quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Penas alternativas: sangue

Dois condenados à prisão em Poços de Caldas (MG) tiveram suas penas substituídas e poderão permanecer livres, sob a condição de se tornarem doadores no banco de sangue da cidade. A decisão, do juiz da 1ª Vara Criminal do município, Narciso Alvarenga Monteiro de Castro, estabeleceu ainda que eles deverão prestar serviços à comunidade. Ambos foram condenados a penas inferiores a quatro anos de reclusão e preenchiam os demais requisitos para substituição da penalidade.
Em um dos casos, um senhor de 53 anos de idade foi flagrado por policiais em março de 2005 com um revolver com a documentação vencida. A defesa do acusado alegou que a arma não estava carregada no momento da abordagem. Porém, segundo o magistrado, o mesmo possuía munição consigo e isto não mudaria a aplicação da lei.
O segundo caso envolvia uma gari que, em 2011, dirigia embriagada, provocou um acidente de trânsito envolvendo uma moto e fugiu sem prestar socorro. A mulher de 32 anos fugiu do local do acidente alegando medo de outros motoqueiros que estavam próximos da vítima. Ao ser presa em flagrante pela polícia, ela apresentou uma CNH falsa e no teste de bafômetro foi constatada a embriaguez — o que ela confessou em juízo.
Os acusados foram sentenciados no final de setembro com penas entre dois e três anos de reclusão, que o juiz substituiu por duas penas restrititivas de direito para cada um. A doação de sangue, estipulada como uma delas, será aplicada caso os sentenciados estejam aptos e não tenham restrição médica. No caso de impossibilidade de doação por parte dos condenados, cabe ao juiz da Vara de Execuções da comarca a nova determinação de pena alternativa. 
Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-MG.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-out-16/juiz-pocos-caldas-reverte-penas-reclusao-doacoes-sangue

A primeira coisa a se dizer sobre a atitude do juiz mineiro é que ela possui respaldo legal. O CP prevê cinco espécies de penas classificadas como "restritivas de direitos" (embora nem todas sejam, de fato, restritivas de direitos), sendo que uma delas, a prestação pecuniária, pode ser transformada em "prestação de outra natureza" (art. 45, § 2º), podendo-se cogitar de obrigações de fazer, tais como doar sangue.

Autores existem, Cezar Bitencourt entre eles, que inquinam essa norma de inconstitucional, porque configuraria pena indeterminada. Com efeito, o princípio da legalidade incide sobre a norma incriminadora como um todo, preceito e sanção, de modo que as consequências do ilícito devem ser conhecidas previamente, em qualidade e quantidade.

Embora o argumento seja irrepreensível numa perspectiva principiológica, toda norma deve ser aplicada de acordo com a sua finalidade. Assim, remontamos, uma vez mais, às funções do direito penal. O que se pretende alcançar por meio de uma sanção criminal? Esta é uma pergunta que não pretendo responder, até porque constitui um debate bicentenário jamais resolvido. Todavia, permito-me oferecer à discussão o argumento de que as chamadas penas alternativas foram concebidas como forma de beneficiar o criminoso condenado, que escaparia da prisão e de seus trágicos efeitos. Assim, o parâmetro interpretativo que se impõe é: uma norma feita para beneficiar não pode prejudicar.

Daí cabe a pergunta: determinar a doação de sangue prejudica o apenado em alguma medida? Entendo que não, exceto se o indivíduo tivesse alguma restrição ideológica à determinação (motivos religiosos, p. ex.). Mas, neste caso, bastaria informar o juiz, que deveria indicar outra pena. Assim, se a pena for efetivamente aplicada, é porque não existe nenhum impedimento, legal ou ético, pessoal do apenado ou externo a ele.

Demonstrada a inexistência de obstáculos jurídicos para aplicação da medida, resta lembrar que a doação de sangue é um grande gesto de solidariedade. Ainda que iniciado por força de determinação judicial, sem espontaneidade, pode inspirar bons sentimentos e senso de responsabilidade, tal como ocorre com a prestação de serviços à comunidade (muitos apenados continuam trabalhando, agora como voluntários, após a expiração da pena).

Por último, destaco que a chamada pena inominada somente pode ser aplicada quando houver "aceitação do beneficiário", que vem a ser a vítima do crime ou seus dependentes, pessoas que receberiam a prestação pecuniária original. Trata-se de regra sumariamente desprezada pelo judiciário, que vive aplicando de forma absurda as "penas de cesta básica" sem dar a menor atenção à vítima, em flagrante violação à lei, sem que ninguém se dê conta disso.

Contudo, nos dois exemplos citados na matéria, os crimes foram de porte ilegal de arma de fogo e de trânsito, sendo que a lesão corporal foi culposa. Assim, são delitos compatíveis com reprimendas menos agressivas e, em se tratando de crimes sem vítima individualizável (todos os delitos citados, menos a lesão corporal), é perfeitamente possível a aplicação direta da pena inominada.

Do meu ponto de vista, merece elogios a atuação do juiz de Poços de Caldas.

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