O Estatuto do Nascituro é mais uma ação dos religiosos sobre o Estado laico, a fim de impor suas preferências ideológicas sobre a sociedade civil, oculta sob o manto da defesa de bens e valores fundamentais, que são um argumento fácil para encobrir qualquer interesse.
E por que estou dizendo que o projeto é ruim? Aliás, não ruim, mas horroroso? Demonstro:
Comecemos pelo mais banal. O projeto contém uma série de disposições inúteis, porque o ordenamento jurídico já prevê essas disposições, sendo desnecessária a repetição. Por exemplo, a previsão de que o nascituro tem legitimidade para suceder (art. 17); a representação judicial, ativa ou passiva, pelo representante legal ou curador especial (art. 20) e a possibilidade de indenização em caso de danos materiais e morais (art. 21). Mesmo que se queira dizer que a reparação civil é formalmente direito de quem possui capacidade, ou seja, dos nascidos com vida, o direito brasileiro há muito vem reconhecendo direitos aos nascituros. Aqui no blog já postei sobre casos de pessoas que receberam indenização porque suas mães haviam sido torturadas pela ditadura, quando gestantes.
Para começar, como convém aos estatutos — que são leis com forte carga ideológica, ao contrário dos códigos, que se limitam ao aspecto normativo (por isso mesmo, nos últimos anos boa parte das leis de grande porte foram designadas como estatutos, tais como do idoso, do torcedor, da juventude, etc.) —, vários dispositivos são reservados a declarações de valores, que a experiência tem demonstrado surtir baixíssimo efeito prático. Por exemplo:
- Art. 4º É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao nascituro, com absoluta prioridade, a expectativa do direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
- Art. 5º Nenhum nascituro será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, sendo punido, na forma da lei, qualquer atentado, por ação ou omissão, à expectativa dos seus direitos.
Passados 23 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que contém normas quase idênticas, não logrou ser implementado no que possui de essencial. Aliás, é uma das leis mais incompreendidas e criticadas do país. Criticada mesmo que ninguém a conheça, vale ressaltar. Isto acaba servindo como um importante sintoma dos desajustes da sociedade brasileira: por que os religiosos não se mobilizam em favor das crianças já nascidas com o mesmo afinco com que lutam pelos nascituros? É por que dá mais trabalho e custa mais caro? Ou para evitar o risco de serem demandados a assumir a criação desses seres humanos?
Antes de prosseguir, gostaria de lembrar o que já disse antes aqui no blog: eu não sou favorável ao abortamento voluntário. Inclusive por questões religiosas (lembrem: sou espírita). Mas não tento impor as minhas convicções religiosas a mais ninguém.
Em sua luta para impedir o abortamento, o Estatuto do Nascituro proclama (grifei):
- Art. 9º É vedado ao Estado e aos particulares discriminar o nascituro, privando-o da expectativa de algum direito, em razão do sexo, da idade, da etnia, da origem, da deficiência física ou mental ou da probalidade de sobrevida.
- Art. 10º O nascituro deficiente terá à sua disposição todos os meios terapêuticos e profiláticos existentes para prevenir, reparar ou minimizar sua deficiências, haja ou não expectativa de sobrevida extra-uterina.
Além de presumir que a ausência de esforços para fazer uma criança nascer, seja lá em que situação for, constitui ato de discriminação, o projeto determina a mobilização de recursos médicos (e portanto financeiros) para fazer tudo que seja necessário por uma criança que não vai sobreviver. Ou seja, segundo entendi (alguém me corrija, se eu estiver errado), em vez de "deixar o paciente confortável" para enfrentar o inevitável, os médicos terão que se esforçar por manter o paciente vivo, o que pode ensejar inclusive a chamada futilidade médica (medidas insuscetíveis de produzir efeitos práticos, por vezes procedimentos invasivos e complexos, que comprometem o pouco de qualidade de vida que o paciente possa ter).
A coisa piora. O projeto não quer o abortamento mesmo em caso de gestação decorrente de estupro, situação já assimilada pela legislação brasileira há décadas. Veja:
- Art. 12 É vedado ao Estado e aos particulares causar qualquer dano ao nascituro em razão de um ato delituoso cometido por algum de seus genitores.
- Art. 13 O nascituro concebido em um ato de violência sexual não sofrerá qualquer discriminação ou restrição de direitos, assegurando-lhe, ainda, os seguintes: I – direito prioritário à assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico da gestante; II – direito a pensão alimentícia equivalente a 1 (um) salário mínimo, até que complete dezoito anos; III – direito prioritário à adoção, caso a mãe não queira assumir a criança após o nascimento.
Por "ato delituoso cometido por algum de seus genitores", entenda-se: estupro. Se alguém duvida, o artigo seguinte não dá margem a dúvidas. Além de reforçar o que falei acima (não comungar desta fé constitui ato de discriminação), o projeto coloca o nascituro advindo de um estupro, porém saudável, em presumida preferência de atendimento frente a um nascituro doente, gerado em uma relação de respeito. Isto foi discutido com profissionais do setor? Pergunta semelhante vale para a prioridade para adoção. Crianças abandonadas podem ser discriminadas, dentro do próprio sistema, porque não foram geradas através de um estupro?
Alguém se lembrou de discutir com o governo sobre o custeio dessa pensão alimentícia de um salário mínimo por 18 anos? Que outras políticas públicas seriam afetadas com a implementação dessa medida? E quando o projeto diz que, se identificado o agressor, dele será cobrada a pensão, alguém se lembrou que apontá-lo como pai implica em apontá-lo, também, como autor do estupro, de modo que ele estará protegido pela presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, se houver uma? Como impor a alguém o ônus civil, se este se origina em um fato criminoso e somente o juízo criminal competente pode deliberar a respeito? Ao criar esta regra, a lei não cria uma dificuldade adicional, prejudicando o direito que alega defender?
Veja que algumas propostas podem até ser boas, mas sem a devida reflexão e colaboração de quem entende do assunto, a boa iniciativa pode se tornar um problema gravíssimo. Esse é o problema dos projetos missionários: há tanta preocupação com a fé que se renuncia ao bom senso. Será que tem alguém achando que, aprovado o projeto, Deus proverá e o dinheiro para pagar as pensões brotará do chão, surgirá milagrosamente como maná?
Mas é na parte penal que o projeto revela toda a voracidade de sua natureza grotesca e punitivista. Algumas previsões são no mínimo questionáveis, outras são hediondas.
- O projeto inventa a figura do abortamento culposo, com pena igual à do homicídio culposo (art. 23), o que do ponto de vista conceitual implica em equiparar indivíduos nascidos (e civilmente capazes) e nascituros. Mais do que penal, trata-se de uma questão de fundo filosófico a ser enfrentada.
- O anúncio de processo, substância ou objeto destinado a provocar abortamento, hoje contravenção punível estritamente com multa, passa a crime, com pena de 1 a 2 anos de detenção e multa (art. 24). Viola o princípio da ultima ratio, porque usa o direito penal como primeira estratégia repressiva, e não última, como deveria, sobrecarregando ainda mais o já saturado sistema de justiça criminal. E viola o princípio da lesividade, porque institui crime de perigo abstrato.
- A insanidade chega ao ponto de criminalizar a conduta de "referir-se ao nascituro com palavras ou expressões manifestamente depreciativas", com pena de 1 a 6 meses de detenção, além de multa. Isso é levar a defesa da honra às últimas consequências. Qual é o dano decorrente dessa conduta? Qual? Não existe!
- A insanidade segue com a previsão da conduta de "exibir ou veicular, por qualquer meio de comunicação, informações ou imagens depreciativas ou injuriosas à pessoa do nascituro", com penas de 6 meses a 1 ano de detenção e multa (art. 28). Fazer piada com gravidez nunca mais, pelo visto.
- A apologia de crime ou criminoso, hoje punida com pena de 3 a 6 meses de detenção ou multa, se envolver abortamento, passa a 6 meses a 1 ano de detenção e multa (art. 28). É ridículo, desproporcional. Falar bem de abortamento passaria a ser mais grave do que sugerir um genocídio!
- O projeto também criminaliza a indução ao abortamento (art. 29), o que é uma tolice, porquanto nesse caso o agente seria partícipe do crime que viesse a ser realizado, ou seja, existem mecanismos para puni-lo. Mas a intenção é clara: no concurso de agentes, o partícipe só pode ser punido se o delito entrar em fase de execução. Com esta regra, haveria crime mesmo que a gestante não cedesse à influência. Mais um crime de perigo abstrato, podendo chegar a 2 anos de detenção, além da onipresente multa.
- Além de aumentar as penas de todas as modalidades de abortamento já existentes, a cereja do bolo da irracionalidade recorre ao instrumento-mor da lei e ordem brasileira. O abortamento, em todas as suas modalidades, passa a crime hediondo.
Hediondo é uma mentalidade capaz de pensar em projeto de lei tão grave, tão agressivo, tão descolado da realidade nacional, tão sem reflexão e até mesmo tão mal escrito. Como o defeito é de origem, está na concepção, a única opção razoável é parar tudo, voltar à estaca zero, abrir o debate com a sociedade e escrever um projeto que preste. Se isso for realmente necessário, é claro. Porque nem se pode saber se há mesmo necessidade de uma tal lei.
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