O Brasil é o país da carteirada. "Sabe com quem está falando?" deveria ser a legenda ostentada no pavilhão nacional, já que ordem e progresso sempre foram parâmetros bisonhos para nós. Aqui, qualquer um que se julgue alguma coisa se considera ipso factu acima da lei, acima do bem e do mal. E nem precisa ser alguma coisa; basta conhecer alguém que seja alguma coisa, mesmo que, eventualmente, alguma coisa bem pequenina. É a tal síndrome do pequeno poder.
Segundo relata o jornalista Josias de Souza, há alguns dias, um oficial da Polícia Militar do Espírito Santo afrontou os agentes, policiais militares como ele, que faziam uma blitz. Estava saindo de uma boate e, provavelmente, tinha bebido, pois neste país todo malandro bebe e dirige. Mesmo que não tivesse bebido, não poderia ter-se negado a apresentar seus documentos e a obedecer às demais determinações (legais, bem entendido) dos agentes. Leia a notícia aqui.
O que se seguiu foi uma pequena demonstração do que é o nosso país. Arrogante, o infrator se anuncia como coronel, para impressionar, e presume que todos deveriam conhecê-lo. Na verdade, é um tenente-coronel, um grau abaixo. Mas como diligências policiais no meio da noite não são realizadas pela elite, e sim pela raia miúda que trabalha, é claro que a abordagem fora feita por um policial de menor graduação. E militares nunca enfrentam seus superiores, mesmo que seja evidente o quanto estes estão errados. A hierarquia e a obediência são a base da vida militar. Mas degradadas, como ocorre na prática, todo dia, comprometem a própria instituição.
O infrator foi embora sem ser liberado. Nada lhe aconteceu. Ao contrário, foram tomadas medidas para assegurar que não fosse incomodado. O caso somente veio à tona porque a situação foi gravada. Existe áudio e vídeo para comprovar o abuso. Um procedimento investigatório foi instaurado, porque não havia jeito. Mas está sendo conduzido com todas as cautelas, claro. Ninguém quer prejudicar o pobre tenente-coronel que, com certeza, teve lá as suas razões legítimas.
Aliás, esse sombrio personagem é mesmo um artista. Alegou, em sua defesa, que somente um oficial de patente igual ou superior poderia dar-lhe ordens. Tese conveniente, sacramenta a existência de indivíduos de classe superior, que podem fazer o que bem entendem até que um poder mais elevado os bloqueie. Aos poucos, retornaríamos ao estado de natureza hobbesiano. É uma tese tão ridícula e acintosa que sequer merece maior atenção. Mas está funcionando.
Enquanto o cidadão comum, aquele que não é ninguém nem conhece ninguém, está sujeito à total violação de seus direitos; é obrigado a obedecer sem questionar, por maiores que sejam os absurdos que lhe imponham; e que recebe uma ameaça de criminalização por desacato à menor hesitação ante a subserviência, os seres humanos melhores seguem demonstrando que as instituições estão aí para servi-los, para resguardá-los, para mimá-los.
No que deveria ser o mundo real, entretanto, existe um tal de Código Penal Militar, segundo o qual constitui crime de prevaricação "retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra expressa disposição de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal". A pena cominada é de 6 meses a 2 anos de detenção (art. 319). Também é crime a condescendência criminosa. Agentes da blitz e os protetores no procedimento investigatório poderiam ser alcançados por tais normas.
No mundo que deveria ser real, todos deveriam ser sofrido penalidades disciplinares, pelo desrespeito à própria autoridade e dignidade da corporação, sem prejuízo de eventual responsabilidade penal. Mas no mundo que é real, estão todos em paz. Quanto a você, cuide-se e reze. Fé em Deus pode ser tudo que lhe resta.
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