e diligente do interesse público. Além disso, o candidato sempre é eleito para um jogo que tem regras, as quais ele jura solenemente que vai cumprir. Caso se desvie disso, também faz parte do jogo que seja afastado da função.
Toffoli então apela e fundamenta sua ideia na afirmação de que o regime democrático já cassou mais mandatos e candidaturas do que o regime militar. Aparentemente, quer minar a credibilidade do Judiciário Eleitoral, em vez de defendê-la. Sem nenhum compromisso histórico, ignora — propositalmente, com certeza — que os militares cassavam direitos políticos para minar resistências ao regime. Eram atos de violência e arbitrariedade, típicos de um Estado de exceção. Agora, os cassados são aqueles que se envolveram em escândalos de todo tipo, gente que fez por merecer a punição. Querer comparar os celerados de hoje com os perseguidos do passado é, no mínimo, não temer o ridículo.
E falta ao ministro senso de realidade, também. Neste país, é muito difícil cassar um político. Há muitos acusados, menos processados e poucos punidos. Dentre estes, é comum o retorno triunfal à atividade política, com o eterno discurso de ter sido absolvido no único julgamento que interessa — o do povo. Repugnante. Logo, numa conjuntura adversa à democracia como a nossa, se chegamos a números elevados, é porque a bandalheira corre solta, mesmo. Muito além dos crivos larguíssimos da Justiça Eleitoral e das instâncias políticas.
Para arrematar, as teses de Toffoli foram secundadas pelo também Ministro do STF Gilmar Mendes e pelo ex-integrante daquela corte e ex-ministro tucano e petista Nelson Jobim que, digamos, em matéria de isenção... Ah, você entendeu.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Um pouco sobre a censura chinesa

Custa-me crer que, em pleno ano 2011, ainda haja países de grandes proporções no mundo que sustentem uma estrutura de poder antidemocrático semelhante às grandes ditaduras que, não à toa, passaram à História, porque não sobreviveram. Mas é assim que vive o imenso paradoxo chamado China, que se diz uma comunista tradicional, mas desenvolve uma economia com todos os elementos crueis do capitalismo, como a concentração de renda, a miséria de amplas parcelas da população e até a exploração do trabalho em circunstâncias, digamos, não exatamente livres.
De permeio, o patrulhamento ideológico diuturno e enlouquecido, que impede o cidadão chinês de escutar certas músicas, ver certos filmes, acessar certos conteúdos na Internet. Tudo em nome da autoridade do governo ou do partido ou, o que é ainda mais alucinado, em nome de políticas de higienização mental hoje quase inacreditáveis. E tudo acontece agora, neste momento, como no caso dos filmes brasileiros vetados num festival de cinema... brasileiro!
O negócio é tão radical que, se os censores chineses tomassem conhecimento deste humilde blog paraense, vendo esta postagem, eu estaria automaticamente proscrito. Eles já não gostam muito de blogueiros. Minha sorte é que não pretendo visitar aquele país, mesmo...
Aliás, não é a primeira vez que escrevo coisas que não soariam bem para o governo chinês.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Voto dos presos provisórios

Conversei hoje cedo com o Des. João Maroja, presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Pará. Ele me falou sobre a Resolução n. 23.219, do Tribunal Superior Eleitoral, que tem tirado o sono de quem precisa organizar as eleições do próximo mês de outubro. Ela "dispõe sobre a instalação de seções eleitorais especiais em estabelecimentos penais e em unidades de internação de adolescentes".
A Constituição de 1988 prevê a suspensão dos direitos políticos em caso de "condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos" (art. 15, III). Não há nenhuma restrição no que tange a presos provisórios. Quando estes não votam porque impedidos pelo Estado, compromete-se a democracia representativa.
Em que pese a iniciativa ser louvável, não levou em consideração os gravíssimos problemas de infraestrutura, logística, custos e, principalmente, segurança que ela envolve. Segundo se depreende da resolução, o ideal seria que houvesse uma seção eleitoral especial em casa casa penal e em cada instituição de internação de adolescentes, o que exige investimentos humanos e materiais extraordinários. Se em algumas dessas casas não houver a seção, precisaremos contar com o transporte dos presos, o que trará as mesmas implicações.
A resolução desconsidera, ainda, a carência de agentes de segurança pública. O desembargador informou que, em todas as eleições, além das forças policiais, são requisitados também militares das Forças Armadas e, mesmo assim, o contingente é insuficiente. Fácil perceber que não há pessoal para suportar as exigências peculiares de segurança que a nova medida impõe, principalmente em regiões onde haja problemas de crime organizado.
Outro aspecto que restou desconsiderado pela resolução é que se o número de presos provisórios é um grande problema, a rotatividade torna tudo pior. Todos os dias pessoas são presas e soltas, de modo que não se pode montar um cadastro seguro de eleitores especiais. A Justiça Eleitoral trabalha com eleitores que estejam com a situação regularizada até 5 de maio. Quem tiver pendências após essa data não votará no pleito deste ano. Portanto, como montar o cadastro dos presos provisórios, se eles mudam o tempo inteiro?
Finalmente, o desembargador informou que já houve uma tentativa, aqui no Pará, de assegurar o voto dos presos provisórios, salvo engano nas eleições de 2006. A experiência serviu para mostrar que os próprios presos têm altíssima resistência em participar. Eles temem a estigmatização de comparecer a uma seção destinada especificamente a presidiários, pois acreditam que o fato lhes "sujará a ficha", seja lá o que isso signifique. Daí resulta que a experiência rendeu apenas 2% de comparecimento às urnas e abriu uma importante questão: de que adianta realizar um esforço hercúleo desses para, ao final, ele não atingir as finalidades a que se destina?
Os presidentes dos tribunais regionais eleitorais se reunirão nos próximos dias para discutir a resolução sob comento. Estão apreensivos, principalmente o de São Paulo, que conta com mais de 100 mil presos provisórios. No Pará, são cerca de 7 mil.

Uma observação final. Muitos estudiosos do sistema de justiça criminal afirmam que uma das razões pelas quais o mesmo é tão desumano é que a classe política não se preocupa com uma clientela que não vota. Por isso, na hora de prometer mundos e fundos, essas pessoas são sumariamente ignoradas principalmente porque massacrá-las dá audiência. O voto dos presos provisórios poderia, finalmente, acender uma luz sobre esse segmento social e, quem sabe, sinalizar demandas tradicionalmente ignoradas, mas que precisam ser enfrentadas. Contudo, os próprios interessados não colaboram. Aqui se vê, uma vez mais, a falta que faz a educação.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Por onde andam?

Imagine a cena: um indivíduo acaba de pintar um banco e coloca sobre ele a placa "Não sente". Questionado sobre a proibição de sentar em um equipamento criado justamente para isso, o pintor poderia dar várias respostas: "você vai se sujar", "o cheiro está forte", "a tinta pode ser tóxica", "vai estragar o meu trabalho", "o serviço terá que ser refeito, levando ao desperdício", etc. Suponha que ele escolha a primeira e receba, como reação, o protesto do interlocutor, indignado:
Como ousa me impedir de sentar no banco recém-pintado? E o meu direito de me sujar?!!!

A proposição lhe parece surreal? Pois saiba que foi mais ou menos assim que me senti no segundo semestre de 2005, quando tive que engolir uma das campanhas políticas mais imbecis já engendradas. Bem sucedida, mas cretina: a campanha em favor da comercialização de armas de fogo no Brasil. E por que cretina? Porque o patético discurso adotado na ocasião foi sobre um tal direito, uma tal liberdade de possuir armas. Com base nessa única premissa falaciosa, mobilizou-se toda uma população desacostumada a pensar.
O Estatuto do Desarmamento (Lei n. 10.826, de 2003) previu uma proibição de comercializar armas de fogo e munição em todo o território nacional, mas condicionou tal vedação a um referendo (art. 35), que foi realizado em 23.10.2005. O brasileiro homo futebolicus que é ficou irritadíssimo de ter que ir às urnas em ano não eleitoral, pois exercer a cidadania e participar das grandes decisões do país é uma idiotice. O que interessa mesmo é ver ou discutir futebol, tomando cerveja.
A irritação do povo já era grande, baseada em sua incapacidade de compreender o significado do que se votava e, ainda mais abaixo, o significado de um referendo. Foi nessa conjuntura que os marqueteiros, categoria responsável por muita coisa ruim neste país, criou esse discurso de adolescente revoltado: vote "não" para ninguém mexer nos seus direitos! Um discurso idiota, quase emo. Mas que venceu com 63,94% dos votos, contra 36,06% dos votantes no "sim", além de 1,39% de votos em branco e 1,68% de nulos (dados do Tribunal Superior Eleitoral).
Naturalmente, a questão não era assim tão simples. Há muitos argumentos para ambos os lados e, pelo lado do "não", acredito que um seja indesmentível: leis desse tipo só atingem o cidadão comum, respeitador das leis do país. Para bandido, não faz diferença. Embora isso seja um fato, não leva à conclusão necessária de que podíamos deixar como estava. O que me irrita e é objeto desta crítica não são os outros argumentos, alguns dos quais relacionados a um incremento do tráfico de armas (algo plausível, sem dúvida), e sim que o canal de comunicação com o povo foi através do mais idiota dos argumentos, propositalmente sem enfrentar o mérito dos argumentos contrários, tais como a quantidade de acidentes domésticos com armas de fogo, os crimes facilitados pelo acesso a esses artefatos, a quantidade absurda de mortes e incapacitações, os prejuízos ao sistema de saúde, as repercussões sobre a segurança pública e a incapacidade do cidadão comum, na hora da necessidade, de usar com eficiência a arma para o tão decantado objetivo de autoproteção. E, claro, os responsáveis pelo "não" omitiram completamente a informação de que foram financiados pela Taurus e pela Companhia Brasileira de Cartuchos (fabricantes de armas e munições), que deram tanto dinheiro que todos os gastos de campanha foram pagos e ainda sobrou, muito diferente do que aconteceu com os adversários.
O referendo do desarmamento disse muito sobre o brasileiro. Exatamente isso me entristece, porque ele só disse coisas ruins.
Ontem à noite, uma equipe de alunos apresentou um trabalho sobre o Estatuto do Desarmamento, o que inspirou esta postagem, cujo mote é o seguinte: Onde estão os eleitores do "não", hoje? Eles podem me dizer se o tempo provou que tinham razão? O que a sociedade ganhou com a vitória da indústria armamentista? Em que a sua vida, particularmente considerada, foi beneficiada com essa medida? O direito tão aguerridamente defendido serviu para quê? Ou será que só quem se deu bem foram a Taurus e a CBC?

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Um novo voto censitário

O juiz Mateus Milhomem de Souza, da Vara Eleitoral de Aurilândia (GO), propôs a criação de um sistema de pontuação do eleitorado dando maior peso àqueles com mais escolaridade. Segundo a proposta, feita em uma sentença, os votos dos analfabetos teriam um ponto, enquanto os eleitores com doutorado, sete. “Os graus incompletos voltam para a pontuação inferior. Isto visando estimular o esforço do estudo”, afirmou o juiz.
Clique aqui para ler o resto da notícia.

Souza jura que sua proposta não tem nada a ver com preconceito. Ele só quer mesmo estimular as pessoas a estudar. Não sei, contudo, de onde ele tirou a ideia de que esse tipo de eleitor que ele critica (chamando de "eleitor-capitu") se interessaria por estudar, só para fazer o voto valer mais. Aliás, como conduzir um eleitor idoso e já exausto aos bancos escolares? Aliás de novo, existem escolas à disposição, para acolher a demanda dos supostos novos estudantes?
Não sei... Quanto mais leio essa notícia, mais acho que a proposta é, digamos, altissimamente equivocada, para dizer o mínimo.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Dos 70 para os 80

Minha obsessiva inclinação para relacionar os números das postagens do blog aos anos me fez pensar, neste final de semana, sobre o término da década de 1970 e começo dos gloriosos, inesquecíveis e breguíssimos anos 1980. De imediato, pensei em João Baptista de Oliveira Figueiredo (1918-1999), aquele que se notabilizou por dizer que preferia cheiro de cavalo ao do povo. Se esse acontecimento não for verdadeiro, de tanto que o repetem, agora é.
Eu ainda nem completara quatro anos quando Figueiredo se tornou o 30º presidente da República e o último da ditadura militar, em 15.3.1979. Mas foi olhando para a careta dele que escutei, pela primeira vez, a expressão "presidente da República", àquela altura sendo capaz de entender, apenas, que era o sujeito que mandava no país.
Mais de uma década depois, assistindo às excelentes aulas de História do Brasil do Prof. Haroldo Trazíbulo, soube que Figueiredo assumira o governo com o compromisso de promover a abertura política, redemocratizando o país e o preparando para devolvê-lo aos brasileiros, por meio de governos civis. Essa foi a tônica de seu discurso de posse e, com efeito, foi em 1979 que as acusados de crimes políticos foram finalmente beneficiados pela Lei de Anistia. Adolescente, vi imagens de arquivo de exilados políticos nos aeroportos, retornando à pátria e às suas famílias, emocionadíssimos. Contudo, tenho uma vaga lembrança de, ainda criança, ter visto pela TV que alguém decidira, em definitivo, que as eleições presidenciais seriam indiretas e o primeiro presidente civil seria escolhido por um Colégio Eleitoral. Lembro-me destas palavras, mas não sabia o que significavam.
Também me recordo de haver dois candidatos: Tancredo Neves e Paulo Maluf, vencendo o primeiro, em meio a manifestações de desbragada emoção por todo o país. Falava-se muito em liberdade naqueles tempos. Eu podia ver que algo grandioso estava acontecendo, mas admito que o assunto me enfarava e eu acabava voltando para os meus carrinhos. De plástico, pois naquela época não existiam os Hot Wheels.
Hoje, sinto uma certa emoção em ter testemunhado a História, mesmo que pela TV e sem aproveitar o calor dos acontecimentos. Hoje tenho a dimensão do que significaram esses episódios e dos motivos que levavam às pessoas a reações tão dramáticas, sobretudo quando Tancredo morreu, sem tomar posse. Penso que, depois do retorno dos governos civis, não aconteceu nada mais tão portentoso assim. Até porque a redemocratização do país é mais uma declaração de princípios, formal, do que uma realidade. Como disse em outros momentos, aqui no blog, não vivemos uma verdadeira democracia. Nossos representantes não nos representam, nossas instituições mal funcionam, o Estado não nos serve, o voto continua sendo comprado, a sociedade continua drasticamente desigual, a concentração de renda é maior do que no passado, a terra continua distante de quem a merece, os verdadeiros criminosos não são punidos e o Estado os protege... Enfim, muita coisa deu errado.
Há, contudo, diversas outras razões para isso e muito mais a ponderar. Isso fica, entretanto, para outras postagens desta testemunha televisiva e pouco consciente da História.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Eu preferiria Kelsen

Carl Schmitt
O filósofo entre Fausto De Sanctis e Gilmar Mendes
por Daniel Roncaglia


O juiz Fausto Martin de Sanctis, da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo, revelou que as divergências com o ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, ultrapassam o campo político e esbarram no filosófico. Em um evento que aconteceu na segunda-feira (10/11), no Rio de Janeiro, Sanctis levantou a platéia ao mostrar sua visão sobre o Direito Constitucional.
Segundo o juiz, “a Constituição não é mais importante que o povo, os sentimentos e as aspirações do Brasil. É um modelo, nada mais que isso, contém um resumo das nossas idéias. Não é possível inverter e transformar o povo em modelo e a Constituição em representado”.
“A Constituição tem o seu valor naquele documento, que não passa de um documento; nós somos os valores, e não pode ser interpretado de outra forma: nós somos a Constituição, como dizia Carl Schmitt”, completou De Sanctis, segundo reportagem da Folha de S.Paulo, desta terça-feira (11/11).
Carl Schmitt é um filósofo alemão que viveu de 1888 a 1985. Tem na sua biografia uma obra jurídica notável e uma ficha de adesão ao nazismo a partir de 1933. Ele nunca se retratou de sua filiação ao partido de Adolf Hitler.
Uma de suas principais obras é o livro O Guardião da Constituição, publicado em 1929, que agitou o debate jurídico da Alemanha no começo dos anos 30. Em linhas gerais, ele questiona nessa obra o papel do Judiciário como guardião da Constituição. Para ele, somente o presidente do Reich poderia desempenhar essa função, pois o povo é quem o escolhe.
Para Schmitt, o presidente, alicerçado pelo artigo 48 da Constituição de Weimar, representa a unidade da autoridade política que traz consigo os anseios sociais do povo. Schmitt também entende que a revisão dos atos legislativos por um tribunal independente é uma afronta clara à soberania estatal.
Schmitt diz que a idéia de Constituição não se equipara a um simples conjunto de leis constitucionais. O filósofo afirma que a Constituição é a decisão consciente de uma unidade política concreta que define a forma e o modo de sua existência.
O livro de Schmitt foi ampliado em 1931. No mesmo ano, o filósofo austro-americano Hans Kelsen publicou uma reposta com o título Quem deve ser o guardião da Constituição?. Nela, Kelsen destaca a importância de um Tribunal Constitucional para uma democracia moderna. Foi inspirado em Kelsen que a Áustria escreveu a sua Constituição de 1920, que criava uma Corte Constitucional com o poder de fazer o controle concentrado de constitucionalidade.
“Como poderia o monarca, detentor de grande parcela ou mesmo de todo o poder do Estado, ser instância neutra em relação ao exercício de tal poder, e a única com vocação para o controle de sua constitucionalidade?”, questiona Kelsen.
A disputa intelectual dos dois chegou ao Tribunal do Estado no caso Prússia contra Reich. No dia 25 de outubro de 1932, a tese de Schmitt foi a vencedora e o tribunal negou-se o poder para definir os limites de atuação do presidente e do chanceler. Em janeiro de 1933, Adolf Hitler chegou ao cargo de chanceler sem cometer nenhuma ilegalidade ou inconstitucionalidade.
Estudioso do processo de controle concentrado de constitucionalidade e com doutorado na Alemanha, o ministro Gilmar Mendes já mostrou publicamente qual é a sua opinião nesse embate entre Kelsen e Schmitt.
Em 2006, ele assinou a apresentação da edição em português da obra mestra de Schmitt O Guardião da Constituição, que foi publicada pela editora Del Rey. Para o ministro, a história deu razão a Kelsen. Depois da Segunda Guerra Mundial, a maioria dos países democráticos adotou um sistema como o que defende Kelsen.
“A controvérsia sobre a jurisdição constitucional, ápice de uma disputa entre dois dos mais notáveis juristas europeus do início do século XX, mostra-se relevante ainda hoje. O debate sobre o papel a ser desempenhado pelas Cortes Constitucionais, atores importantes e, às vezes, decisivos da vida institucional de inúmeros países na atualidade, obriga os estudiosos a contemplarem as considerações de Schmitt (e, inequivocamente, as reflexões de Kelsen) a propósito do tema”, afirma Gilmar Mendes, no texto.


Clicando aqui, você lê a apresentação que Mendes escreveu para O guardião da Constituição.
Para ninguém dizer que eu só critico o sujeito, entre Schmitt e Kelsen, eu escolheria este último. Embora o modelo positivista por ele criado seja uma das razões para o autismo crônico de que padece o Direito, graças a atuação em geral autocêntrica e arrogante dos juristas, sem dúvida que dá menos margem a regimes ditatoriais do que a proposta de Schmitt. Não sei se este produziu sua teoria com endereço certo mas, ainda que não o tenha feito, ela caiu como uma luva.
Já pensou se, num país como o Brasil de hoje, o controle de constitucionalidade estivesse a cargo do presidente da República (independentemente de Lula)? Seria como cuspir na cara do psicopata, dar-lhe uma arma e provocar: "me mata se tens coragem!"

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Enquete sobre o voto nulo

Tenho afirmado que nestas eleições farei a minha estreia no mundo do voto nulo, mas a minha consciência tem dificuldade em assimilar isso. Além do mais, tenho visto algumas manifestações bastante sensatas em sentido contrário. Então lanço a enquete que você pode ver aí ao lado, perguntando a sua opinião.
Coloquei apenas duas alternativas, uma a favor, outra contrária, para evitar a pulverização do raciocínio. Quem achar que deve, pode usar a caixa de comentários para emitir alguma opinião.
Agradeço se merecer a sua participação. Defini uma semana de prazo para a votação. Um abraço democrático.

domingo, 5 de outubro de 2008

Processo eleitoral acontecendo

Às sete horas da manhã, o Tribunal Regional Eleitoral abriu a sessão que marca o dia da eleição. Formalmente, os juízes estão em sessão até o final dos trabalhos de apuração dos votos. Neste momento, em todo país, o cidadão brasileiro exerce o seu "direito" de escolher os seus "representantes" nos Municípios. O único momento em que ele tem uma força insuperável, de conduzir um aspecto de sua própria vida e mudar toda a História. Mas isso nunca acontece, por conta do perfil do eleitorado brasileiro.
Logo mais, eu também estarei frente a frente com uma urna eletrônica. Odiando ter que participar da mais vagabunda eleição de que tenho memória. Mas irei, depositar dois votos válidos, esperando que ajudem. Finalmente escolhi meus candidatos, após ficar um tempo navegando na Internet no começo desta madrugada, a fim de tomar uma decisão. E ela foi tomada sem comemorações, muito menos esperança.
Vamos votar. E que Deus tenha piedade de nós, porque só Ele mesmo para ainda se importar conosco.

sexta-feira, 21 de março de 2008

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

A sempre instável democracia na América Latina

Fortes pressões para a renúncia de Álvaro Uribe, presidente da Colômbia.
As trapalhadas e excessos de Evo Morales, na Bolívia, incluindo uma reforma constitucional saída de um gabinete militar, enfurecendo a população.
"Congelamento" das relações diplomáticas entre Venezuela e Colômbia, por iniciativa da primeira, devido a um desmentido contra Chávez.
Chávez, aliás, leva a taça. Sua marcha para a condição de plenipotenciário seguia a passos largos, como um exército avançando em formação cerrada, nas guerras de antigamente. Seguia. este domingo, com a graça de Deus, a maioria dos venezuelanos votou não, em referendo, às reformas constitucionais promovidas pelo líder da tal "revolução bolivariana".

Supostamente, Chávez aceitou a vontade popular. Afinal, já que comanda uma revolução dita popular, o povo é o único que pode desautorizá-lo, como de fato o fez. Temo, porém, que esse fato seja um alívio efêmero. Afinal, o sujeito não pretende deixar o poder, o que implica na tomada de outras medidas. Se as pretensamente legítimas não dão certo, a que outras poderá recorrer?
Haverá algum dia em que a América Latina consiga conhecer uma democracia de verdade? Estável e que não se curve ao vício e à imoralidade? Afinal, no Brasil, há toda uma democracia formal. Mas como falar em democracia plena num país em que ainda se trocam votos por laqueaduras? Em que o eleitor, muitas vezes, não tem a menor noção do tipo de decisão que foi chamado a tomar? Em que tudo acaba manipulado pelos políticos e os setores que eles representam, em interesse próprio e restrito?

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Ética dos magistrados sob o julgamento do povo

Desde o último dia 16 de abril o Conselho Nacional de Justiça disponibilizou o texto integral da proposta de Código de Ética da Magistratura, especificamente com a intenção de que a sociedade civil dê sugestões para a redação final do documento. Exemplo de democracia, não? Eu acho. Afinal, nós, os jurisdicionados, cotidianamente maltratados pela estrutura do Poder Judiciário — muito cônscio de que é poder mas frequentemente esquecido de a quem serve —, precisamos externar as nossas necessidades, enquanto cidadãos, no que tange à conduta dos que controlam as nossas vidas, de modo tão direto e individualizado.
Lembremos as sábias palavras bíblicas: a quem muito foi dado, muito será exigido. Tão elevadas funções exigem magistrados serenos, cordatos, diligentes e honestos. E exigem uma rígida fiscalização de cada um desses atributos, mediante instrumentos concretos e eficazes, como o ora em discussão.
Todo cidadão brasileiro pode opinar. Basta acessar o sítio do CNJ, o que pode ser feito clicando aqui.

sábado, 6 de janeiro de 2007

O Hangar como exemplo

Como convém à imprensa, o caso do Hangar, portentoso centro de convenções de Belém, está sendo tratado de modo banal. Como sempre, falta uma visão mais abrangente do caso, que pudesse mostrar à população a importância da boa escolha de seus governantes.
Obviamente, os indicativos de superfaturamento, o custo excessivo da estética paulochavista e, principalmente, a inexistência de recursos, no orçamento do Estado para 2007, para sua conclusão, constituem aberrações a provar, sem margem a dúvidas, que estávamos sob um governo no mínimo irresponsável. Mas agora pensem comigo: assumindo um governo de pessoas totalmente diversas, todas essas mazelas vieram à tona. E se o governo fosse apenas uma continuidade do anterior? Se os tucanos tivessem entrado no ano 13, como seria?
Se os tucanos continuassem no poder, o Hangar seria dado como "quase pronto", faltando somente umas besteirinhas. Se a inauguração demorasse, não faltariam desculpas "técnicas", dada pelo secretário de cultura. O jornal do PMDB destacaria todo santo dia os atrasos, os abusos e custos da obra. O jornal oficial destacaria todo santo dia sua grandiosidade e os impactos imediatos e maravilhosos sobre o turismo e a arrecadação tributária.
Em síntese, a gigantesca máquina tucana — que envolvia Executivo, Legislativo, empresariado, imprensa e outros setores do poder público, que deveriam ser isentas — daria um jeito de tudo parecer normal.
O que mais me impressiona é que, se é verdade que o orçamento não contém recursos para a conclusão da obra, como os tucanos pretendiam terminá-la em 2007? A resposta mais provável é: remanejando verbas de outros setores para isso. Aí cabe perguntar: e que setores seriam prejudicados? A propaganda evidentemente que não. Será que os tais hospitais regionais seriam adiados para o ano eleitoral de 2010?
Concluo afirmando o que falei diversas vezes: abstraindo-se os protagonistas, a alternância no poder é essencial à democracia. Enquanto os governantes de diferentes matizes não se alternam, a sujeira só vai de um lado a outro de sob o tapete. É por isso que, mesmo olhando com certa intranquilidade os primeiros dias do governo Ana Júlia, quero acreditar que, em alguma coisa, já melhoramos um pouquinho.

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

La garantía soy yo

O Liberal de hoje noticia, mais uma vez, a inépcia da Câmara Municipal de Belém em votar a reforma da Lei Orgânica do Município. A coisa já está tão feia que os próprios edis começam a admitir a falha. Dentre eles há quem defenda, tanto na situação quanto na oposição, a necessidade de maiores discussões, inclusive por meio de audiências públicas. Como se vê, até os adversários andam concordando sobre não saber o que fazer. Aí me vem o vereador Carlos Augusto Barbosa, relator do projeto, fazer a seguinte afirmação: "Abrimos por quatro vezes a prorrogação do prazo para receber emenda e agora tem o discurso de que tem que parar para ouvir a população. Nós representamos a população, fomos eleitos para isso."
Parabéns, vereador. Vossa Excelência mostrou a que veio. Permita que eu lhe dê algumas informações que o senhor, na condição de parlamentar, deveria conhecer.
Em primeiro lugar, a efetiva participação popular no processo decisório é uma conquista da civilização, que não pode ser suprida pelo sistema representativo — adotado pelo mundo afora porque é inevitável, mas não por ser o melhor. Como foi dito, houve quatro prazos para apresentação de emendas, portanto para atuação dos parlamentares, sem qualquer consulta aos destinatários da lei.
A Constituição Federal de 1988, que costuma ser reproduzida nas Cartas estaduais e leis orgânicas, prevê, no capítulo dos direitos políticos, que a soberania popular será exercida "pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto (...) e, "nos termos da lei, mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular" (art. 14). O destaque dado à conjunção "e" foi para que o senhor entenda que as duas formas são legítimas: tanto a representativa, quanto a direta.
Mais adiante, tratando dos Municípios, a Lex Mater determina que seja assegurada a "iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade ou de bairros, através de manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado" (art. 29, XIII). Quem pode o mais, pode o menos: se o munícipe pode elaborar o projeto de lei, com muito mais razão pode opinar sobre o que foi engendrado dentro dos gabinetes parlamentares.
Eu poderia citar muitas outras normas constitucionais, a começar pelo princípio da moralidade e da publicidade, obrigatórios na Administração Pública, da qual o Poder Legislativo faz parte. Todavia, a questão central é que o parlamentar representa o cidadão, mas não esgota o cidadão. Se o ínclito edil acha que, só por deter um mandato legítimo, não precisa mais ouvir o eleitorado, cometeu um erro primário. Até porque não possui a ciência de todas as coisas. Um parlamentar não ganha poderes místicos para entender de tudo e saber com perfeição o que exatamente o povo quer. Eu, por exemplo, sou advogado. Como tal, represento o meu constituinte. Eu também exerço um mandato legítimo. Mas nem por isso a parte deixa de ser ouvida. Algumas atuações, como petições de divórcio, devem ser assinadas pelo advogado e pelo constituinte, que sempre poderá manifestar-se e, em última análise, destituir o seu patrono.
Se o jornal foi fiel às palavras do vereador, a expressão "e agora tem o discurso de que tem que parar para ouvir a população" soa não apenas antidemocrática, mas desrespeitosa ao cidadão, sugerindo um certo desprezo àquele a quem se serve.
Não me deterei na doutrina constitucionalista, que deixo para os estudiosos dessa temática. Mas ficaria feliz se alguém dissesse ao vereador em questão que repense a sua função legislativa. E aprenda o elementar: hoje em dia, cada vez mais temas são objeto de consultas populares e alguns simplesmente não podem ser decididos sem audiências públicas.
A idéia de que os vereadores, só porque representam o povo, podem decidir tudo entre si não é apenas uma afronta ao bom senso. Ela é uma ameaça aos cidadãos.

PS — Se alguém conhecer o vereador, indique-lhe a leitura deste texto. Humildemente, é uma crítica construtiva.