quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Com direito à carteira vermelha

E vamos a mais uma postagem de saudação aos ex-alunos que, tendo sido aprovados no Exame de Ordem, conquistaram o direito de exercer a advocacia (se bem que alguns ainda não, porque ainda não se formaram). Pedindo desculpas àqueles eventualmente omitidos, meu abraço festivo para:

Adrian Barbosa e Silva
Amanda Leão Rocha
Ana de Cássia de Araújo
André Ferreira Pinho
Diego Fonseca Mascarenhas
Eduarda Gouveia Costa Tupiassú
Felipe Augusto Hanemann Coimbra
Felipe Guimarães de Oliveira
Felippe Henrique de Quintanilha Bibas Maradei
Flávia Brilhante Athayde
Giselle Cristina Lopes da Silva
Hugo Silva de Miranda
Jéssica Cangussu de Abreu
Lucas Sá Souza
Raphaela Buarque de Moraes 
Thales Kemil Pinheiro Vicente
Thayana Maués Smith
Valdenor Monteiro Brito Júnior
Yasser Reis Gabriel

É animador saber que muitos alunos que se formarão no próximo mês de janeiro já estavam aprovados desde o exame anterior. Dentre os aprovados de agora, gostaria de destacar as pessoas de Adrian Barbosa e Silva, meu monitor desde o ano passado, cuja dedicação às ciências criminais o precede, tornando nada surpreendente que tenha acertado todas as questões da prova subjetiva; Lucas Sá Souza, outro caso de amor incorrigível pelas ciências criminais, que se revela em uma paixão abrasadora pela advocacia criminal; e Yasser Reis Gabriel, que embora tenha escolhido para sua vida o direito administrativo, estagiou conosco e revelou em alto nível as virtudes da inteligência, da responsabilidade, da prestatividade e da sociabilidade.

Também quero parabenizar, com um carinho especial, Raphaela Buarque de Moraes, que a um só tempo reúne os atributos de uma grande filha e de uma grande mãe. Eu a conheci em sala de aula, aproximando-se do momento de trazer ao mundo seu filho e vi o quanto é inteligente, dedicada e capaz de se superar. Pessoas assim nos inspiram.

Um abraço forte em cada um dos aprovados, com votos de muito sucesso na carreira que começará, logo ou no próximo ano.

Entre o primeiro e o segundo grau

Por enquanto, no calor dos acontecimentos, não adianta perguntar. Mas um dia eu vou querer uma resposta para esta instigante questão: por que os juízes federais acolheram tantos pedidos de suspensão das obras da Hidrelétrica de Belo Monte e quando as mesmas questões chegaram ao Tribunal Regional Federal, rapidamente foi modificada a decisão?

Sendo a mesma conjuntura, os mesmos fatos, o mesmo direito, por que ele sempre é interpretado de maneira tão discrepante do primeiro para o grau? Por quê?

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Menos é mesmo mais?

Pode ser que me falte tutano, mas eu realmente não consegui entender como o Poder Executivo de Portugal pretende agilizar a prestação jurisdicional reduzindo a quantidade de juízes e de promotores de justiça, além de fechar tribunais.

É claro que um trabalhador eficiente pode valer muito mais do que, sei lá, três que atuem no vai-da-valsa. Eficiência não se mede por tamanho ou quantidade, mas não me parece que a redução de quadros, ainda que acompanhada de uma reformulação da organização judiciária, consiga reduzir o tempo de duração dos processos, sem dois fatores, um dos quais de menor monta (mudanças na legislação processual, capazes de otimizar o tempo) e outro, absolutamente essencial: modificações reais na estrutura social.

Eis a notícia:

Depois de muita especulação, o Ministério da Justiça de Portugal anunciou sua proposta para reformar a estrutura judicial no país. A palavra de ordem é reduzir: fechar tribunais, diminuir o número de juízes em exercício e baixar o tempo de espera para a conclusão dos processos. Como o governo pretende equilibrar essa equação, ninguém sabe. Mas os sindicatos dos magistrados e dos membros do Ministério Público já bradaram aos quatro ventos que não dá. Para eles, é impossível acelerar o andamento processual com menos julgadores.

Soma e subtração
Segundo os cálculos feitos pelos sindicatos, até 220 juízes e 250 promotores poderiam ficar sem função. Para a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, isso é uma afronta aos magistrados. O anteprojeto apresentado pelo governo ainda prevê o fechamento de 22 dos mais de 200 tribunais de primeira instância e a especialização de algumas cortes para tentar tornar o processo judicial mais célere. As propostas ainda devem ser rediscutidas antes de serem enviadas para o Parlamento português.

Para comparar, veja-se o caso do Brasil. Todo mundo sabe que a justiça é morosa e que os processos demoram anos e anos sob tramitação. A desculpa da quantidade de processos está sempre na ponta da língua. Mas diversos estudos já mostraram que, em nosso país, há um número delimitado de grandes litigantes, que respondem por uma quantidade imensa de processos. O Estado, lato sensu, é o maior litigante e emperrador da justiça. Ações contra o INSS, p. ex., enforcam a Justiça Federal. No âmbito das relações privadas, as empresas de telefonia são o principal gargalo dos Juizados Especiais. São apenas dois exemplos, mas o fato é que se esses atores fossem menos opressivos em juízo, a demanda cairia em níveis sensíveis, melhorando a fluidez do trabalho.

Resumo da ópera: se queremos mesmo uma justiça mais eficiente, precisamos de um governo menos interessado em prejudicar os cidadãos e de empresas que nos tratem como consumidores respeitáveis, não como otários. Sem mudança de atitude, não vamos a lugar algum.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-out-29/direito-europa-portugal-reduzir-numero-juizes-acelerar-justica

Os acima da lei

O Brasil é o país da carteirada. "Sabe com quem está falando?" deveria ser a legenda ostentada no pavilhão nacional, já que ordem e progresso sempre foram parâmetros bisonhos para nós. Aqui, qualquer um que se julgue alguma coisa se considera ipso factu acima da lei, acima do bem e do mal. E nem precisa ser alguma coisa; basta conhecer alguém que seja alguma coisa, mesmo que, eventualmente, alguma coisa bem pequenina. É a tal síndrome do pequeno poder.

Segundo relata o jornalista Josias de Souza, há alguns dias, um oficial da Polícia Militar do Espírito Santo afrontou os agentes, policiais militares como ele, que faziam uma blitz. Estava saindo de uma boate e, provavelmente, tinha bebido, pois neste país todo malandro bebe e dirige. Mesmo que não tivesse bebido, não poderia ter-se negado a apresentar seus documentos e a obedecer às demais determinações (legais, bem entendido) dos agentes. Leia a notícia aqui.

O que se seguiu foi uma pequena demonstração do que é o nosso país. Arrogante, o infrator se anuncia como coronel, para impressionar, e presume que todos deveriam conhecê-lo. Na verdade, é um tenente-coronel, um grau abaixo. Mas como diligências policiais no meio da noite não são realizadas pela elite, e sim pela raia miúda que trabalha, é claro que a abordagem fora feita por um policial de menor graduação. E militares nunca enfrentam seus superiores, mesmo que seja evidente o quanto estes estão errados. A hierarquia e a obediência são a base da vida militar. Mas degradadas, como ocorre na prática, todo dia, comprometem a própria instituição.

O infrator foi embora sem ser liberado. Nada lhe aconteceu. Ao contrário, foram tomadas medidas para assegurar que não fosse incomodado. O caso somente veio à tona porque a situação foi gravada. Existe áudio e vídeo para comprovar o abuso. Um procedimento investigatório foi instaurado, porque não havia jeito. Mas está sendo conduzido com todas as cautelas, claro. Ninguém quer prejudicar o pobre tenente-coronel que, com certeza, teve lá as suas razões legítimas.

Aliás, esse sombrio personagem é mesmo um artista. Alegou, em sua defesa, que somente um oficial de patente igual ou superior poderia dar-lhe ordens. Tese conveniente, sacramenta a existência de indivíduos de classe superior, que podem fazer o que bem entendem até que um poder mais elevado os bloqueie. Aos poucos, retornaríamos ao estado de natureza hobbesiano. É uma tese tão ridícula e acintosa que sequer merece maior atenção. Mas está funcionando.

Enquanto o cidadão comum, aquele que não é ninguém nem conhece ninguém, está sujeito à total violação de seus direitos; é obrigado a obedecer sem questionar, por maiores que sejam os absurdos que lhe imponham; e que recebe uma ameaça de criminalização por desacato à menor hesitação ante a subserviência, os seres humanos melhores seguem demonstrando que as instituições estão aí para servi-los, para resguardá-los, para mimá-los.

No que deveria ser o mundo real, entretanto, existe um tal de Código Penal Militar, segundo o qual constitui crime de prevaricação "retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra expressa disposição de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal". A pena cominada é de 6 meses a 2 anos de detenção (art. 319). Também é crime a condescendência criminosa. Agentes da blitz e os protetores no procedimento investigatório poderiam ser alcançados por tais normas.

No mundo que deveria ser real, todos deveriam ser sofrido penalidades disciplinares, pelo desrespeito à própria autoridade e dignidade da corporação, sem prejuízo de eventual responsabilidade penal. Mas no mundo que é real, estão todos em paz. Quanto a você, cuide-se e reze. Fé em Deus pode ser tudo que lhe resta.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

De volta à combinação de leis penais

Menos de dois meses depois de explicar aos meus alunos de Direito Penal I que é possível aplicar normas oriundas de leis distintas, sendo algumas de forma ultrativa e outras, retroativa, sempre para benefício do réu, o Superior Tribunal de Justiça me sai com uma novidade em sentido contrário, e uma novidade barulhenta, eis que se trata de uma súmula (de n. 501).

Eis a notícia oficial, extraída da página do STJ:

A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aprovou nova súmula que veda a combinação de leis em crimes de tráfico de drogas. A medida já foi aplicada em várias decisões, inclusive do STJ, e faz retroagir apenas os dispositivos mais benéficos da nova lei de tóxicos. 

A Lei 6.638/76, antiga lei de drogas, estabelecia para o crime de tráfico uma pena de 3 a 15 anos de prisão, sem previsão de diminuição da pena. O novo texto, que veio com a Lei 11.343/06, fixou uma pena maior para o traficante, 5 a 15 anos de prisão, mas criou uma causa de diminuição de um sexto a dois terços se o réu for primário, tiver bons antecedentes, não se dedicar a atividades criminosas e não integrar organização criminosa. 

Ocorre que, no mesmo delito de tráfico, (artigo 33 da lei 11.343/06, em vigor, e artigo 12 da lei antiga) a lei nova em relação à antiga se tornou mais gravosa em um aspecto e, ao mesmo tempo, mais benéfica em outro. Surgiu, então, a dúvida: se um indivíduo foi condenado, com trânsito em julgado, na pena mínima da lei antiga, que é de 3 anos (na lei nova é de 5 anos), pode esse indivíduo ser beneficiado apenas com a minorante do dispositivo da lei nova? 

Os magistrados dividiram-se, uma vez que retroagir uma lei mais benéfica é entendimento pacífico, mas permitir a mescla de dispositivos de leis diferentes não é conclusão unânime. 

Tese consolidada

No STJ, a Sexta Turma entendia ser possível a combinação de leis a fim de beneficiar o réu, como ocorreu no julgamento do HC 102.544. Ao unificar o entendimento das duas Turmas penais, entretanto, prevaleceu na Terceira Seção o juízo de que não podem ser mesclados dispositivos mais favoráveis da lei nova com os da lei antiga, pois ao fazer isso o julgador estaria formando uma terceira norma. 

A tese consolidada é de que a lei pode retroagir, mas apenas se puder ser aplicada na íntegra. Dessa forma, explicou o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho no HC 86797, caberá ao “magistrado singular, ao juiz da vara de execuções criminais ou ao tribunal estadual decidir, diante do caso concreto, aquilo que for melhor ao acusado ou sentenciado, sem a possibilidade, todavia, de combinação de normas”. 

O projeto de súmula foi encaminhado pela ministra Laurita Vaz e a redação oficial do dispositivo ficou com o seguinte teor: “É cabível a aplicação retroativa da Lei 11.343/2006, desde que o resultado da incidência das suas disposições, na íntegra, seja mais favorável ao réu do que o advindo da aplicação da Lei n. 6.368/1976, sendo vedada a combinação de leis”.

Não concordando com a nova súmula, destaco que o Supremo Tribunal Federal entende em sentido diametralmente oposto. Numa busca rápida, as decisões mais recentes sobre o tema que encontrei datam de 13.12.2011, não sendo possível especular se a corte se deixará influenciar pelo STJ. Veja-se como a corte constitucional foi enfática (e o tema é o mesmo):

“HABEAS CORPUS” – CRIME DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES PRATICADO SOB A ÉGIDE DA LEI Nº 6.368/76 – ADVENTO DA NOVA LEI DE DROGAS (LEI Nº 11.343/2006), CUJO ART. 33, § 4º, PERMITE, EXPRESSAMENTE, QUANTO AOS DELITOS NELE REFERIDOS, A MINORAÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE – NORMA PENAL MAIS BENÉFICA, QUE PREVÊ CAUSA ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO DA PENA – APLICABILIDADE DESSE NOVO DIPLOMA LEGISLATIVO (“LEX MITIOR”) SOBRE A “SANCTIO JURIS” DEFINIDA NO PRECEITO SECUNDÁRIO (ART. 12 DA LEI Nº 6.368/76) – EFICÁCIA RETROATIVA DA “LEX MITIOR”, POR EFEITO DO QUE IMPÕE O ART. 5º, INCISO XL, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – COMBINAÇÃO DE LEIS – SITUAÇÃO QUE NÃO CONFIGURA CRIAÇÃO DE UMA TERCEIRA ESPÉCIE NORMATIVA – PEDIDO DEFERIDO. - A Lei nº 11.343/2006 – tendo em conta a pena mínima cominada ao crime de tráfico de drogas (05 anos) – importou em verdadeira “novatio legis in pejus”, pois determinou um “quantum” penal mais gravoso que o fixado pela lei anterior, circunstância que impõe a prevalência do preceito secundário contido no art. 12 da Lei nº 6.368/76, cujo limite mínimo – de 03 (três) anos de reclusão – é mais benéfico ao agente nos casos de delitos cometidos antes do advento da “lex gravior”. - A norma consubstanciada no § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006, no entanto, mostra-se mais benigna na parte em que prevê causa especial de diminuição de pena, evidentemente mais favorável, nas hipóteses em que o agente é primário, possui bons antecedentes, não se dedica a atividades delituosas nem integra organização criminosa, revelando-se apta a incidir, retroativamente, porque “lex mitior”, sobre fatos delituosos praticados antes de sua vigência. - A eficácia retroativa e a eficácia ultrativa da norma penal benéfica possuem extração constitucional (CF, art. 5º, XL), traduzindo, sob tal aspecto, inquestionável direito público subjetivo que assiste a qualquer suposto autor de infrações penais. - A circunstância de ordem temporal decorrente da sucessão de leis penais no tempo revela-se apta a conferir aplicabilidade às disposições penais benéficas contidas no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006 em favor dos condenados pela prática do crime tipificado no art. 12 da Lei nº 6.368/76, nos casos em que o fato delituoso foi cometido antes da edição da nova lei, tornando aplicável, portanto, por efeito de expressa determinação constitucional (CF, art. 5º, XL), o § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006, cuja evidente benignidade contrasta com a antiga disciplina legal incidente na terceira fase da operação de dosimetria penal. Considerando-se, de um lado, o preceito secundário cominado no art. 12 da Lei nº 6.368/76 (que tem limite mínimo mais benéfico) e tendo em vista, de outro, a causa especial de diminuição da pena contida no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006 (que possui conteúdo mais benigno), torna-se irrecusável reconhecer que ambos devem compor a operação de dosimetria penal relativamente aos condenados pela prática do delito cometido na vigência da antiga Lei de Tóxicos, sem que, com isso, se esteja criando, com referida combinação, uma terceira lei.
(STF, 2ª Turma — HC 97094/RS — rel. Min. Celso de Mello — j. 13/12/2011 — acórdão eletrônico DJe-234 DIVULG 28-11-2012 PUBLIC 29-11-2012)

Aguardemos o desenrolar dos fatos. Minhas aulas, devidamente atualizadas, seguirão no mesmo teor.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Exageros brasileiros

"A inserção da fotografia do acusado na peça da denúncia só é admissível se houver necessidade específica, devidamente demonstrada e fundamentada. Afinal, o Estado não pode ser o violador do direito de imagem, garantido pela Constituição."

Com esse entendimento, a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul confirmou decisão do primeiro grau, que mandara excluir a fotografia do réu da denúncia, porque compete ao réu determinar o uso de sua imagem.

Quem me conhece sabe o quanto prezo as liberdades individuais e o quanto me bato por um direito e um sistema judiciário que respeitem a constituição. Por outro lado, irrito-me profundamente com o excesso de prurido em torno do tema dos direitos, que reputo uma consequência de nossa incapacidade de amadurecer frente ao nosso passado ditatorial. Um fenômeno social que se repete no modo como muitas famílias, hoje, educam seus filhos: lutou-se tanto por liberdade que, no dia em que conseguiram alcançá-la, tal qual o cachorro que corre atrás do automóvel, não souberam o que fazer com ela.

No caso dos direitos, o grande problema é que sua consagração não trouxe junto a noção de que deveres fazem parte do pacote. Ou como dizia Montesquieu, "até a liberdade deve ser restringida, a fim de ser possuída".

Sou totalmente avesso ao sensacionalismo contra acusados de crimes e defendo que os mesmos têm o direito de preservar a sua imagem frente a esses programas tétricos de TV, matérias jornalísticas e congêneres. Em geral, eles são obrigados a mostrar o semblante para as câmeras e até a conceder entrevistas. Policiais seguram seus rostos para cima, a fim de que sejam filmados. É essencial que sejam vistos, para que possam ser reconhecidos no futuro. Isso é violência.

A denúncia, contudo, é a peça por meio da qual o Ministério Público demonstra a sua convicção preliminar em torno de certo crime e pede que o indivíduo seja julgado e condenado pelo fato. Dados qualificativos são apresentados: nome completo, filiação, sinais particulares, etc. Por que não uma fotografia? É somente mais uma forma de qualificação, para cumprir a finalidade da lei: assegurar que a pessoa certa está sendo processada e não um homônimo ou alguém parecido. Mas se o direito à imagem é assim tão absoluto, então até mesmo a qualificação pessoal deveria ser questionada. E aí como viabilizar a ação penal?

E em relação a perícias? Laudos de exame de corpo de delito ou reconstituições, p. ex., hoje cada vez mais documentados em mídia eletrônica. Eventualmente, o acusado pode aparecer nessas imagens. Elas não podem ser usadas? Não posso capturar uma tela para incluir no meu arrazoado, para tentar demonstrar algum aspecto relevante? Ou, no máximo, tenho que borrar a imagem? São diversos questionamentos, problemas que simplesmente não existiriam se as pessoas fossem um pouco mais razoáveis.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que tantas contribuições já deu ao avanço do direito penal, agora se excedeu, a meu ver. Lamento muito por essa decisão exagerada, que tomo por um sintoma de nossa sociedade atual, onde todo mundo é altamente suscetível, se ofende com tudo, se magoa, sofre, chora, arranca os cabelos e exige compreensão de Deus e do mundo. Em suma, um cenário em que todo mundo tem muitos direitos e dever nenhum.

Anote aí: isso não vai dar certo.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-out-27/foto-reu-denuncia-agride-direito-fundamental-decide-tj-rs

Pretextos para fazer nada

Certo dia, comentei como achava um absurdo a cidade parar mais um dia por causa do Recírio. Ainda mais porque o evento em si é rápido, representando uma procissão modesta de aproximadamente 160 metros. Até seria compreensível a reorganização do trânsito durante o tempo necessário, na área de influência.

Obviamente, meu comentário foi recebido com ódio por uma pessoa que, recorrendo a uma técnica falaciosa muito comum, tentou dar a sua opinião uma grandeza que na verdade não possui. O reproche saiu nestes termos: "As pessoas têm o direito de viver a sua fé!"

Por meio desse brado, fui implicitamente acusado de intolerância religiosa e a pessoa em questão tentou colocar-se numa condição moral maior do que a minha. No entanto, em momento algum ela trouxe à tona o fato de que o Recírio, indiscutivelmente, mobiliza uma quantidade de pessoas que não se compara à dos eventos do Círio. É um evento minúsculo e muito mais breve, características que nada têm a ver com seu mérito religioso. Não estou discutindo o tamanho ou o valor da fé, mas a necessidade de estagnar a cidade por mais uma manhã e, em muitos casos, por mais um dia inteiro.

Em suma, não existe razão plausível para que o Recírio pare Belém, enquanto aqueles que se dizem devotos estão em casa dormindo até mais tarde ou fazendo outras coisas, mais mundanas, em vez de rezar. A própria pessoa que me criticou com tanta virulência, com certeza, jamais acompanhou o Recírio sequer pelo radinho de pilha. Mas quer o feriado, claro.

A coisa piorou porque, há uns poucos anos, a cidade começou a parar também na segunda-feira após o Círio. Motivo? Eu também gostaria de saber. Brinco dizendo que é para digerirmos a maniçoba e o pato no tucupi, porque sendo o almoço festivo uma ocasião de abusos, no dia seguinte está todo mundo estragado. Mas isso, claro, é apenas uma galhofa. Não existe nenhuma razão legítima para a interrupção de atividades no dia seguinte ao Círio, sequer o suposto argumento de fé do Recírio.

Mas todo brasileiro gosta de uma vadiagem, não é? No final das contas, isso acaba explicando muita coisa. Seja como for, logo mais haverá aula. E eu estarei lá.

domingo, 27 de outubro de 2013

Lições do ENEM 2013

Fuck you quem, mesmo, ô inteligência?
1. Uma jovem que se atrasa para a prova pela quarta vez deve se perguntar se realmente deseja cursar uma faculdade ou se está se sabotando inconscientemente por alguma razão.

2. Um moleque que já tem idade para ingressar no ensino superior e ainda tem as coisas pessoais arrumadas pela vovó deve deixar de ser babaca, crescer e assumir as próprias responsabilidades.

3. Sua carteira de identidade com foto de criança, quase bebê, não serve para identificá-lo na vida adulta.

4. Uma senhora de 72 anos decidiu cursar enfermagem porque o filho de 40 se tornou cadeirante após um assalto e precisa de seus cuidados. Esta senhora conseguiu fazer a prova. E demonstrou a velha máxima: quem quer fazer uma coisa, arruma um jeito; quer não quer, arruma uma desculpa.

Fonte: http://extra.globo.com/noticias/educacao/vida-de-calouro/enem-2013-candidata-no-rio-fica-de-fora-pelo-quarto-ano-veja-outros-atrasados-10551307.html

Outro exemplo que desafia Darwin: http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2013/10/fui-beber-para-ficar-tranquilo-e-perdi-hora-diz-candidato-do-enem-no-ac.html

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Reforma do Código Penal XLII: 806 emendas

Por razões óbvias, adoro novidades sobre o projeto de novo Código Penal, capazes de nos dar esperança de ver essa nova regulamentação surgir ainda nesta encarnação. A novidade agora é que foi encerrada a fase de recebimento de emendas, num total de 806, de modo que o material retornará à comissão especial de 11 senadores criada em agosto, para análise e elaboração de parecer.

O prazo oficial de conclusão dos trabalhos é 16 de dezembro. Se aprovada a proposta, ela seguirá para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.

Algumas emendas são bem interessantes, mas outras, como era de se esperar, são bisonhas. Infelizmente, o temo para examiná-las seria muito grande, então vou ficar devendo. Eventualmente, posso palpitar sobre algum aspecto em particular. Mas os interessados na questão podem consultar o link abaixo (o segundo) e ter acesso aos documentos.

Fontes:

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Final de semana se aproxima

Sexta-feira chegando!


"Mas você tem aula no mestrado."


Precisava ser tão estraga-prazeres?
"E tem um monte de trabalhos para fazer."


Ah, para...
"E aulas para preparar. Como está se sentindo?"


"Conforme-se. E sorria."


Meu melhor sorriso.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Violência contra a mulher: vulnerabilidade vs. direitos humanos

Vocês se lembram do ruído causado pela decisão da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, proferida em julho deste ano, negando a aplicabilidade da "Lei Maria da Penha" ao caso da agressão de Dado Dolabella contra Luana Piovani? Além da repercussão por causa da notoriedade dos envolvidos, o caso provocou indignação porque aquela corte firmou o entendimento de que a tutela diferenciada somente se justifica se a mulher for materialmente vulnerável frente a seu agressor. A ementa da decisão dispôs:

Sem adentrarmos ao mérito da ação penal, temos que, pelo menos em tese, a imputação de agressão realizada por um indivíduo contra sua namorada, poderia, dentro do conceito lógico-legal, ser tutelada pela Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06). Entretanto, a ratio legis requer sua aplicação contra violência intra-familiar, levando em conta relação de gênero, diante da desigualdade socialmente constituída. O campo de atuação e aplicação da respectiva lei está traçado pelo binômio hipossuficiência e vulnerabilidade em que se apresenta culturalmente o gênero mulher no conceito familiar, que inclui relações diversas, movidas por afetividade ou afinidade. No entanto, uma simples análise dos personagens do processo, ou mesmo da notoriedade de suas figuras públicas, já que ambos são atores renomados, nos leva a concluir que a indicada vítima, além de não conviver em relação de afetividade estável como o réu ora embargante, não pode ser considerada uma mulher hipossuficiente ou em situação de vulnerabilidade. 

Há algumas outras decisões de tribunais estaduais, na mesma linha.

Em sentido oposto, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará julgou, na manhã de hoje, conflito negativo de jurisdição no qual se discutia se determinado processo, instaurado a partir de acusação de estupro de vulnerável, deveria ou não ser processado perante a vara privativa dos feitos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher. No caso, a 4ª Vara Penal de Marabá considerou aplicável a "Lei Maria da Penha" diante da informação de que acusado e vítima eram namorados. Contudo, a Vara de Violência Doméstica e Familiar de Marabá declinou da competência alegando que a aludida lei "não se aplica simplesmente pelo fato de a vítima ser mulher, 'mas sim a circunstância de a ofendida ser incapaz de resistir (por questão de imaturidade ou deficiência física ou psicológica) à ação delituosa', citando precedentes do Superior Tribunal de Justiça e de tribunais estaduais".

O Procurador-Geral de Justiça também sustentou que a norma tutelar se aplica ao crime "motivado pela vulnerabilidade da vítima em relação ao ofensor, em decorrência de seu gênero", caracterizada ainda a relação íntima de afeto prevista pela lei de regência, não havendo provas do envolvimento entre acusado e ofendida, que se teriam resumido a “relações sexuais ocasionais”.

Relator do feito, o Des. João José da Silva Maroja não concordou com a tese, destacando que a proteção da mulher é uma questão de direitos humanos. Foi acompanhado por todos os integrantes do Tribunal Pleno presentes à sessão. Eis o voto:

O presente caso se encontra instruído apenas com as informações coligidas durante o inquérito policial, do qual consta o depoimento da suposta ofendida, R. G. S., assistida pela mãe, ocasião em que declarou que, “no mês de julho de 2011, começou a ‘curtir’” com o acusado, engravidou e este parou de procurá-la, para não assumir a paternidade.

A mãe da adolescente disse que esta “começou a se relacionar” com o acusado, passando “dias sem dormir em casa”. Aduziu que a menor se envolvera sexualmente com outro homem, antes, e fugia da escola para se encontrar com ele.

A irmã da ofendida foi quem se referiu à relação entre os envolvidos como um namoro que teria durado cerca de um ano.

O acusado disse ter “ficado” com a adolescente algumas vezes, por ser apaixonada por ele, tanto que o procurava em sua casa, onde mantinham relações sexuais. Alegou não saber se é o pai do filho da mesma, porque ela teria ficado com outros cinco homens.

Estes são os únicos elementos que temos à disposição, lembrando que a presente análise deve ser perfunctória, porque se cuida apenas de decidir o órgão jurisdicional competente, sendo vedada incursão pelo mérito. Em consequência, esta corte não pode firmar um juízo conclusivo acerca de o caso em apreço implicar em violência de gênero, mas tão somente decidir se o caso apresenta requisitos suficientes para ser interpretado dessa forma, com base em que se decidirá o juízo competente.

Esclarecido isto, temos que o próprio acusado admite um relacionamento com a adolescente, ao longo de alguns meses. Mesmo que para ele não houvesse nenhum interesse de compromisso, é ele quem diz que a jovem estava apaixonada e o procurava em sua casa. Daí se depreende que se locupletou do sentimento da jovem para conseguir relações sexuais o máximo de vezes que pudesse.

A meu ver, esta particularidade preenche o sentido da “Lei Maria da Penha”, no que tange à ação criminosa ser decorrência de alguma forma de abuso no contexto de relações íntimas de afeto, tendo o acusado convivido com a ofendida independentemente de coabitação (art. 5º, III). No caso, a intimidade não deve ser entendida no contexto do sentimento, mas do fato de ter havido relações sexuais consensuais, íntimas por natureza.

Aduza-se que o presente caso traz consigo a singularidade do próprio tipo penal denunciado — estupro de vulnerável —, no qual a violência decorre de uma valoração da ordem jurídica: não precisa haver violência real, senão um juízo normativo que reconhece certos indivíduos como incapazes de deliberar sobre a própria vida sexual, em consequência de uma vulnerabilidade que não é material, mas jurídica, associada por lei a certas características pessoais, no caso a idade inferior a 14 anos.

Posso ainda acrescentar que o acusado, por ser heterossexual, decidiu manter relações sexuais com a ofendida justamente por se tratar de uma mulher, argumento que me parece reforçar a conclusão aqui sustentada.

O argumento defendido pelo juízo suscitante, e corroborado pela Procuradoria-Geral de Justiça, de que a “Lei Maria da Penha” somente pode ser aplicada em situações que evidenciem a fragilidade real da mulher em relação ao homem, não parece minimamente sustentada no texto expresso da norma, seja porque todas as alusões feitas a “mulher” ou “mulheres” nunca apresentam qualquer qualificativo, exceto a óbvia e genérica “mulheres em situação de violência doméstica e familiar”, seja porque o art. 2º dispõe, ostensivamente, que “toda mulher”, sem exceção, independentemente de circunstâncias que as qualifiquem, são abrangidas pelas normas em questão.

A restrição, estabelecida nos precedentes de tribunais estaduais citados, esvazia o sentido tutelar da “Lei Maria da Penha”, ainda mais quando lembramos o seu art. 6º, segundo o qual “a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”. E constitui informação elementar que os direitos humanos se caracterizam por sua universalidade.

Sob estes argumentos, firmo minha convicção quanto à caracterização, em tese, de um caso de violência de gênero na hipótese dos presentes autos, motivo pelo qual declaro a competência em favor da Vara de Violência Doméstica e Familiar de Marabá.

É como voto.
Belém, 23 de outubro de 2013.


Des. João José da Silva Maroja
Relator

Toca de piscina

Li a manchete e me pus imediatamente a meditar...


...tentando entender que diabo de toca seria essa. Pensei até em um buraco embaixo d'água! Passados alguns segundos, percebi que a explicação era menos sofisticada e mais triste: novamente, a falta de zelo da imprensa atual produziu mais uma pérola.

Enfim, conheça a piscina para naturistas em Paris, onde você pode nadar peladão, mas é obrigado a usar touca de cabeça!

Um sonho a caminho da realização?

O meu próprio condicionador de ar portátil?

Parabéns aos estudantes do famoso Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Espero que a criação deles chegue ao mercado o mais rápido possível. E que seja possível adquiri-la, claro.

Saiba do que se trata lendo aqui.

A guerra santa das biografias

Quando éramos crianças, meu irmão ganhou de presente um livro, uma belíssima encadernação intitulada Grandes vidas, grandes obras (publicação de Seleções do Reader's Digest), que compilava diversos artigos biográficos ilustrados, de diferentes autores, indo de Confúcio a Walt Disney, passando por expoentes das artes e da ciência. Foi através desse livro que tomei conhecimento de personalidades como Florence Nightingale, Francisco de Goya e Gengis Khan, nome este que, até então, eu associava apenas a uma estranhíssima e cafona banda que fazia sucesso no programa dominical do Silvio Santos.

Graças às biografias, escapei do ridículo de
achar que Gengis Khan era apenas isto.
Foi lendo esse livro que descobri o prazer de degustar biografias. Naturalmente, com o tempo, passei a valorizar as biografias alentadas, não simples artigos, mas volumes inteiros e bem fundamentados contando a vida de alguém que, por alguma razão, fez diferença no mundo.

Os motivos que levam uma pessoa a se tornar pública e de interesse para a posteridade são os mais variados. Nestes tempos obscuros em que se cultua tanto o conceito de "celebridade", o qual acabou por estabelecer uma nova doença da contemporaneidade — a obsessão por ser celebridade —, a questão pode ganhar novo fôlego.

O fato é que há mais ou menos três semanas está sendo travada uma batalha pública entre jornalistas e artistas, a respeito do direito que os primeiros reivindicam de escrever biografias não autorizadas, o que faz parte da atividade jornalística e, por isso, regida pelas liberdades de expressão e de imprensa. A premissa é de que a sociedade tem interesse de conhecer certas personalidades e que isso enseja um direito ao conhecimento dessa informação, porque ela diz muito sobre o país como um todo. Quando se escreve sobre uma pessoa, necessariamente se descortina todo um pano de fundo, de modo que o indivíduo se torna o trampolim para a descrição de uma época, de um modo de viver e, em especial, de certos eventos específicos.

Assim, conhecer a vida de um artista, um cantor, p. ex., pode dizer muito sobre um pedaço da história da cultura brasileira. Já escrevi sobre a excelente biografia de Renato Russo, da qual se pode extrair um olhar sobre a década de 1980, sobre aqueles tempos em que a ditadura militar cedia espaço à redemocratização, mas os ranços do passado estavam todos em vigor. Lendo aquele livro, pude ver como a indústria fonográfica já ditava as regras, mas ainda havia uma preocupação com a qualidade, com revelar talentos autênticos, e não essa coisa horrível de hoje, em que o interesse é apenas em produtos comerciais. Outro aspecto relevante a ser considerado é a descrição do comportamento dos jovens de classe média de Brasília, naquele período.

Mas alguns artistas decidiram bater o pé e até se organizaram em torno de um movimento, o "Procure Saber", que defende a obrigatoriedade de autorização do biografado ou de seus descendentes, para que a obra seja escrita ou lançada no mercado, assim como compensações financeiras. O Código Civil atual permite a oposição dos atingidos pela obra, que podem impedir a sua divulgação. Como estamos falando de artistas do porte de Roberto Carlos (que já censurou uma biografia sua), Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Djavan e Milton Nascimento, a coisa tomou uma dimensão imensa. E a partir daí a disputa que se travou, longe de um debate qualificado, tornou-se uma sucessão de afirmações toscas e desmentidos.

Djavan, p. ex., alegou que os biógrafos e suas editoras ganham fortunas com tais obras, enquanto o biografado, que teve sua vida explorada, nada ganha com isso e fica apenas com o sofrimento de ter sua vida escancarada. Recebeu respostas contundentes, p. ex. de Mário Magalhães, autor da biografia de Carlos Marighella (minha leitura atual; ver link abaixo), e de Luiz Schwarcz, da Cia. das Letras.

Mais feio ainda ficou para o endeusado Chico Buarque, quando sugeriu que o biógrafo de Roberto Carlos mentira sobre tê-lo entrevistado e, no espaço de poucas horas, tomou pela cara um desmentido com texto, fotos e até mesmo vídeos, levando-o a pedir desculpas públicas. Contudo, no mesmo texto, persistiu negando alguns fatos. Quando li a tréplica do jornalista Paulo César de Araújo, fiquei totalmente convencido. Chico foi de uma infelicidade colossal e inesquecível.

Outros artistas têm-se manifestado, a maioria pela liberdade de escrever biografias. Ney Matogrosso, p. ex., em cuja biografia (disseram-me) há um capítulo dedicado aos seus desafetos, que obviamente o detonam e nem por isso ele tomou medidas de cerceamento, teria perguntado: "De que essas pessoas têm medo?"


A pergunta é pertinente. Afinal, nem estamos falando especificamente de artistas, mas de pessoas públicas em geral, onde também se incluem os políticos. Veja-se, p. ex., o caso de José Sarney: há duas biografias a seu respeito. Honoráveis bandidos, de Palmério Dória (nascido em Santarém e criado aqui em Belém), foi aclamada. Já a outra, quase desconhecida, é exemplo das críticas que têm sido feitas: se somente se publica o que for autorizado, então se pode esperar um texto bajulador, inocente ou, como estão dizendo, "chapa branca". Há muita gente neste país que adoraria deixar quieto, mas é nosso dever não permitir que seus feitos caiam no esquecimento, porque continuam ativos e danosos à sociedade.

Fomentando o debate, o Portal G1 entrevistou biógrafos de sete países diferentes, responsáveis pelos perfis de gente como Vladimir Putin, Paul McCartney e Edith Piaf, dentre outros, e todos se mostraram mal impressionados com a lei brasileira, como era de se esperar, defendendo a liberdade de escrever esse tipo de obra. Seus argumentos são relevantes e não meramente classistas. Que o diga Masha Gessen, biógrafa de Putin, indivíduo que reúne credenciais mais do que suficientes para ser classificado como ditador, embora reinando em um regime formalmente democrático.

Toda essa discussão sobre um tema que nunca antes ocupara meus pensamentos serviu para que eu me informasse e formasse uma opinião esclarecida. Sou pela liberdade, também. Não vi um só argumento que não denunciasse má fé ou interesse pessoal. Pelo lado oposto, a legislação existente permite a repressão a abusos. No mais, nenhum sistema é perfeito a ponto de impedir que ninguém saia prejudicado. Então o sistema menos agressivo ao bem que se pode obter é o das liberdades.

O site da Câmara dos Deputados informa que o PL 393/2011, que modifica o Código Civil e assegura a liberdade de escrever biografias não autorizadas, pode ser votado hoje. Mas acho difícil, porque alguns líderes já disseram que a matéria é importante, porém não urgente, devendo-se dar prioridade a algumas questões bem mais úteis ao funcionamento do país. E me parece que eles têm razão. Enquanto a briga segue, vamos nos divertindo com os exercícios de retórica.

Outros textos interessantes:

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Quando a realidade é mais curiosa do que um programa de humor

Daí você cresce, começa a trabalhar, conhece uma pessoa legal e decide casar ou morar junto. Necessita, naturalmente, de um cantinho para chamar de seu. Então entra naquela faina desgastante de encontrar um lugar que esteja de acordo com suas posses, desejos e necessidades. Procura com base no bairro, vizinhança, serviços próximos, nível de silêncio, de arborização, de trânsito, etc.

Muitos procuram a agitação da cidade grande, o fausto, os sinais exteriores de riqueza. Outros buscam uma vida mais simples no campo, com mais contato com a natureza. Para algumas pessoas, contudo, o planejamento é um pouco diferente disso:


Alguns comentários sobre a reportagem que originou este texto:

  • Marcos Valério corre, sim, o risco de passar o resto da vida na cadeia. Possui duas condenações ainda não transitadas em julgado, que somam mais de 44 anos de prisão. Só pelo caso do "mensalão" são mais de 40 anos. Ele está com 52 e, a depender de suas condições de saúde, há motivos concretos para ele se preocupar com o risco de não voltar à rua enquanto isso ainda lhe serve de alguma coisa.
  • A Lei de Execução Penal prevê o direito de cumprir pena o mais perto possível do local de residência, a fim de favorecer a subsistência dos vínculos familiares.
  • Escolha da vizinhança: em um presídio de segurança máxima, MV conviveria com criminosos de alta periculosidade. Na casa penal de cidade pequena, conviverá com delinquentes menos ofensivos. É como possuir vizinhos que não te molestam nem destroem o sossego público.
  • O contrato de união estável é uma providência perfeitamente legal e bastante disseminada hoje em dia. MV lançou mão dele, provavelmente, porque muitas casas penais só autorizam visitas íntimas quando o apenado comprova possuir uma relação marital com alguém. Nada de sexo casual na prisão (com gente de fora, bem entendido).
  • A LEP estabelece, como direito do preso, a "visita do cônjuge, da companheira [sintomático esta palavra estar no feminino], de parentes e amigos em dias determinados". Não há menção expressa a visita íntima, mas esta é assegurada por integrar os direitos de personalidade do ser humano; faz parte de sua dignidade e contribui para a subsistência de vínculos afetivos saudáveis, além de desafogar os institutos primitivos do indivíduo, sem o que ele pode se sentir inclinado a violências.
  • A LEP também assegura, ao apenado, a assistência espiritual. Entretanto, nos termos de seu art. 24, trata-se do direito de participar livremente de serviços organizados no interior do estabelecimento, além de possuir livros de instrução religiosa. O cultivo desse lado espiritual pode ser muito útil no processo de ressocialização.
  • A assertiva "Se conseguir entrar na lista dos presos de confiança da cadeia, poderá até sair para trabalhar fora da unidade prisional" não é verdadeira. Dá a entender que basta o apenado se comportar (até por fingimento) para cair nas graças do diretor da instituição e aí ganhar autorizações de saída. Ao contrário disso, o art. 36 é expresso ao estatuir que "o trabalho externo será admissível para os presos em regime fechado somente em serviço ou obras públicas realizadas por órgãos da administração direta ou indireta, ou entidades privadas, etc.". E o art. 37 condiciona o trabalho externo à autorização da direção do presídio, com base na aptidão, disciplina e responsabilidade do apenado, que precisa já ter cumprido no mínimo um sexto de sua pena (no caso de MV, 6 anos, 8 meses e 21 dias, considerando só a pena do caso "mensalão" e abstraindo fatores de modificação, como a remição).
  • A saída temporária para fins de trabalho, sem vigilância, é uma característica do regime semiaberto e se subordina ao mérito do apenado e ao cumprimento de ao menos um sexto de sua pena (arts. 122 e 123). MV está condenado em regime fechado e só pode pensar em progressão de regime após cumprir um sexto da pena.
  • Não faltou o clichê do coroa cheio da grana que se envolve com mulher com idade para ser sua filha caçula. Duvido que a moça seja feia.
Seja como for, não acredito que Marcos Valério esteja cantarolando "eu quero uma casa no campo"...

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O direito de ser deixado em paz

Uma das maiores belezas do direito é sua transformação por força das mudanças por que passa o próprio mundo. Afinal, estamos na seara de uma ciência social aplicada. Mesmo com a habitual resistência a mudanças e, até mesmo, uma absurda resistência a abraçar o novo, chega uma hora em que as teias de aranha precisam ser espanadas. Com isso, surgem novas demandas e teses. Uma bastante interessante é o direito ao esquecimento. Enquanto cresce a exigência de se assegurar a verdade histórica, debate-se também a questão do direito de ser, literalmente, deixado em paz — o right to be let alone dos anglossaxões.

Na página do Superior Tribunal de Justiça foi publicada, hoje, instigante matéria sobre o tema, que vale a pena ler. Partindo de julgamentos verídicos, ela aborda o direito ao esquecimento:

  • na perspectiva dos acusados de crimes (caso de um dos réus da Chacina da Candelária, que foi absolvido, porém teve sua imagem explorada, anos mais tarde, pelo programa Linha Direta, da TV Globo);
  • dos familiares de vítimas de crimes (caso de pedido de indenização negado, pela exploração naquele mesmo programa de TV, de um caso de estupro e homicídio ocorrido em 1958);
  • da ampla difusão de informações favorecida pela internet, que coloca em confronto a privacidade individual e as liberdades de expressão e imprensa;
Fiquei conhecendo o termo "superinformacionismo", exposição excessiva de fato que não deveria ser divulgado e, por isso, autoriza medidas judiciais, p. ex. determinando a retirada de certos conteúdos da internet (medida sabidamente inócua, que acaba se prestando apenas a justificar provimentos por reparação de danos).

Novas questões com que os estudiosos do direito devem se acostumar. E questões demasiadamente humanas.

Contra o direito ao esquecimento: http://www.conjur.com.br/2013-out-21/direito-fundamental-esquecimento-afirmacao-insustentavel

sábado, 19 de outubro de 2013

Vinícius para sempre

Meu poeta brasileiro favorito se chama Marcus Vinícius de Moraes, nascido na capital carioca há exatos 100 anos. O centenário foi amplamente lembrado hoje e até virou um doodle do Google.

Mais conhecido como poeta e compositor, havendo uns tantos vídeos disponíveis na internet em que ele aparece cantando, também foi dramaturgo e jornalista. Em 1943, foi aprovado em disputado concurso público para a carreira diplomática. Serviu nos Estados Unidos e em Portugal, mas em 1946, por causa de sua coragem e de suas ideias à esquerda, foi exonerado em situação de perseguição política.

Por meio da Lei n. 12.265, de 2010, foi promovido post mortem a Ministro de Primeira Classe da Carreira de Diplomata, o que beneficiou diretamente os seus herdeiros. Uma reparação para uma injustiça. Mas o Poetinha, como era conhecido, vive mesmo no coração dos brasileiros, através de alguns de seus poemas, que são muito populares.

Vinícius já foi mencionando, aqui no blog, em mais de uma ocasião: excerto de "Pátria minha", o lascivo "Soneto do caju", "Soneto a quatro mãos", "Ternura" (meu poema favorito de sua lavra), "Balada do enterrado vivo" e "O operário em construção".

O Poetinha nos deixou em 9 de julho de 1980, aos 67 anos, por causa de um edema pulmonar, sem dúvida alguma pleno de poemas que deixamos de ler. Recordo-me do prazer que tive ao percorrer a casa em que ele viveu, hoje transformada em um museu. E foi durante a minha lua de mel, uma ocasião muito propícia a celebrar o poeta, como ele celebrava tão lindamente. Eu não poderia deixar este dia acabar sem prestar a minha reverência.

Para saber mais: 

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Black-bloc-reacionário-ou-não

Foi assim que Caetano Veloso (71) quis ser fotografado no último dia 5 de setembro: com uma camiseta preta ocultando o rosto, para demonstrar seu apoio ao movimento Black Bloc, que tem tirado o sono das autoridades em diferentes países, o Brasil inclusive. E a foto foi feita na sede do grupo Mídia Ninja, um movimento de jornalistas que se consideram ativistas sociopolíticos e uma via alternativa à imprensa tradicional. Junto com sociólogos e antropólogos, Caetano mandou uma carta ao secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, João Mariano Beltrame, cobrando o fim da violência policial contra populares, nas incessantes manifestações que tem ocorrido na capital daquele Estado.

Moderno, audacioso e libertário esse Caetano, não? Contra a ordem estabelecida! Difícil crer que se trata do mesmo Caetano Veloso que, há duas semanas, entrou no olho do furacão na polêmica sobre as biografias não autorizadas.

Para quem não sabe, tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação direta de inconstitucionalidade que tenta expurgar do ordenamento jurídico dispositivos do Código Civil com base nos quais uma pessoa, ou seus descendentes, pode proibir a publicação de biografias, a fim de preservar a privacidade. O confronto se dá com a liberdade de expressão e o direito à verdade histórica, este um tema de crescente interesse não apenas para juristas, mas para a sociedade como um todo. O caso ganhou maior repercussão porque a Min. Cármen Lúcia, relatora do processo, marcou uma audiência pública para debater a matéria.

Como ninguém pode ousar se meter com a imprensa, a confusão está armada. Tenho lido alguns artigos muito interessantes e elegantes sobre o tema e qualquer hora dessas farei uma postagem a respeito. O fato é que Caetano Veloso é um dos expoentes do movimento "Procure Saber", que, sob diferentes argumentos humanitários, quer influenciar o STF a manter o Código Civil como está.

Caetano não é o único bipolar. Sua ex-esposa, a produtora Paula Lavigne, que tornou público o seu "orgulho" frente à atitude "sensacional" do "painho", é quem está à frente do "Procure Saber".

Veloso e Lavigne, assim, revelam-se maus líderes da campanha, cuja baixa credibilidade fica ainda mais comprometida diante de uma postura tão contraditória, ensejando a conclusão de que, no final das contas, a suposta ideologia é presidida mesmo interesse pessoal. Caetano acaba sendo o mais achincalhado de todos os defensores da lei atual, porque foi justamente ele que, no embate contra a ditadura militar, entrou para a história com a frase "é proibido proibir".

Estou achando bem divertido o bate-boca, que acompanho com interesse porque adoro biografias.

Fonte: http://extra.globo.com/noticias/brasil/caetano-veloso-cobre-rosto-com-pano-preto-em-apoio-ao-black-bloc-9848055.html

Trabalho escravo: mais um pequeno passo

Após anos e anos de enrolação vigarista, a despeito dos esforços de setores mais decentes do Congresso Nacional, a PEC do trabalho escravo retornou à pauta da Câmara dos Deputados em maio deste ano. Mas como a proposição já está aprovada pelo Senado, a turma empenhada em barrar a matéria precisava engendrar mais alguma chicana para impedir a aprovação. A estratégia escolhida foi dizer que, antes de mudar a constituição, era necessário definir claramente o conceito de trabalho escravo. Um conveniente argumento de segurança jurídica.

Coube então à Comissão Mista de Consolidação de Leis e Regulamentação de Dispositivos Constitucionais a tarefa de propor um projeto de lei regulamentando o tema. Naquele momento, pensei comigo: "Pronto: mais alguns anos de omissão criminosa".

Confesso que, com imensa surpresa, soube que a tal comissão aprovou o texto do projeto de lei ontem, em pouco mais de quatro meses. Com isso, a PEC poderá finalmente ser votada. Será que agora a coisa vai? Acho que sim. Mas não se engane: nossos valorosos congressistas estão mais uma vez aplicando a prática de dar os aneis para conservar os dedos. A aprovação da PEC será anunciada com todo o estardalhaço, para mostrar o compromisso da classe política com a justiça social no campo. A mídia, sempre atrelada a quem pode lhe render mais dinheiro, p. ex. através de contratos de publicidade, divulgará essa perspectiva. Mas o povo não saberá que o ouro é de tolo e a vitória, de Pirro.

Depois de supostos debates, a comissão definiu trabalho escravo com base nos seguintes parâmetros:

  • "submissão a trabalho forçado, exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, ou que se conclui da maneira involuntária, ou com restrição da liberdade pessoal"
  • "submissão a jornada exaustiva, quer sujeitando o trabalhador a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto"
  • "cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho"
  • "manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho ou a apropriação de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho"
  • "restrição, por qualquer meio, da locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com empregador ou preposto"

Você realmente acha que essa tragédia vai acabar?
Não com os métodos que vêm sendo empregados.
A malinagem começa a ser percebida pelo fato de que a comissão passou esses meses todos trabalhando para chegar a uma redação que, no final das contas, é apenas um aprimoramento sutil do texto que já define o crime de redução à condição análoga à de escravo (art. 149 do Código Penal, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 10.803, de 2003). Dez anos após a aludida lei, não se avançou na matéria e, inclusive, foram mantidos equívocos conhecidos, como a previsão de que só há ilicitude se a vigilância no local de trabalho for ostensiva, brecha deixada para que os exploradores possam ficar impunes, em caso de vigilância dissimulada. E isto em tempos de popularização da tecnologia e expansão do trabalho escravo urbano.

Seja como for, o que é ruim na origem não tem como se salvar. Sempre em nome da segurança — rectius: da proteção dos escravizadores —, foram engendrados três mecanismos propensos a esvaziar a eficácia da norma.

O primeiro é a previsão de que a expropriação das terras somente pode ocorrer quando a exploração do trabalho escravo for realizada diretamente pelo proprietário das terras. Em princípio, esta ressalva faz todo o sentido, evitando que um inocente seja punido por atos de terceiros. Os parlamentares se lembraram de resguardar o proprietário que, estando distante, não sabe que seus prepostos perversos estão escravizando pessoas sem a sua ordem e conhecimento.

O que os parlamentares fizeram questão de esquecer foi nada menos que a realidade. Dentre as muitas formas de assegurar a própria impunidade, está a ação de atribuir a responsabilidade aos administradores das fazendas. Por meio de uma cadeia de comando, tenta-se dificultar a apuração de responsabilidades, sabendo-se que, na dúvida, os acusados serão inocentados. Insuficiência de provas. Assim, o dono não sabe o que faz o seu gerente; o gerente não sabe o que faz o capataz; o capataz não sabe o que fizeram os empregados enfurnados no mato no meio dos trabalhadores. O argumento é sempre o mesmo: o local do trabalho era distante da sede da fazenda e de difícil acesso. Eu não ia lá e por isso não sabia o que se passava. Resultado: absolvição.

Para conhecer essa tese defensória, os congressistas não precisavam sequer sair do prédio: há uns tantos deputados e senadores acusados de escravizar seres humanos e eles se defenderam exatamente assim. Mas, curiosamente, ninguém se lembrou de pensar em procedimentos de segurança em favor das vítimas.

O segundo estratagema é o condicionamento da exploração a uma sentença penal condenatória. Originalmente, a ideia era permitir a expropriação a partir da constatação do fato em si do trabalho em condições análogas à escravidão. Assim, uma diligência do Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho seria suficiente. Afinal, é um meio idôneo de prova. Mas os advogados internos dos exploradores trataram de condicionar a medida ao reconhecimento de crime, não do fato em si. E aí surgem todos os condicionamentos próprios do processo penal, inclusive a absolvição por falta de provas e especialmente a prescrição.

Com sua pena máxima cominada em 8 anos de reclusão (há duas hipóteses de majoração), a prescrição se dá em 12. Mas se o acusado for maior de 70 anos, o prazo é reduzido pela metade. No judiciário brasileiro, arrastar um processo por mais de 6 anos é trivial, ainda mais para quem conta com bons advogados. Mas essa é a situação considerada a pena máxima. Digamos que o acusado seja condenado à pena mínima, módicos 2 anos de reclusão: prescrição em 4. Nem precisa reduzir à metade para vê-la aparecer. As terras permanecerão nas mesmas mãos, para mais alguns anos de exploração. Afinal, o direito de propriedade é sagrado.

O último malfeito, consequência imediata do tópico anterior, é postergar a expropriação para depois do trânsito em julgado da dita sentença penal condenatória. Embora seja uma medida previsível, traz como efeito prático a impossibilidade de iniciar o procedimento expropriatório durante longos anos, tempo suficiente para que, através da prescrição ou eventuais outras hipóteses, a sentença não transite em julgado e a impunidade seja assegurada, com base na lei.

Estas considerações nada têm de inéditas. São até bastante conhecidas. Só os congressistas é que parecem não ter conhecimento delas. E, certamente, não se importam.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Uma das melhores do mundo

O simpático jurista italiano Luigi Ferrajoli visitou o Brasil, tendo palestrado há dois dias no Instituto Brasiliense de Direito Público. Mais conhecido por estas bandas pela teoria do garantismo penal, vilipendiada por 11 em cada 10 desinformados e desmerecida por meio do uso irrefletido do termo "garantismo", o professor florentino da Universidade de Roma Tre não é exatamente um penalista, como muitos pensam. Ele é um teórico do direito com larga atuação no plano do constitucionalismo.

Com essa bagagem, Ferrajoli elogiou a Constituição brasileira de 1988, classificando-a como "uma das mais avançadas do mundo", embasando sua afirmação no fato de que dispôs acerca dos direitos sociais como fundamentais e criou mecanismos valiosos para efetivá-los.

A percepção teórica de Ferrajoli está correta. Infelizmente, ele não conhece suficientemente o jeitinho brasileiro para saber que, por estas bandas, a constituição ainda segue sendo a folha de papel de que falava Ferdinand Lassalle, patrocinando cidadãos de papel, como disse Gilberto Dimenstein. Em suma, na prática a teoria é diferente. O mestre italiano não merece críticas por isso. Ele fala sob a perspectiva de um europeu que conviveu com os efeitos da 2ª Guerra Mundial (nasceu em 1940), em um país onde grassou o fascismo. É bastante natural que, para ele, uma constituição consagrando direitos seja algo digno dos maiores encômios.

Errados estamos nós, que não nos esforçamos por transformar em realidade tudo aquilo que nossa Carta Magna pode ser, seja porque não nos mobilizamos, seja porque menosprezamos quem se mobiliza; seja porque não fiscalizamos, não cobramos e ainda por cima elegemos justamente os que agirão em sentido contrário; seja porque enaltecemos as aparências e fingimos não ver a realidade.

É por isso que os teóricos são imprescindíveis: porque são capazes de produzir conhecimento sistemático e claro acerca daquilo que todos precisam saber, a fim de poder agir, no dia em que finalmente quiserem.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-out-16/constituicao-brasileira-avancadas-mundo-luigi-ferrajoli

Lutando contra...

A reflexão do dia:

"E tudo aquilo contra o que sempre lutam
É exatamente tudo aquilo o que eles são"

Da canção "Marcianos invadem a Terra", 
da Legião Urbana

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Penas alternativas: sangue

Dois condenados à prisão em Poços de Caldas (MG) tiveram suas penas substituídas e poderão permanecer livres, sob a condição de se tornarem doadores no banco de sangue da cidade. A decisão, do juiz da 1ª Vara Criminal do município, Narciso Alvarenga Monteiro de Castro, estabeleceu ainda que eles deverão prestar serviços à comunidade. Ambos foram condenados a penas inferiores a quatro anos de reclusão e preenchiam os demais requisitos para substituição da penalidade.
Em um dos casos, um senhor de 53 anos de idade foi flagrado por policiais em março de 2005 com um revolver com a documentação vencida. A defesa do acusado alegou que a arma não estava carregada no momento da abordagem. Porém, segundo o magistrado, o mesmo possuía munição consigo e isto não mudaria a aplicação da lei.
O segundo caso envolvia uma gari que, em 2011, dirigia embriagada, provocou um acidente de trânsito envolvendo uma moto e fugiu sem prestar socorro. A mulher de 32 anos fugiu do local do acidente alegando medo de outros motoqueiros que estavam próximos da vítima. Ao ser presa em flagrante pela polícia, ela apresentou uma CNH falsa e no teste de bafômetro foi constatada a embriaguez — o que ela confessou em juízo.
Os acusados foram sentenciados no final de setembro com penas entre dois e três anos de reclusão, que o juiz substituiu por duas penas restrititivas de direito para cada um. A doação de sangue, estipulada como uma delas, será aplicada caso os sentenciados estejam aptos e não tenham restrição médica. No caso de impossibilidade de doação por parte dos condenados, cabe ao juiz da Vara de Execuções da comarca a nova determinação de pena alternativa. 
Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-MG.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-out-16/juiz-pocos-caldas-reverte-penas-reclusao-doacoes-sangue

A primeira coisa a se dizer sobre a atitude do juiz mineiro é que ela possui respaldo legal. O CP prevê cinco espécies de penas classificadas como "restritivas de direitos" (embora nem todas sejam, de fato, restritivas de direitos), sendo que uma delas, a prestação pecuniária, pode ser transformada em "prestação de outra natureza" (art. 45, § 2º), podendo-se cogitar de obrigações de fazer, tais como doar sangue.

Autores existem, Cezar Bitencourt entre eles, que inquinam essa norma de inconstitucional, porque configuraria pena indeterminada. Com efeito, o princípio da legalidade incide sobre a norma incriminadora como um todo, preceito e sanção, de modo que as consequências do ilícito devem ser conhecidas previamente, em qualidade e quantidade.

Embora o argumento seja irrepreensível numa perspectiva principiológica, toda norma deve ser aplicada de acordo com a sua finalidade. Assim, remontamos, uma vez mais, às funções do direito penal. O que se pretende alcançar por meio de uma sanção criminal? Esta é uma pergunta que não pretendo responder, até porque constitui um debate bicentenário jamais resolvido. Todavia, permito-me oferecer à discussão o argumento de que as chamadas penas alternativas foram concebidas como forma de beneficiar o criminoso condenado, que escaparia da prisão e de seus trágicos efeitos. Assim, o parâmetro interpretativo que se impõe é: uma norma feita para beneficiar não pode prejudicar.

Daí cabe a pergunta: determinar a doação de sangue prejudica o apenado em alguma medida? Entendo que não, exceto se o indivíduo tivesse alguma restrição ideológica à determinação (motivos religiosos, p. ex.). Mas, neste caso, bastaria informar o juiz, que deveria indicar outra pena. Assim, se a pena for efetivamente aplicada, é porque não existe nenhum impedimento, legal ou ético, pessoal do apenado ou externo a ele.

Demonstrada a inexistência de obstáculos jurídicos para aplicação da medida, resta lembrar que a doação de sangue é um grande gesto de solidariedade. Ainda que iniciado por força de determinação judicial, sem espontaneidade, pode inspirar bons sentimentos e senso de responsabilidade, tal como ocorre com a prestação de serviços à comunidade (muitos apenados continuam trabalhando, agora como voluntários, após a expiração da pena).

Por último, destaco que a chamada pena inominada somente pode ser aplicada quando houver "aceitação do beneficiário", que vem a ser a vítima do crime ou seus dependentes, pessoas que receberiam a prestação pecuniária original. Trata-se de regra sumariamente desprezada pelo judiciário, que vive aplicando de forma absurda as "penas de cesta básica" sem dar a menor atenção à vítima, em flagrante violação à lei, sem que ninguém se dê conta disso.

Contudo, nos dois exemplos citados na matéria, os crimes foram de porte ilegal de arma de fogo e de trânsito, sendo que a lesão corporal foi culposa. Assim, são delitos compatíveis com reprimendas menos agressivas e, em se tratando de crimes sem vítima individualizável (todos os delitos citados, menos a lesão corporal), é perfeitamente possível a aplicação direta da pena inominada.

Do meu ponto de vista, merece elogios a atuação do juiz de Poços de Caldas.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Quanto mais eu leio sobre pena de morte...

Após ter a morte frustrada na primeira vez, um cidadão iraniano, condenado a forca, será levado novamente à execução. As autoridades do país só esperam ele se recuperar dos traumas.

O homem identificado por Alireza M., de 37 anos, foi condenado por tráfico de drogas e teve o primeiro enforcamento realizado na última quarta-feira (9), quando foi considerado morto após 12 minutos e levado ao necrotério. Um familiar que preparava o "cadáver" percebeu que o parente respirava.

A polícia iraniana vigia Alireza no hospital, para onde foi levado e se recupera das lesões causadas pela corda.

"O veredicto foi a pena de morte, e ela será cumprida assim que o homem estiver bem novamente", afirmou uma autoridade judicial do Irã em entrevista.

Fonte: http://www.diarioonline.com.br/noticia-260051-condenado-a-morte-sera-enforcado-pela-segunda-vez.html?291410581

...mais me convenço de que é algo absurdamente irracional. E o que é irracional não merece existir neste mundo, muito menos ser oficial.

Saúde mental

Quando comecei a fazer terapia — lá se vão mais de 13 anos , após resistir por um bom tempo, cheguei à conclusão de que todas as pessoas deveriam ter a oportunidade de viver essa experiência. Digo "oportunidade" para destacar que a medida deveria ser totalmente voluntária, uma escolha esclarecida do cidadão que, a partir daí, poderia ter acesso a bons serviços de psicologia, psiquiatria e psicanálise, conforme necessidades e preferências.

Infelizmente, se neste país mal se consegue atenção à saúde para manter o corpo vivo e íntegro, imagine manter a sanidade mental! Os serviços públicos são sobrecarregados e se destinam, basicamente, a atender situações extremas, como as de pessoas direta ou indiretamente atingidas por violência ou por doenças ocupacionais que provocaram afastamento do trabalho.

Só Deus sabe como a demanda é infinitamente superior à oferta. E, com isso, muita gente necessitada deixa de se tratar, mergulhando em intenso sofrimento sem esperança, por anos a fio, às vezes até o final de suas vidas. Vidas que talvez acabem abreviadas ou que, em todo caso, foram suportadas em vez de vividas, sem a qualidade que todos merecemos, mas nem todos alcançamos.

O desembargador do Espírito Santo Pedro Valls Feu Rosa escreveu matéria na qual externa sua fé de que a psicologia pode mudar o mundo, citando uma série de exemplos de comportamentos absurdos ou abusivos, que poderiam ser mitigados se os seus protagonistas tivessem tratado a cabeça. Entendi que a premissa defendida é apenas uma aposta na ideia geral de que, se o indivíduo se conhece, pode agir melhor no mundo. Algo semelhante a se você se alimentar melhor, terá mais saúde e viverá mais. Uma conclusão bastante plausível, sem arroubos de certeza.

Nesse particular, concordo com o articulista e comungo da sua grande preocupação: a quantidade imensa de loucos de todo gênero e de sociopatas que estão aboletados em funções públicas, perpetrando toda sorte de malefícios às pessoas que não podem defender-se de sua opressão. Algo tão comum na realidade deste país — onde o crime de desacato está na ponta da língua desses sombrios personagens, mas nunca o de abuso de autoridade —, que me dou ao direito de não citar nenhum exemplo. Imagino que os leitores terão na memória, em uma fração de segundo, mais de um caso.

Em se tratando de serviço público, e particularmente em relação a funções que exprimam grande poder de ação, o acompanhamento psicológico não deveria ser voluntário. Esses servidores públicos deveriam entrevistar-se anualmente, no mínimo, com terapeutas, para um bate papo e, quem sabe, encaminhamento a terapia mais prolongada. Para certas carreiras, esse acompanhamento deveria ser condição de progressão. Em outras, de permanência na função.

Sei que a proposta é audaciosa e, claro, precisaríamos de muito debate para encontrar um modelo que atendesse às necessidades do país, sem engessar o serviço público e sem transformar os profissionais de saúde mental em déspotas com poderes titânicos sobre tudo e todos. Acima de tudo, sem enveredar por um novo modelo de sociedade de controle, sem incorrer no erro absurdo da psicologização de toda a vida. Mas que do jeito que a coisa está, não é bom. Ouso dizer que, definitivamente, não é bom.

Para os nossos, para nós, para os próximos

Em 2006, quando o blog existia há um mês e meio, recorri à experiência de minha querida e saudosa Profa. Alana, alfabetizadora nas ilhas pobres de Belém, para falar do professor como alguém que ajuda a construir seres humanos.

Em 2007, especulei que talvez ninguém se lembrasse da data, mas ponderei que o mundo não seria o que é sem os professores. Vaidoso, porém verdadeiro.

Em 2008, reproduzi texto sobre a origem do dia do professor e me permiti algumas sentimentalidades.

Em 2009, ponderei que o trabalho dos professores não termina nunca, ainda mais em tempos de tecnologias de comunicação. E torci por um pouco de respeito e reconhecimento para a categoria.
Policial encontra sua antiga professora em meio ao conflito

Em 2010, afirmei que valorizar os professores deveria ser uma posição política. No entanto, pouco se debate e escreve a respeito, fora dos limites da própria área.

Em 2011, lamentei tratar-se de uma data esquecida pela maioria das pessoas. Como é um dia em que não se tem aula, perde-se o contato com o nosso público-alvo e, no dia seguinte, a grande maioria não parece lembrar-se do motivo da folga da véspera.

Em 2012, deixei meu recado pelo Facebook e recebi muitas mensagens carinhosas.

Este ano, a figura do professor se envolveu em vários conflitos, por causa das greves em diferentes lugares, particularmente no Rio de Janeiro, tendo havido muitos episódios de violência, com sintomática indicação de menosprezo pela categoria, a despeito da solidariedade demonstrada nas redes sociais. É a necessidade empurrando para as ruas aquele que também é profissional, pai ou mãe, provedor de um lar e, inclusive, um ser humano desejo de realizar um ou outro sonho.

Ressignificar o papel do professor não deve ser algo que nos surpreenda, porque educação é um trabalho de longo prazo, que muda o tempo inteiro. Logo, seus protagonistas também devem mudar. Mas parece que estamos realmente muito longe do reconhecimento social, em todas as frentes, que a profissão merece. Por isso, o caminho é lutar. Até para que as novas gerações aprendam algo que não reside nas salas de aula: viver é lutar, como já dizia o poeta.

Um feliz dia do professor, para todos nós. E para não perder o hábito, passarei a data corrigindo provas. Como todo ano.

Foto: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/10/opostos-em-protesto-pm-reconhece-e-abraca-ex-professora-no-rio.html

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Como não fazer

Quando você for tomar uma pessoa como refém, ameaçando-a com uma faca, faça o favor de segurar a arma pelo cabo e não pela lâmina, pois assim é você que vai se machucar. Aproveite para usar uma faca que preste em vez de uma faquinha de cozinha, dessas de descascar laranja.


E mande avisar aos diretores da TV Record, por gentileza.

Fonte: http://entretenimento.r7.com/pecado-mortal/fotos/carlao-sequestra-doroteria-e-a-faz-de-refem-11102013/#!/foto/1

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Com doido, doido e meio

A velha lição foi aplicada pelos hackers do AnonymousBrasil em relação ao policial militar sem noção que, dia desses, após um desnecessário confronto policial com violência contra os professores grevistas do Rio de Janeiro, postou em seu perfil no Facebook uma foto sua, portando um cassetete quebrado e a legenda "foi mal fessor!!!!" (dada a falta de empatia com professores, não admira a má redação em meras três palavras).

O caso teve ampla repercussão e gerou um inquérito policial militar. Mas os hackers não deixaram por menos e divulgaram dados pessoais do militar, com bastante ironia: "Para toda ação, existe uma reação igual ou contrária, portanto 'Foi mal coxinha', seus dados foram expostos". Entre as informações pessoais divulgadas, uma relata a existência de um cheque sem fundos.

Os hackers, que agora serão investigados por essa atitude, deixaram bem claro que sua ação foi uma represália ao péssimo senso de humor do militar via Facebook. E cobraram, dele, respeito em favor de quem educa "nossos filhos".

Este é o século XXI. Não sei se devia, mas gostei. Afinal, é uma questão de empatia.

No site do AnonymousBrasil: http://www.anonymousbrasil.com/dossies/fessor-coxinha/

Na imprensa: http://oglobo.globo.com/rio/pm-que-posou-com-cassetete-quebrado-tem-dados-vazados-10312269