Imagine a cena: um indivíduo acaba de pintar um banco e coloca sobre ele a placa "Não sente". Questionado sobre a proibição de sentar em um equipamento criado justamente para isso, o pintor poderia dar várias respostas: "você vai se sujar", "o cheiro está forte", "a tinta pode ser tóxica", "vai estragar o meu trabalho", "o serviço terá que ser refeito, levando ao desperdício", etc. Suponha que ele escolha a primeira e receba, como reação, o protesto do interlocutor, indignado:
— Como ousa me impedir de sentar no banco recém-pintado? E o meu direito de me sujar?!!!
A proposição lhe parece surreal? Pois saiba que foi mais ou menos assim que me senti no segundo semestre de 2005, quando tive que engolir uma das campanhas políticas mais imbecis já engendradas. Bem sucedida, mas cretina: a campanha em favor da comercialização de armas de fogo no Brasil. E por que cretina? Porque o patético discurso adotado na ocasião foi sobre um tal direito, uma tal liberdade de possuir armas. Com base nessa única premissa falaciosa, mobilizou-se toda uma população desacostumada a pensar.
O Estatuto do Desarmamento (Lei n. 10.826, de 2003) previu uma proibição de comercializar armas de fogo e munição em todo o território nacional, mas condicionou tal vedação a um referendo (art. 35), que foi realizado em 23.10.2005. O brasileiro — homo futebolicus que é — ficou irritadíssimo de ter que ir às urnas em ano não eleitoral, pois exercer a cidadania e participar das grandes decisões do país é uma idiotice. O que interessa mesmo é ver ou discutir futebol, tomando cerveja.
A irritação do povo já era grande, baseada em sua incapacidade de compreender o significado do que se votava e, ainda mais abaixo, o significado de um referendo. Foi nessa conjuntura que os marqueteiros, categoria responsável por muita coisa ruim neste país, criou esse discurso de adolescente revoltado: vote "não" para ninguém mexer nos seus direitos! Um discurso idiota, quase emo. Mas que venceu com 63,94% dos votos, contra 36,06% dos votantes no "sim", além de 1,39% de votos em branco e 1,68% de nulos (dados do Tribunal Superior Eleitoral).
Naturalmente, a questão não era assim tão simples. Há muitos argumentos para ambos os lados e, pelo lado do "não", acredito que um seja indesmentível: leis desse tipo só atingem o cidadão comum, respeitador das leis do país. Para bandido, não faz diferença. Embora isso seja um fato, não leva à conclusão necessária de que podíamos deixar como estava. O que me irrita e é objeto desta crítica não são os outros argumentos, alguns dos quais relacionados a um incremento do tráfico de armas (algo plausível, sem dúvida), e sim que o canal de comunicação com o povo foi através do mais idiota dos argumentos, propositalmente sem enfrentar o mérito dos argumentos contrários, tais como a quantidade de acidentes domésticos com armas de fogo, os crimes facilitados pelo acesso a esses artefatos, a quantidade absurda de mortes e incapacitações, os prejuízos ao sistema de saúde, as repercussões sobre a segurança pública e a incapacidade do cidadão comum, na hora da necessidade, de usar com eficiência a arma para o tão decantado objetivo de autoproteção. E, claro, os responsáveis pelo "não" omitiram completamente a informação de que foram financiados pela Taurus e pela Companhia Brasileira de Cartuchos (fabricantes de armas e munições), que deram tanto dinheiro que todos os gastos de campanha foram pagos e ainda sobrou, muito diferente do que aconteceu com os adversários.
O referendo do desarmamento disse muito sobre o brasileiro. Exatamente isso me entristece, porque ele só disse coisas ruins.
Ontem à noite, uma equipe de alunos apresentou um trabalho sobre o Estatuto do Desarmamento, o que inspirou esta postagem, cujo mote é o seguinte: Onde estão os eleitores do "não", hoje? Eles podem me dizer se o tempo provou que tinham razão? O que a sociedade ganhou com a vitória da indústria armamentista? Em que a sua vida, particularmente considerada, foi beneficiada com essa medida? O direito tão aguerridamente defendido serviu para quê? Ou será que só quem se deu bem foram a Taurus e a CBC?
3 comentários:
O povo brasileiro é engraçado. Eles querem que a violência acabe, mas não querem que a venda de armas seja proibida; querem seguramça nas ruas, mas armam bandidos comprando entorpecentes ilícitos. Reclamam do Brasil sem saber o que está acontecendo, ou porque se deixaram levar pela mídia, ou porque simplesmente não dão a mínima para o país. É capaz de muita gente nem lembrar em qual opção votou em 2005.
É uma pena.
Só não digo que o povo brasileiro é engraçado porque só seria engraçado se não fosse trágico, como de fato é. Tuas críticas procedem.
É "segurança", pelo amor! Erro de digitação.
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