segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Setembro se esvaindo

Em menos de três horas, o mês de setembro estará terminado e, junto com ele, três quartos do ano. Começa a impressionar. Afinal, no Pará o mês de outubro é muito preguiçoso, por causa dos efeitos do Círio. Por aqui, costuma-se dizer que depois do Círio o ano acaba. Não me sinto assim e de certa forma a docência me impede de ter essa sensação, porque se trata de um trabalho contado dia a dia. Temos que planejar cada aula, ministrá-la, e particularmente contar cada dia no calendário, para dar conta das atividades com prazos pré-determinados.

Para mim, a vida é assim: um dia de cada vez. O tempo flui, escoa, mas cada dia é tão longo (exceto os finais de semana!) que não consigo achar que foi rápido. Eventualmente, tenho essa sensação olhando para trás.

As imprecisões do tempo são sentidas com mais dureza quando nos tornamos pais. Mal a minha filha nascera e muitas pessoas, muitas mesmo, me disseram para aproveitar, pois o tempo voaria. Eu e Polyana duvidamos. Era tanta novidade, esforço e preocupação, cedo surgiu o drama da alimentação (Júlia não é muito de comer) e logo vieram as doenças prolongadas. Parecia que tudo se arrastava. Mas aí veio o segundo ano, o terceiro... De repente, demo-nos conta: o tempo simplesmente desaparecera ante nossos olhos! Faz-nos pensar em como será daqui por diante. Chega até a estimular uma sensação prévia de perda. Nada bom isso.

Mas, enfim, deixemos setembro ir. Outubro nos trará outros encantos. Espero que sejam muitas as alegrias e realizações para todos nós.

Eu, em pontos polêmicos

Em 24.11.2006, quando o blog nem chegara aos três meses de existência, publiquei uma postagem informando minhas posições a respeito de certas matérias controversas, propositalmente sem fornecer quaisquer argumentos acerca de minhas escolhas. Em 28.8.2007, o primeiro aniversário do blog me fez revisitar algumas postagens, tendo eu ratificado os meus pontos de vista.

Decidi voltar à questão. Passados seis anos, contudo, algumas coisas mudaram. Felizmente. As questões do abortamento de fetos anencéfalos e das pesquisas com células-tronco embrionárias foram objetos de julgamentos pelo Supremo Tribunal Federal e, em ambos os casos, a decisão foi favorável, como eu preferia. No que tange à divisão do Estado do Pará, a longa perlenga foi objeto de plebiscito em 11.12.2011. Prevaleceu a integridade do território, como eu preferia. Mas não se trata de uma questão definitiva.

Também me manifestei favoravelmente ao controle externo do Poder Judiciário. Naquele momento, o Conselho Nacional de Justiça já estava ativo, mas ganhou força ao longo dos anos, contribuindo muito para o aprimoramento do judiciário. Infelizmente, como toda e qualquer instituição que precisa legitimar a sua existência, tem seus momentos de equívoco e excesso. Não mudei de opinião sobre o controle externo. Só acho que o CNJ precisa manter o foco. A cobrança de metas de produtividade dos juízes, exteriorizadas em relatórios absurdos, é uma das demonstrações mais contundentes de seus equívocos.

Disse não à posse ou porte de arma de fogo pelo cidadão comum, situação prejudicada pelo referendo de 2005, um dos casos mais indecorosos de poder econômico interferindo no processo democrático. Prevaleceu a tibieza do Estatuto do Desarmamento, financiada pela indústria armamentista. Vale a pena permanecer vigilante, porque já se está falando em flexibilizar ainda mais o estatuto. Já se sabe quem ganha com isso.

Eu disse não às quotas raciais em universidades e concursos públicos. Quanto aos concursos, ainda mantenho minha objeção, mas em relação às quotas em universidades, o passar dos anos mostrou que a questão afrontou as certezas da classe média brasileira. Em abril deste ano, a revista IstoÉ publicou uma contundente matéria de capa (reportagem eletrônica aqui) defendendo que a controversa política pública deu certo, elevando a qualidade do ensino e reduzindo a evasão. O suposto nivelamento por baixo não aconteceu. Mesmo lutando contra várias dificuldades, p. ex. a educação prévia em escolas mais frágeis, a diferença de rendimentos acadêmico entre alunos quotistas e não quotistas é bastante similar. Foi, como disseram, um "tapa na cara da hipocrisia brasileira". Adorei isso. Inclusive como mea culpa.

Eu disse não à pena de morte, redução da maioridade penal e endurecimento da legislação penal em geral. Quanto a isso, mantenho minhas posições. Quanto mais estudo a respeito, mais me convenço.

E disse sim à clonagem humana para fins terapêuticos, à efetiva laicização do Estado, com a supressão de quaisquer práticas ou símbolos religiosos em órgãos públicos; ao reconhecimento pleno das uniões homoafetivas e ao financiamento público de campanhas eleitorais. Mantenho minhas posições.

Mostrei-me indeciso e dependente de convencimento quanto ao fim do "voto obrigatório" e à comercialização de transgênicos. Quanto ao primeiro tema, existe uma reforma política engatilhada no Congresso Nacional, que pouco avança, por razões óbvias. É um assunto que pretendo acompanhar com interesse.

Já no que tange aos transgênicos, a questão é científica. Acredito na ciência. Tomarei minha decisão assim que alguém me apresentar argumentos consistentes. Até segunda ordem, não sou avesso aos transgênicos. Até porque, hoje em dia, praticamente que se consome ou que se faz é ilegal, é imoral ou engorda.

Falta compor a minha nova lista de temas controversos. Estou pensando a respeito.

Pará: uma notícia duvidosa

Cidadão que trabalha no DETRAN informou, na última sexta-feira, aos que gostam de beber e dirigir: parem. Justamente naquele dia saiu publicado no Diário Oficial do Estado um convênio entre aquele órgão e a Polícia Militar, dando a esta o poder de fiscalização sobre o trânsito. A partir de então, você pode ser abordado por policiais militares para diligências típicas de trânsito, como era antigamente.

A medida tem uma finalidade clara: aumentar exponencialmente, e da noite para o dia, a capacidade operacional da fiscalização de trânsito, já que o contingente de policiais é incomparavelmente maior do que o de agentes do DETRAN, além do reforço de autoridade. Um indivíduo que esteja devendo pode tentar furar o bloqueio do DETRAN, mas vai pensar muito antes de dar um balão na PM.

E aí chegamos ao ponto que torna a notícia duvidosa: as pessoas sentem mais medo do que respeito pela PM. Infelizmente, há razões para tanto. Na esteira do que escrevi antes, defendendo a desmilitarização da polícia, essa não é a instituição adequada para lidar com o público em situações de rotina, ainda mais em se tratando de um campo tão conflituoso. Há o risco de abusos contra o cidadão e há também o de corrupção, no velho esquema criar-dificuldades-para-vender-facilidades. É triste pensar assim, mas a experiência tem dado motivos para tanto.

Seja como for, o convênio está em vigor. Aguardemos para conhecer as consequências.

Pará: uma ótima notícia

Foi realizado no último sábado o primeiro transplante de fígado em nosso Estado. A longa cirurgia, de mais de 10 horas de duração, transcorreu sem intercorrências e o paciente, de apenas 20 anos, passa bem. É cedo, no entanto, para maiores informações.

Seja como for, agora o Estado já dispõe de condições técnicas e de recursos humanos para cirurgias delicadas desse tipo (salvo engano, é o terceiro tipo de transplante realizado em território paraense), tornando mais acessível o transplante àqueles que dele necessitam. É sempre um alento saber disso. Vamos torcer para que, num futuro próximo, outros tipos de transplante sejam realizados aqui.

Fonte: http://www.diarioonline.com.br/noticia-258150-primeiro-transplante-de-figado-e-realizado-no-para.html?232902513

domingo, 29 de setembro de 2013

Sempre o problema do parto natural

Encerrada com sucesso a questão do parto de minha prima Rafaela, que deixou a Santa Casa de Misericórdia para o Hospital de Clínicas "Gaspar Viana", onde foi atendida com muito mais salubridade, além de elogiar a equipe profissional.

Gostaria de destacar apenas um aspecto. E sempre destacando que sou leigo no assunto e não pretendo falar do que não sei, muito menos ser mais realista que o rei.

O fato é que no primeiro hospital em que esteve, o Layr Maia, para utilizar os serviços do plano de saúde, minha prima fez uma ultrassonografia, cujo resultado deu 37 semanas de gestação, saco amniótico roto e bebê em boas condições. Por alguma razão que ninguém soube me explicar, a indicação era de parto cesariano, com envio da criança para uma UTI neonatal. Já na Santa Casa, houve um exame clínico e o parto cesariano foi sumariamente ignorado. A recomendação era uma injeção para induzir o parto normal. Ocorre que mais de três horas se passaram e ninguém apareceu para olhar a paciente. Ela já sentia dor e tinha 4 centímetros de dilatação, mas simplesmente não acontecia nada, no que tange a atendimento.

Transferida para o HC, foi instalada com muito mais conforto, apesar de já sentir bastante dor (que suportou com bastante coragem) e a enfermagem afirmou que o bebê provavelmente nasceria de madrugada. Com efeito, nasceu às 14h47, de parto normal, sem qualquer intercorrência. Mãe e filho passaram bem desde o primeiro momento e a alta hospitalar será amanhã, após aplicação de uma primeira vacina no bebê.

Aí eu pergunto: e por que, então, houve uma indicação de parto cesariano? Por quê? Espero que alguém me responda, porque do contrário ficarei com a resposta que cresce aqui dentro do meu coração.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Aterrorizante

Já falei muito bem da Santa Casa aqui no blog, por conhecimento pessoal (veja aqui e aqui). Mas não conheço a realidade daquele hospital, tendo-me referido a um serviço que vi, que utilizei, e que posso afiançar foi excelente. Mas eu não conhecia até esta noite o outro lado.

Circunstâncias burocráticas de planos de saúde e falta de compromisso da Marinha (o pior aspecto do serviço público...) levaram uma jovem de minha família à Santa Casa, hoje, para ter o seu bebê. Pelo que pude perceber, a equipe até se esforça por fornecer um atendimento humanizado, mas há dificuldades que não podem ser transpostas. Refiro-me à infraestrutura.

Precisei ir até à enfermaria onde a colocaram e, meus queridos, o que vi foi, em uma palavra, aterrorizante. Começo pelo estilo de acomodação dos hospitais de antigamente, nos quais os pacientes eram atendimentos em enfermarias enormes, para muitas pessoas simultaneamente. Não se tinha a percepção do grande perigo que representa reunir, no mesmo ambiente, pessoas em diferentes condições de saúde.

Caminhando por um labirinto de enfermarias, o que vi foi um cenário de guerra. O prédio, gravemente deteriorado, apresenta até infiltrações. As enfermarias abrigam mais de 20 pacientes e, devido às acompanhantes, o que resulta são salões cheios, barulhentos, abafados (nem todos os ventiladores funcionam) e com algo que sempre me incomodou demais em hospitais: um cheiro peculiar, ruim, angustiante. Só consigo pensar em cheiro de doença.

Juro para vocês, eu, que não sou dado a faniquitos, só queria sair dali o mais rápido possível. De preferência correndo. E agora desejo muito que minha prima possa sair de lá. Honestamente, não sei como uma criança pode nascer naquele ambiente tão profundamente insalubre e sobreviver.

Enquanto aguardava notícias do lado de fora (só um acompanhante por pessoa), fiquei olhando o prédio vistoso da "Nova Santa Casa", orgulho político do Sr. Governador Pescador, que nada mais tem a oferecer. O letreiro é iluminado, para ser visto de longe. Um funcionário, ao meu lado, telefonava insistentemente para diferentes pessoas tentando que alguém fosse buscar "os cadaverezinhos" (sic), porque já estavam em decomposição. Então me acerquei do segurança e perguntei se o novo hospital estava funcionando ou se era apenas propaganda do governo. Respondeu-me que está funcionando, que os pacientes estão sendo transferidos aos poucos.

Espero que sejam transferidos, mesmo. O quanto antes. Porque é absolutamente impossível encontrar dignidade numa estrutura que não se conserta com pintura nova. Não se conserta mais.

Esse é o Pará que não aparece na milionária publicidade institucional do governo do Estado. Uma realidade que você não vai querer conhecer.

Psicografia como prova judicial

Certa vez, um aluno me procurou querendo que eu orientasse sua monografia de conclusão de curso, versando sobre a admissibilidade da psicografia como meio de prova no processo penal. Não me animei, mesmo sendo espírita. Aliás, justamente por ser espírita, é muito difícil, para mim, ficar empolgado com assuntos que me parecem objeto de seriedade e respeito. Não digo que o aluno estava sendo empolgado ou desrespeitoso, neste caso específico; apenas que ele precisaria refletir muito mais sobre um tema dessa natureza antes de apostar sua formatura nele.

Na verdade, a maior razão pela qual eu desestimulei a iniciativa foi considerar que, no corpo docente, haveria resistências à proposta, que era declaradamente de aceitação, correndo-se o risco de se avaliar o trabalho por lentes ideológicas ou de fé, em vez de avaliá-lo por critérios acadêmicos e metodológicos. Pessoalmente, penso que universidade é isso: ousar, não ter medo de enfrentar temas espinhosos, inusitados, até assustadores. Eu mesmo penso em me dedicar um dia a essa questão, mas não é minha prioridade, até porque o direito processual me aborrece.

A Federação Espírita Brasileira editou, há muitos anos, o livro A psicografia ante os tribunais: o caso Humberto de Campos. Na sinopse da editora: "É um livro que se constitui em documento histórico para a Doutrina Espírita no Brasil. Trata da ação judicial movida pela viúva e filhos de Humberto de Campos, contra a FEB e Francisco Cândido Xavier, na qual foram pleiteados os direitos autorais sobre a obra psicográfica recebida do Espírito Humberto de Campos. O autor da presente obra, o advogado Miguel Timponi, relata todo o processo, desde a inicial até a decisão final da justiça, ao reconhecer que, para fins legais, os direitos autorais não podem ser atribuídos a um Espírito desencarnado. Estabelece interessantes comparações entre a obra de Humberto de Campos encarnado e como Espírito, reunindo opiniões de professores, psiquiatras, poetas, cientistas e juristas, que atestam a autenticidade do estilo do escritor póstumo."

O interessante neste livro é que, ao contrário do habitual proselitismo das religiões, nele a argumentação reforça a ideia de Estado laico. Timponi, pare defender os demandados, alega que conceder direitos autorais aos familiares e herdeiros de Humberto de Campos exigiria que o Poder Judiciário se pronunciasse formalmente sobre a existência da imortalidade da alma, sobre a comunicabilidade dos Espíritos, sobre a mediunidade e sobre a identidade daquele que se apresentou a Chico Xavier como sendo o famoso escritor e ditou certas obras. E não cabe ao judiciário se pronunciar sobre tais assuntos, porque eles tocam à fé e não às relações civis. Muito, muito interessante de ler.

Lembrei-me do caso ao me deparar, casualmente, com a publicidade de um curso sobre o tema, no site Migalhas. Veja:

Psicografia e Prova Judicial
Data: 3/10
Horário: 19h às 21h
Local: Centro de Treinamento LEX (Av. Paulista, 1.337 - 23º/24º andares, SP - ao lado do Ed. da Fiesp, em frente ao metrô Trianon-Masp)

Objetivo
Desenvolver reflexões sobre a validade acerca das mensagens psicografadas valoradas como prova judicial, haja vista que o ordenamento jurídico tem-se deparado com casos em que essas mensagens foram admitidas como prova.

Público-alvo
Agentes de Direito em geral.

Programa do Curso
01. Serão desenvolvidas reflexões acerca da ciência, da filosofia da ciência e dos paradigmas científicos
02. Princípios Constitucionais do Processo e os Princípios Probatórios referentes ao desenvolvimento do assunto
03. Reflexões sobe o Direito à Prova
04. Desenvolvimento do termo psicografia como fenômeno mediúnico e posteriormente como prova judicial, analisando os assuntos acima tratados

Instrutor(es)
- Michele Ribeiro de Melo 
Mestre em Teoria do Direito e do Estado pelo Centro Universitário Eurípides de Marília - Univem (2012); Graduada em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília - Univem (2009); Coautora da obra Teoria Geral do Direito: Ensaios sobre Dignidade Humana e Fraternidade; Integrante do Grupo de Pesquisa Reflexões sobre o Ensino Jurídico Brasileiro, coordenado pela Profa. Dra. Raquel Cristina Ferraroni Sanches, pelo Centro Universitário Eurípides de Marília – Univem e Professora de cursinho preparatório para carreiras jurídicas

Forma de pagamento
Curso Gratuito

A LEX Cursos reserva-se o direito de alterar datas, horários e mesmo cancelar programas, de acordo com o número de interessados. Em caso de imprevisto com o docente, este será substituído sem alteração do programa.

Carga horária
2 horas

Realização
Editora Lex

Achei curioso e por isso prestei atenção aos dados da instrutora, mas não havia nenhuma indicação de atuação religiosa. Daí me chamou a atenção o nome da instituição em que ela leciona, que me fez pensar em Eurípedes Barsanulfo. Não era o Barsanulfo, mas o Centro Universitário Eurípedes de Marília é uma instituição confessional espírita e eu confesso minha ignorância: não sabia que havia instituições de ensino confessionais espíritas. A UNIVEM está reconhecida pelo Ministério da Educação desde 1974 e a fundação educacional que a mantém existe desde 1967. Oferece 12 cursos de graduação, pós-graduação lato sensu e mestrado em Direito, este desde 2000.

Acho que assuntos como este devem ser debatidos por pessoas que consigam administrar com seriedade o conhecimento da matéria, as habilidades acadêmicas e as características próprias da teoria do direito, sem empolgação e muito menos proselitismo.

Numa consulta rápida à internet, encontrei alguns escritos sobre o tema, que indico para eventuais interessados, destacando que não os li, por isso não posso opinar sobre suas virtudes:

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Nonsense novelesco

Não sei se já disse aqui no blog, mas sou de opinião que o escritor e teledramaturgo Walcyr Carrasco possivelmente quis ser advogado em algum momento de sua vida, mas acabou não cursando Direito e ficou com uma frustraçãozinha (o que seria uma bobagem, pois seu trabalho é altamente recompensador, em todos os sentidos, além de que, como autor do primeiro escalão da Globo, ele não deve ganhar menos de 300 mil reais por mês, algo que somente advogados muito bem sucedidos conseguem e que, no serviço público, é impossível, se o sujeito for honesto). Mas só assim para eu entender a obsessão de Carrasco por dar grande destaque a julgamentos em todas as suas novelas e, sempre, sempre, sempre assassinando o Direito das maneiras mais acintosas e covardes.

Não acompanho Amor à vida, a primeira incursão do autor no horário nobre. Mas há uma sucessão de absurdos que chegam ao meu conhecimento. O mais recente foi comentado por um grupo de colegas advogados e eu, a partir de suas informações, tenho a tecer os seguintes comentários:

O absurdo consistiu em mostrar o personagem Atílio sendo condenado a 5 anos de prisão pelos crimes de bigamia e de falsidade ideológica (complementei as informações consultando a internet), em regime inicial fechado e sem direito a apelar em liberdade!!!

O tipo de bigamia prevê uma pena de 2 a 6 anos de reclusão e o de falsidade ideológica, se incidente sobre documentos públicos, como são os ligados ao estado da pessoa, 1 a 5 anos de reclusão. Num intervalo de 3 a 11 anos de reclusão, uma condenação a 5 até que não soaria tão esdrúxula assim, se:

1. Atílio não fosse uma pessoa sem qualquer acusação criminal anterior, um homem reconhecidamente honesto, de condição intelectual, social e econômica a colocá-lo fora da clientela habitual do sistema de justiça criminal. Já se pode questionar por que não uma pena menor, inclusive a mínima.

2. Esdrúxulo mesmo é que, se a falsidade ideológica foi praticada especificamente para permitir o casamento, como entendi, então deveria ser aplicada a consunção: a falsidade ideológica deveria ser absorvida pela bigamia, por constituir apenas o meio executivo desse outro delito, por sinal mais grave. Logo, Atílio deveria ser condenado a 2 anos de reclusão ou pouco mais do que isso, tão somente.

3. É perfeitamente possível aplicar o regime fechado inicial em caso de condenação inferior a 8 anos por crime não hediondo, tratando-se de réu não reincidente. Mas isso exigiria condições particularmente graves de execução. Singulares, eu diria. Os crimes aqui considerados não envolvem violência contra a pessoa e, pelo perfil do réu, a medida simplesmente não se justifica, ainda mais diante das Súmulas 718 e 719 do Supremo Tribunal Federal (respectivamente: "A opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motivação idônea para a imposição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada" e "A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea").

4. Mesmo um leigo bem desinformado, se assiste televisão (e decerto que leigos desinformados assistem muitas horas de TV), aprendeu com o caso do "mensalão" que os réus somente devem ser presos após o trânsito em julgado da condenação, ou seja, quando não é mais possível nenhum recurso. Em uma linguagem mais simplória: quando o processo chega ao fim. E o caso de Atílio não acabou, porque o advogado pode recorrer. Mesmo assim, a juíza ensandecida do caso mandou prender, de imediato, o réu que respondeu ao processo em liberdade! Esse habeas corpus seria concedido em qualquer tribunal do país.

5. Não satisfeito com o já inacreditável volume de insanidades, Carrasco ainda fez o pobre personagem sair algemado da sala onde foi realizado o julgamento (como sempre, uma sala em estilo tribunal do júri, enorme, totalmente diferente dos gabinetes apertados da vida real), em flagrante afronta a Súmula Vinculante n. 11, do Supremo Tribunal Federal, a respeito da qual foi dada ampla publicidade e virou assunto de qualquer conversa de botequim. E isso mesmo sem que ele tenha oferecido perigo a ninguém.

6. Se você acha que não pode piorar, enganou-se. Pode piorar muito. É que Atílio sofreu danos neurológicos decorrentes de agressões encomendadas pelo vilão Félix, ao ponto de perder a memória. Ele parecia mudar de personalidade, "transformando-se" numa outra pessoa, que era apaixonado pela personagem de Elizabeth Savalla, motivo de sua decisão de casar-se com ela. Ou seja, era indispensável analisar a capacidade mental do réu e, segundo me disseram, havia laudos médicos nos autos. Mas a questão foi sumariamente ignorada e o coitado, que é bem possível ter agido em momento de imputabilidade penal, foi condenado mesmo assim, sem direito, sequer, à redução de sua pena, como previsto em lei, em face de capacidade mental reduzida.

Bom, meus caros, tudo isso em um único capítulo da novela das 9, a de maior audiência da principal emissora de TV do país. Walcyr Carrasco pode ter muito amor à vida mas, com certeza absoluta, não tem nenhum pelo Direito. E não é ignorância, não, mas escolha. Ele teria acesso a toda consultoria que quisesse, ainda mais porque estamos falando de aspectos jurídicos comezinhos. No entanto, ele prefere persistir no erro, no absurdo, no nonsense. E com isso acaba prestando um desserviço a uma sociedade que, sabidamente, tem como principal meio de "informação" a televisão.

Mas ao que parece, Carrasco é um caso perdido. Não vale a pena tentar racionalizar.

Acréscimo em 3.10.2013:
Na coluna semanal em que critica tudo e todos, Lenio Streck abordou o caso deste personagem e outros absurdos jurídicos da novela Amor à vida. Leia aqui, se achar que vale a pena.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Mulheres morrendo

Esta vai em especial para os meus alunos de Direito Penal I, para os quais tenho dito que o endurecimento das leis penais não é medida adequada, muito menos suficiente, para combater a criminalidade e a violência.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) acabou de divulgar, na Comissão de Seguridade Social da Câmara dos Deputados, a versão resumida de seu estudo inédito intitulado "Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil". De acordo com o estudo, no período compreendido entre os anos de 2009 e 2011, o país registrou quase 17 mil feminicídios (mortes de mulheres em situação de conflito de gêneros, especificamente).

Em suma, não há prognóstico de redução da violência contra a mulher. A indicação é clara: “Observou-se sutil decréscimo da taxa no ano de 2007, imediatamente após a vigência da lei, e, nos últimos anos, o retorno desses valores aos patamares registrados no início do período”.

É exatamente o que sempre dizemos: quando uma lei mais rígida entra em vigor, se houver a devida divulgação, ela até consegue promover uma ligeira retração na criminalidade por ela influenciada, mas tão logo passe o temor inicial, e ele tende a ser efêmero, os índices voltam aos níveis anteriores, quando não recrudescem. No caso da violência contra a mulher, a tendência é de incremento, porque não foram alteradas as condições materiais da vida social, que ainda são marcadas por intensa inferiorização da mulher.

Aduza-se que o estudo em apreço só investigou homicídios, porque sua base foi o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). Por conseguinte, ficaram de fora lesões corporais, estupros e outras violências. Por conseguinte, este cenário absurdo é apenas uma fração do real descalabro de gêneros. E quando nos lembramos da cifra oculta da criminalidade, o terror fica muito maior e, na verdade, de um tamanho inimaginável.

Consultando a página do IPEA (clique aqui), você acessa o estudo divulgado.

Aquela do panda


Coisa ainda mais rara é a imprensa brasileira entender que pandas não são ursos! Esta é velha, mas nunca perde a atualidade.

Vamos esclarecer: entre os mamíferos, existe a família dos ursídeos, que abrange os ursos propriamente ditos e os pandas, que são ailuropódeos. Dentre estes, são conhecidas quatro espécies de pandas, mas apenas os pandas-gigantes existem hoje em dia. As diferenças são definidas pela genética.

Qualquer Wikipedia da vida informa:

Classificação científica
urso
panda
reino
Animalia
Animalia
filo
Chordata
Chordata
classe
Mammalia
Mammalia
ordem
Onívora
Carnívora
sub-ordem
Caniformia
infraordem
Arctoidea
superfamília
Ursoidea
família
Ursidae
Ursidae
gênero
Ailuropoda


Vale destacar, para evitar que me apontem como erro, que os pandas pertencem à ordem dos carnívoros e têm características genéticas e digestivas de carnívoros. Contudo, o panda-gigante tem hábitos de herbívoros e se alimenta quase exclusivamente de bambus, como provavelmente você sabe.

A ratada estava na home page da Folha de S. Paulo, agora mesmo. Só vou dar um desconto porque os pandas-gigantes também são chamados de ursos-panda, mas o fato de isso ser popular não significa que seja certo. Fosse assim, eu começaria a me chamar de Brad Pitt, George Clooney, Bradley Cooper. Duvido que fizesse alguma diferença...

Homens oficiais

Eles podem ser poderosíssimos, mas no fundo são homens como quaisquer outros, inclusive na capacidade de trocar as cabeças na hora de pensar. E de se comportar mal publicamente.


O tal homem mais poderoso do mundo, Barack Obama, dá uma conferida na adolescente brasileira Mayara Tavares. O ex-presidente da França, François Sarkozy, parece aprovar, só não sei se a conferida ou a bunda.


O protesto do famoso grupo Femen era contra o presidente da Rússia, Vladimir Putin, mas parece que ele foi quem mais gostou.

O mais impressionante é a cara que eles fazem...

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Você sabia?

O mais longevo ministro da história do Supremo Tribunal Federal foi o pernambucano Hermínio Francisco do Espírito Santo (9.5.1841-11.11.1924). Foi chefe de polícia e juiz de carreira, de acordo com as normas vigentes em seu tempo, tendo tomado posse no STF em 17.11.1894.

O ministro morreu em pleno exercício da presidência da Suprema Corte, a seis dias de completar 30 anos na função. Tinha 93 anos e nunca houve acusações de que estivesse inapto para o exercício de suas elevadas funções.

Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/ministro/presidente.asp?periodo=stf&id=183

Hoje é dia de PEC (não é mais)

O Brasil lugnagiano — o castigo da aposentadoria compulsória
Artigo de Marco Aurélio Mello, ministro do STF, publicado na Folha de S. Paulo em 2002

No clássico “As Viagens de Gulliver”, Jonathan Swift, um dos mais satíricos escritores da língua inglesa, imagina um lugar — a terra dos lugnagianos — em que, uma ou duas vezes a cada geração, nascia uma criança cunhada com uma mancha circular vermelha na testa, símbolo da imortalidade. Estes seres especiais, por eternos, aos 80 anos tinham seus bens distribuídos aos descendentes, que de outra forma não os herdariam. Tristes, alijados, sua sina era acumular rancores e doenças, o que mais agravava as dores da velhice, sem que lhes aguardasse, porém, o alívio da morte.

No Brasil, parece que os legisladores se inspiraram nessa tenebrosa fantasia para marcar com uma espécie de terrível nódoa vermelha uma classe — os servidores públicos em geral e os membros da magistratura e do Ministério Público em particular. Estes, sabe-se lá por qual razão, aos 70 anos são considerados incapazes para continuar trabalhando na esfera pública, ou seja, sob remuneração do Estado, pouco importando se estejam no ápice de uma brilhante carreira ou no auge da capacidade produtiva.

Recentemente, deparamos mais uma vez com um exemplo muito ilustrativo dos malefícios dessa despropositada aposentadoria compulsória: no último mês de abril, o ministro Néri da Silveira viu-se compelido a deixar a Corte Suprema do País por ter alcançado sábios 70 anos. Quem já se deleitou com a imagem magistral de um condor ganhando os céus jamais haverá de se conformar com o abate desse altivo pássaro, muito menos se em pleno vôo.

Pois foi também de perplexidade a sensação que pairou sobre mim por algum tempo quando da saída do Ministro, secundada por uma série de insistentes e silenciosas perguntas: a que propósito, nos dias de hoje, serve a vetusta regra constitucional que sustenta a chamada “expulsória”? Não estaria visivelmente anacrônica essa norma, introduzida na Carta de 1946, em face dos avanços tecnológicos que alargaram em muito as expectativas de vida da população? (No meio acadêmico, alguns cientistas mais entusiasmados afirmam que, para um homem saudável de 40 anos, tal expectativa é, hoje, de 120 anos.) Não seria discriminatório um preceito que obstaculiza a atividade de determinados agentes políticos — os magistrados —, beneficiando com a liberalidade os demais, isto é, aqueles que integram os Poderes Executivo e Legislativo?

Por que se afigura pouco relevante as idades dos candidatos aos cargos eletivos, casos em que normalmente o peso dos anos testemunha a favor? Alguém já aventou a possibilidade de se retirar o mandato do Presidente da República, professor Fernando Henrique Cardoso, por haver atingido os 70 anos? (Entretanto, o ministro Maurício Corrêa, o próximo Presidente do Supremo Tribunal Federal, não poderá completar o mandato para o qual for eleito, já que 11 meses depois de assumir o cargo, “marcado” pela estranha “pecha”, terá de se aposentar. Forçosamente.) Por último, mesmo sem querer adentrar na espinhosa discussão acerca da inconstitucionalidade de certos dispositivos constitucionais, alguém poderia explicar por que, em se tratando dessa malfadada jubilação, os princípios da isonomia e da liberdade de trabalho, elevados à condição de cláusulas pétreas, não se sobrepõem a todo o tipo de filigrana jurídica? Aos que venham a redargüir com o pretexto da legitimidade proporcionada pelo processo eleitoral, pergunto, de pronto, se teriam alguma dúvida sobre a consagradora aprovação seguramente obtida pelo ministro Moreira Alves — decano da Corte e o próximo a ser “aposentado” em virtude da desditosa norma — no bojo de eventual referendum.

É de fato peculiar a situação dos juízes brasileiros, em cujo rol de prerrogativas funcionais está a vitaliciedade, garantia que, por aqui, não significa “enquanto viver” ou enquanto permanecer capaz e produtivo, diferentemente do que acontece, por exemplo, na Suprema Corte dos Estados Unidos da América, onde os magistrados ficam no cargo pelo tempo em que se acharem em condições, alguns chegando aos 90 anos, cumprindo àquele Tribunal decidir sobre a interdição de algum membro por incapacidade física.

No Brasil, talvez tudo se deva ao peso atribuído ao cargo. Julgar realmente é tarefa das mais complexas, a envolver, sempre, a equação de inúmeros valores. Quem sabe esse aspecto tenha induzido o legislador a imaginar que tão árdua missão incapacite, com o correr dos dias, os magistrados, embotando-lhes o entendimento, por isso ficando caducos mais depressa. O ofício de julgar mostrar-se-ia, assim, dos mais cruéis, desfavorecendo quem a ele ousou se dedicar. Já pensou se essa desumana lógica houvesse cerceado a obra de Leonardo da Vinci, Machado de Assis, Handel, Villa-Lobos, Monet, Matisse, ou, para ser bem contemporâneo, a esplêndida carreira da nossa Fernanda Montenegro?

Na magistratura, o fardo dos anos como que se revela acachapante, diminuindo paulatinamente quem enverga a toga, ao reverso do que ocorre nas grandes empresas, cujos executivos são premiados com títulos pomposos de “masters” ou “seniors”, com o que angariam ainda mais respeito e prestígio - e, por conseguinte, atribuições e salários mais elevados. Nos poderosos conglomerados econômicos, a experiência é um bem valioso a ser generosamente recompensado. No serviço público brasileiro, dá-se o inverso: de um modo geral, investe-se na formação dos servidores como que os preparando para gerar os melhores frutos no âmbito privado, de vez que, no vértice da carreira, são coagidos a se afastarem, pouco interessando o quanto poderiam realizar em prol do serviço público, que tanto ainda deixa a desejar. Num contra-senso, as maiores autoridades administrativas do País não cansam de apontar o rombo da Previdência como uma das principais causas do déficit orçamentário nacional. Quem há de compreender?

Em “Tempo de Memória”, Norberto Bobbio, influente cientista político de nossa era, ao discorrer sobre o efeito do tempo, testemunha que sua maior dificuldade, aos 80 anos, residia em conciliar a lucidez dos pensamentos, a agilidade de raciocínio, com a lentidão dos movimentos própria aos mais idosos. As ordens emanadas de uma cabeça desenvolta eram processadas de maneira pouco destra pelo corpo cansado. Convenhamos: tal dificuldade desabilita o genial pensador italiano? De forma alguma. A sabedoria dos anos mais o credencia no seu incansável mister de, observando o mundo, descortiná-lo à visão dos menos doutos.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, a idade cronológica não é o melhor parâmetro para delimitar a fronteira da velhice, mostrando-se mais adequado recorrer ao conceito de idade funcional, medida de acordo com a autonomia do indivíduo, ou seja, à luz da aptidão para realizar tarefas rotineiras, como fazer compras, cuidar da higiene pessoal, ir sozinho ao local de trabalho. Se assim é, necessariamente devem ser revistos preceitos constitucionais que arbitrariamente imprimem um limite não biológico à capacidade produtiva de um ser humano, que restringem o exercício livre do universal direito ao trabalho. A aposentadoria há de ser uma recompensa, nunca um castigo para quem, pelo tanto que se dedicou à causa pública, merece ao menos ser considerado digno e apto a concluir por si mesmo já ter cumprido a própria jornada.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2011-jun-30/ministros-supremo-defendem-pec-bengala-parada-camara

Quem vencerá a batalha da PEC 457: o respeito aos bons profissionais septuagenários e produtivos ou o corporativismo mais cínico e medíocre, travestido de modernidade e eficientismo?

As pressões já ganharam mais um dia de adiamento. Costuras em andamento.

domingo, 22 de setembro de 2013

Polícia desmilitarizada

"Você já reparou que o debate público sobre quase tudo está dominado por raiva, resmungos e ressentimentos? Qualquer que seja o assunto, a conversa acaba dividida em duas, com cada um dos lados se achando puro e perfeito e acreditando que os adversários são energúmenos."

A assertiva acima, que já defendi aqui no blog mais de uma vez, foi escrita por Denis Russo Burgiermann, diretor de redação da revista SuperInteressante, que em agosto comemorou 26 anos de existência com uma edição especial de capa dourada (em vez do indefectível vermelho), sob o tema "111 ideias que valem  ouro" e o sub-título "Tudo que precisa mudar urgentemente no mundo para a vida fazer mais sentido".

No Brasil, a imagem da Polícia Militar está associada à brutalidade
A edição é recheada de propostas que despertariam reações intensas mesmo se o mundo não estivesse dominado pelos loucos furiosos. Uma das matérias, correspondente às ideias 88 a 93, é toda dedicada ao tema "Polícia para quem precisa" e parte da premissa de que as manifestações populares de junho demonstraram "um problema que há muito tempo preocupa os especialistas: o despreparo da polícia para proteger e servir o cidadão". As informações e propostas constantes da matéria, em síntese, são estas (com alguns comentários meus):

  • As ações policiais passam a sensação de que a PM está contra a população. O uso de gás lacrimogêneo, spray de pimenta, balas de borracha (inclusive na imprensa), armas não letais inclusive contra pessoas já imobilizadas e prisões arbitrárias, além de os agentes públicos mascarados e sem identificação, causaram susto nos manifestantes, em sua maioria da classe média. Mas esse tipo de abordagem é o padrão nas periferias, exceto porque, nas favelas, a bala não é de borracha. [Recordei-me de vídeos que vi, nos quais os manifestantes tentam convencer os policiais de que também eles são trabalhadores explorados e por isso poderiam ter mais empatia com os manifestantes.]
  • Embora a polícia seja uma instituição fundamental para a democracia, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), 67% dos entrevistados afirmam que a polícia não trata a população com respeito e 63% consideram-na incompetente.
  • Candelária: junho de 1993, 8 garotos entre 11 e 19 anos
    mortos, além de vários feridos, enquanto dormiam, durante
    ataque no qual policiais abriram fogo contra mais de
    70 moradores de rua
  • O Brasil é um dos únicos países do mundo que dividem as polícias entre civil (de investigação criminal) e militar (de "preservação da ordem pública"), mas o melhor é que a instituição cuide de todo o ciclo do crime, da prevenção à investigação. No modelo atual, as duas corporações não se comunicam e frequentemente entram em conflito. Mesmo sem a unificação, um choque de gestão ajudaria muito.
  • A PM foi uma força auxiliar do Exército até 1964, quando o governo golpista lhe dotou da atribuição de fiscalizar as ruas, ou seja, é justamente ela que mantém maior contato com o povo. A Constituição de 1988 nada fez a esse respeito. A consequência é a presunção de que todos são inimigos, estimulando a violência contra a comunidade. Desmilitarizar não implica em  abdicar da hierarquia, fardamento e força, inclusive armada. [A PM como instituição de policiamento cotidiano ostensivo possui um vício de origem, portanto, que dificilmente seria superado na mentalidade dos brasileiros. Mesmo nos Estados Unidos, país que os deslumbrados daqui adoram imitar, a polícia é unificada, fardada, organizada em níveis hierárquicos definidos por patentes militares, porém treinada com a perspectiva de serviço público. Vale lembrar as viaturas que têm, nas portas, a legenda "To protect and serve". Claro que lá há abusos; estou falando de concepção.]
  • Falta fiscalização sobre o uso desproporcional da força. Denúncias de abusos são apuradas por ouvidorias, corregedorias e pelo Ministério Público, todos deixando muito a desejar. Mesmo a jurisdição criminal é feita em tribunais militares. Se houver notícia de troca de tiros, não são feitas perícias e as decisões são tomadas com base nos depoimentos dos próprios policiais, com o adendo de que em geral o MP endossa tudo.
  • Estudos apontam que a esmagadora maioria do tempo a PM passa tratando de questões que não constituem a sua missão precípua, tais como brigas de vizinhos, pedidos de informação e auxílio a partos. No entanto, os policiais não são treinados para esse tipo de atendimento, o que acaba passando, à população, a imagem de mau atendimento. Em alguns lugares, a formação de um novo policial dura apenas três meses. [Sim, em apenas três meses o sujeito vai de treinamento zero a autoridade com arma na mão e salário incompatível. E adivinhe um Estado onde isso acontece! Acertou quem pensou no Pará-tucano.]
  • Falta investimento em infraestrutura. Em muitas delegacias, os registros ainda são manuais, inviabilizando o uso de ferramentas de análise de dados. A tecnologia permitiria identificar padrões e conexões entre os crimes.
Agosto de 1993: policiais invadem a favela de Vigário
Geral e executam sumariamente 21 moradores indefesos.
Novamente, retaliação pela morte de colegas.
As unidades de polícia pacificadora foram comemoradas como um grande passo para a humanização do trabalho da PM. Pode até ser. Mas não com as denúncias de abuso de autoridade, tortura e corrupção, como no caso da UPP Rocinha. As investigações estão em andamento e o desaparecimento do pedreiro Amarildo Souza se tornou um constrangedor mistério para a aplaudida (por muitos) área de segurança pública do Rio de Janeiro. Em suma, não estamos avançando de verdade.

Hoje, estou convencido de que a desmilitarização da polícia é uma necessidade urgente. Ninguém precisa ficar com medo de perder o seu emprego. Em um novo modelo, haveria a mesma necessidade de pessoal. Os atuais policiais militares seriam recolocados dentro da estrutura do serviço público. Estando os policiais todos em uma mesma carreira, esta sairia fortalecida para reivindicar, junto ao poder público, melhores condições salariais e de trabalho. Mecanismos de controle mais eficientes poderiam ser implantados.

Realmente acredito que todos sairiam ganhando. Exceto, é claro, quem se beneficia de uma estrutura cancerosa. Ou quem precisa dela para continuar dando vazão a seus instintos assassinos. E o pior é que, entre a população, não falta quem apoie esse tipo de pesadelo.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Contra a pederastia — o tipo penal, bem entendido

No mês de agosto, durante as aulas iniciais que ministrei para minhas novas turmas de Direito Penal I, mencionei o crime de pederastia, como exemplo das escolhas ardilosas que o legislador faz, na hora de decidir o que deve ser crime. Acabo de tomar conhecimento de que a Procuradoria-Geral da República concorda comigo:

A Procuradoria-Geral da República ajuizou, no Supremo Tribunal Federal, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 291, na qual questiona a constitucionalidade do artigo 235 do Código Penal Militar, que tipifica como crime a “pederastia ou outro ato de libidinagem” em lugar sujeito a administração militar. O dispositivo, segundo a PGR, viola os princípios da isonomia, da liberdade, da dignidade da pessoa humana, da pluralidade e do direito à privacidade.

A PGR afirma que, a partir da Constituição Federal de 1988, não há fundamento “que sustente a permanência do crime de pederastia no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que é nitidamente discriminatório ao se dirigir e buscar punir identidades específicas, sem qualquer razão fática ou lógica para tal distinção”. O crime estaria inserido num contexto histórico de “criminalização da homossexualidade enquanto prática imoral, socialmente indesejável e atentatória contra os bons costumes”, visão que não mais se sustenta internacionalmente.

Discriminação
A norma do artigo 235 do Código Penal Militar, que criminaliza o militar que praticar ou permitir que com ele se pratique “ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”, sujeitando-o à pena de detenção de seis meses a um ano, foi, de acordo com a PGR, criada no contexto histórico de um regime militar ditatorial, e escancara visões de um momento político autoritário e pouco aberto às diferenças e à exposição delas. Os termos “pederastia” e “homossexual ou não”, portanto, teriam viés totalizante e antiplural.

Para corroborar a argumentação, a Procuradoria remete à exposição de motivos do Código Penal Militar para incluir entre os crimes sexuais a “nova figura” da pederastia: “É a maneira de tornar mais severa a repressão contra o mal, onde os regulamentos disciplinares se revelarem insuficientes”, diz o texto. A PGR sustenta que a discriminação é explícita, e, mesmo com a retirada dos termos “pederastia” e “homossexual”, sua aplicação continuará afetando primordial e intencionalmente os homossexuais. Uma vez que a grande maioria do contingente das Forças Armadas é masculina, e havendo ambientes estritamente masculinos, “os heterossexuais, em tese, não seriam atingidos pela norma de austeridade sexual”.

Liberdade sexual
Além do aspecto discriminatório, a Procuradoria aponta que a norma tem o objetivo de limitar a liberdade sexual dos militares. Finalmente, a PGR diz que, em qualquer ambiente de trabalho, os atos inapropriados são punidos. No caso, porém, o Código Penal Militar utiliza o Direito Penal, “cujo princípio é o da intervenção mínima”, para reprimir “o que é considerado inapropriado em algumas situações”. O que seria passível de punição, assim, seria o assédio sexual, de acordo com a PGR. “Não pode haver criminalização do exercício pleno da sexualidade consensual entre dois adultos, ainda mais quando os indivíduos não estejam exercendo qualquer função”.

Assim, a PGR pede a concessão de medida cautelar para suspender a eficácia do artigo 235 do Código Penal Militar, até o julgamento definitivo da arguição. No mérito, pede que seja declarada a não recepção do dispositivo pela Constituição de 1988. O relator da ADPF é o ministro Luís Roberto Barroso. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.

Revista Consultor Jurídico, 19 de setembro de 2013
Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-set-19/pgr-fim-criminalizacao-pratica-sexual-area-militar

Algo mais poderia ser dito sobre a questão. Embora o penúltimo parágrafo mencione o princípio da intervenção mínima, a argumentação segue em termos de proteger a liberdade de autodeterminação: o indivíduo tem o direito de conduzir sua vida de acordo com suas preferências, se isso não implica em danos a terceiros. Mas a intervenção mínima conduz a uma outra observação: a de que não existe a menor necessidade de intervenção penal sobre essa matéria.

Com efeito, se pensarmos que atos sexuais (independentemente do sexo dos envolvidos) praticados dentro de unidades militares podem comprometer o serviço e conduzir ao descrédito social uma instituição que depende bastante de sua honorabilidade, ainda assim podemos afirmar que o modo de reprimir ou prevenir esse tipo de comportamento não precisa ser através de intervenção penal, porquanto há outros modos eficientes de fazê-lo. Para os militares, a responsabilização disciplinar é particularmente grave. Crime para quê? Para gerar efeitos estigmatizantes, claro.

Andou bem a PGR. Pena que seja uma medida pontual. O país realmente precisa é de uma reforma geral de sua legislação, que inspire uma nova mentalidade entre os brasileiros.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Escândalo da publicidade

Sim, eu sei que há alguns meses o PMDB deixou a base de sustentação do governo estadual e agora trabalha para eleger Helder Barbalho governador no próximo ano. Também sei que, graças a isso, boa parte do Diário do Pará é dedicada, diariamente, a bater duramente na gestão tucana (como se vê pela nota acima, publicada na edição de hoje). Não é minha intenção fazer concessões à ingenuidade.

Contudo, não é de hoje que se fala de gastos astronômicos, irreais e irracionais com publicidade, estratégia utilizada para burlar as incapacidades do poder público. Sabemos que se aloca uma verba inacreditável para pagar marqueteiros, principalmente aqueles bem amigos, que ajudaram durante a campanha eleitoral e depois, por coincidência, venceram a licitação para a prestação de serviços ao governo.

Mas 170 milhões de reais em menos de três anos é algo que deveria ser motivo de escândalo! É escandaloso em si mesmo e fica pior quando se fazem comparações. Isso deixa bem claros os objetivos de um governo, que não são do interesse público. Por isso, realmente deveria haver mecanismos mais contundentes para vedar esse tipo de absurdo.

Quem esteve na inauguração da nova Santa Casa disse que o governador Simão Jatene descreveu um cenário idílico para o nosso Estado. Pelo visto, vivemos aqui muito melhor do que na Suécia. Típico do tucanato: números e fantasia. Jatene está cada vez mais parecido com seu afilhadão, Duciomar Costa. Mas enquanto eles vivem suas dimensões paralelas, nós enfrentamos a dura realidade.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Direito de morrer

Tendo vivido cerca de 47 anos mais do que o previsto pelos médicos, quando diagnosticaram nele esclerose lateral amiotrófica, o célebre físico e cosmólogo inglês Stephen Hawking (71) declarou recentemente que deve ser reconhecido o direito de morrer, em favor de pessoas que estejam sob situações de grande sofrimento por doenças terminais, desde que possam manifestar livremente a sua vontade, comprovando-se a ausência de pressões.

Mesmo com suas gravíssimas limitações físicas, Hawking nunca quis desistir da própria vida. É um dos cientistas mais prolíficos do mundo, tendo incursionado também pela literatura. Sua obra Uma breve história do tempo é muito famosa.

O cientista afirma que prosseguir vivendo é possível quando se mantém a mente ativa e o senso de humor. Pode ser meio inesperado ouvir isso de alguém que leva uma vida que ninguém deseja, mas certamente ele acredita nisso. Vale lembrar, suponho, que Hawking é ateu.

No link abaixo, você encontra matéria sobre países que admitem a ortotanásia ou o suicídio assistido, além de fotos sobre casos mundialmente conhecidos de pessoas que lutaram pelo direito de morrer, para si mesmas ou para terceiros. Vale a leitura. Só não espere discussões pacatas sobre o tema.

Fonte: http://noticias.terra.com.br/ciencia/fisico-britanico-stephen-hawking-defende-direito-ao-suicidio-assistido,b366c8249a321410VgnCLD2000000dc6eb0aRCRD.html

Extinção


Níquel Náusea.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Irmã

A mulher da foto é uma freira congolesa chamada Angélique Namaika, tem 46 anos e percorre de bicicleta a região de Dungo para atender as famílias vitimadas por uma longa e cruel guerrilha interna. Sua principal preocupação são as vítimas de uma horrenda estratégia de guerra: o estupro.

Arriscando a própria vida, Irmã Angélique tem trabalhado incansavelmente. Em razão disso, acabou de ser agraciada com o Prêmio Nansen, considerado a maior láurea concedida a defensores de direitos humanos.

Seu esforço e sua fé são inspirações para o mundo.

A República Democrática do Congo (antigo Zaire; não confundir com a República do Congo) é um país da África Central com cerca de 70 milhões de habitantes. Considerado um dos países mais ricos do mundo em recursos naturais, possui uma população muito pobre. Foi colonizado pela Bélgica, de que se tornou independente em 1960. A partir daí, a instabilidade política tomou conta da região. Cercado por outras nações em situação de conflito, padece de graves problemas humanitários a enfrentar.

Fonte: http://noticias.orm.com.br/noticia.asp?id=673075&|ONU+premia+freira+do+Congolesa+que+atende+v%EDtimas+de+estupro

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Infringente — Ou de como estou embargado

Já escrevi, aqui no blog, sobre como o julgamento da Ação Penal n. 470, o famoso e controverso caso do "mensalão", colocou as tecnicalidades complicadíssimas do direito na boca do povão, algo interessante, mas que não necessariamente implica em educar o leigo.

A controvérsia da semana atende pelo nome de "embargos infringentes", uma espécie de recurso que eu, pessoalmente, sempre considerei uma idiotice extrema. Afinal, o modelo processual brasileiro sempre permitiu que os órgãos colegiados do Poder Judiciário deliberem por maioria. Não existe — e seria surpreendente, de tão absurdo — que alguma decisão coletiva de algum dos Poderes da República precisasse ser tomada por unanimidade. Se assim é, qual a razão para se admitir um recurso cujo único fundamento é a divergência? Não um suposto defeito da decisão, mas a necessidade de rever o caso, para produzir uma deliberação mais "segura", ou mais "justa", ou coisa do gênero.

Dito isto, em que pese a excrescência dos embargos infringentes em si, uma vez que eles existem, deve-se discutir a sério sobre o cabimento no âmbito do STF. A sério. Não farei essa discussão, porque direito processual nunca foi a minha praia e, mais do que nunca, trata-se de uma disciplina jurídica que eu detesto, principalmente processo civil. Remeto os interessados aos especialistas na matéria.

Esta postagem destina-se a lamentar que, mais uma vez, o efeito "mensalão" está operando. É uma espécie de vírus de rápida propagação, que provoca nas pessoas um estado de febre delirante. Uma vez contaminado, o paciente se agita, fica irascível e falastrão. Mesmo pessoas habitualmente ponderadas — e até as de carreiras jurídicas — se danam a se comportar como torcedores de futebol em torno de uma mesa de bar, entupidos de cerveja. Sabe aquela coisa de não ser capaz de argumentar sobre o jogo em si, sempre descambando para um árbitro corrupto, um cartola sem vergonha, um gramado em más condições, etc.?

Pois é. O efeito "mensalão" dividiu o STF entre aqueles que tomam decisões contrárias aos réus e por isso — somente por isso  são honestas, admiráveis, heroicas, e aqueles outros que, tendo decidido qualquer coisa em favor dos réus, são ipso facto canalhas, venais, odiosos. Envergonham o Brasil. E por aí vai. Resulta daí que a nação também fica dividida, entre os verdadeiros patriotas e os vampiros da decência, que merecem a morte, de preferência uma lenta, dolorosa e infamante.

E eu, que não acredito em um mundo cartesiano, com um lado bom e outro mal claramente definidos, tenho que aturar as pessoas ao meu redor espumando pela boca! Cansativo. Não estou dizendo que tem razão, até porque não sei. Só queria que as pessoas se acalmassem um pouco.

Não vejo a hora de esse maldito julgamento terminar. É preciso que ele acabe, para que os inúmeros comentaristas "técnicos", a maioria de ocasião, possam enfim fazer as suas proclamações finais por mais alguns dias e o país possam, depois, quem sabe, seguir adiante, se Deus quiser sobre trilhos melhores do que os que têm nos conduzido até aqui.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Só enxergam o próprio lado

Um desenhista americano chamado Sean Gordon Murphy, autor de uma HQ chamada "Punk rock Jesus" (eu não conheço nem o autor nem a obra, mas tudo bem, não sou consumidor de HQ), deve vir ao Brasil participar do 8º Festival Internacional de Quadrinhos, a se realizar em Belo Horizonte entre 13 e 17 de novembro deste ano. Aí o cara publica em sua conta no Twitter: "Esse processo para obter o visto brasileiro é ridículo. Mais um obstáculo e vou cancelar a visita ao FIQ".

Ofendidinho, nervosinho, o cara só esqueceu — ou talvez não saiba, mesmo; dizem que até hoje uma porção considerável dos americanos não sabe que a Terra gira em torno do Sol; o ex-presidente George W. Bush mandou ensinar o criacionismo nas escolas, porque a evolução é "apenas mais uma teoria" — que as relações internacionais são regidas pela regra da reciprocidade. Sempre foi assim.

O Brasil está longe de ser um país que causa embaraços aos estrangeiros, inclusive para imigração, que dirá para simples visitas. Episódios que podem ser lembrados dizem respeito àquela época em que a Espanha começou a humilhar e repatriar brasileiros, alegando que poderiam ter ido àquele país para se prostituir! Então as autoridades locais apertaram as exigências contra os espanhois. Eu mesmo vi matéria na TV em que um espanhol foi mandado de volta na mesma pisada, porque não informou o endereço de onde iria se hospedar, apresentando apenas um folheto de hotel.

Estes são exemplos de regras bastante razoáveis: comprovar local de hospedagem e recursos financeiros para se manter no país. E foi com base neles que o Brasil começou a ser rigoroso com os espanhois. A população apoiou. Nessas horas, o nacionalismo brota.

Ignorante de tudo isso, o quadrinhista provavelmente acha que o Brasil não é um país digno de impor exigências, ainda mais para um... americano! No entanto, é justamente em seu país que se originam as regras mais malucas, ridículas, patéticas e irracionais em matéria de visto. Além de perguntarem se somos terroristas, narcotraficantes, traficantes de pessoas ou cafetões; se já fomos em algum momento da vida ou se pretendemos ser no futuro; além de exigir informações até do nosso ensino fundamental, faturas recentes de cartão de crédito e declarações de renda, tocam o terror na cabeça dos interessados.

E aí aparece um filho da pátria para reclamar. Frangamente.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Piratear não é crime, devido ao princípio da adequação social

Achei por bem transcrever a íntegra da decisão, porque estou ministrando aulas de Direito Penal I e um dos temas abordados em aulas da semana passada foi, justamente, o princípio da adequação social, fundamento desta contundente sentença absolutória.

Nela, o juiz decide sair do gabinete e fincar os pés na realidade, descrevendo até como são as ruas da cidade. Interessante. Mas imagino que alguns críticos possam acusá-lo de ativismo. Não dá para saber sem, ao menos, ler o que ele afirmou, com a consciência de que o magistrado não se escondeu atrás do mito da isenção e foi claramente valorativo. Veja por si mesmo.

O Ministério Público do Estado de Goiás, no uso de suas atribuições legais, através do Ilustre Promotor de Justiça atuante nesta vara, ofereceu denúncia em desfavor de PRISCILA MONTEIRO DA SILVA, devidamente qualificada nos autos em epígrafe, pela suposta prática de crime tipificado na rubrica do caput do artigo 184, § 2º, do Código Penal, pelos fatos a seguir expostos. Consta da inicial que:
“Consta dos inclusos autos de inquérito policial que, no dia 04 de fevereiro de 2010, por volta das 18:40h, em uma feira do Setor Balneário Meia Ponte, localizada na Avenida Ormezina Naves Machado, Qd. 72, Lt. 13, Jardim Balneário Meia Ponte, nesta Capital, PRISCILA MONTEIRO DA SILVA expunha à venda, com intuito de lucro, 727 (setecentos e vinte e sete) CD's e DVD's, de autores diversos, todos reproduzidos com violação de direito autoral.
Apurou-se que, na data, local e horário mencionados, a denunciada comercializava os referidos DVD's e CD's contrafeitos, sendo que ao perceber a presença de policiais militares que ali faziam patrulhamento de rotina tentou evadir-se do local, porém foi perseguida e presa, bem como apreendidas as mercadorias falsificadas.”. (Trechos da denúncia de fls. 1-a/1-b).
A denúncia foi recebida em 02 de março de 2010 (fl. 38).

A acusada foi pessoalmente citada à fl. 51, vindo à lume sua resposta aos termos da acusação, por meio de defensor nomeado, desacompanhada de rol de testemunhas (fls. 52/53).

No decorrer da instrução criminal, procedeu-se à inquirição de 02 (duas) testemunhas arroladas pelo Ministério Público (fls. 72 e 76). A acusada não foi interrogada por ter mudado de endereço sem comunicação devida a este juízo.

Na fase diligencial preconizada pelo artigo 402 do Código de Processo Penal, o Ministério Público requereu a juntada aos autos da certidão de antecedentes criminais atualizada da acusada (fl. 80-vº). A defesa nada postulou.

Em sede de memoriais, o Promotor de Justiça, considerando procedentes os fatos narrados na denúncia em relação à acusada PRISCILA MONTEIRO DA SILVA, pugnou por sua condenação nas sanções penais do artigo 184, § 2º, do Código Penal, por entender comprovadas, de forma satisfatória, a materialidade e autoria da conduta a ela imputada (fls. 87/95).

Por sua vez, a defesa da acusada pleiteou sua absolvição, pelo reconhecimento do princípio da insignificância.

Por fim, vieram-me os autos conclusos para a prolação da sentença.

É O SUCINTO RELATÓRIO. DECIDO.

Verifica-se que o processo em tela está apto para o julgamento.

Presentes as condições que dão suporte ao exercício do direito de ação, bem como os pressupostos processuais necessários à constituição e desenvolvimento válido e regular do feito, o iter procedimental transcorreu dentro dos ditames legais, sendo asseguradas às partes todos os direitos, e respeitados os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Desta feita, não se vislumbram nulidades ou irregularidades de ordem processual a serem escoimadas.

À míngua de preliminares suscitadas pelas partes, passo, doravante, à análise meritória.

Cuidam, os presentes autos, de Ação Penal Pública incondicionada, intentada pelo Ministério Público, objetivando apurar no presente processado a responsabilidade criminal de PRISCILA MONTEIRO DA SILVA, pela suposta prática de crime de violação de direito autoral.

Analisando detida e cuidadosamente estes autos, tenho que é plausível e justo a absolvição da acusada das imputações que lhe vinham sendo feitas nesse processado, em atenção ao princípio da adequação social.

Sucede que a acusada, em depoimento na delegacia, único momento em que foi ouvida, confessou que adquiriu os Cds e DVDs com ela apreendidos pelo valor de R$ 1,00, sendo que os expunha a venda no momento da abordagem por R$ 3,00, ou caso o cliente quisesse, vendia dois por R$5,00.

De outra banda, os policiais militares Wilian Robson Cintra e Carlos Antônio Pereira de Oliveira foram taxativos no sentido de que a denunciada efetivava a venda de CD's e DVD's em uma feira no Setor Balneário Meia Ponte, os quais foram objetos de apreensão.

Diante deste contexto, não pairam dúvidas de que a acusada efetivamente perpetrou o fato que lhe é imputado na exordial acusatória.

Contudo, ainda será preciso analisar a adequação típica deste agir, isto é, se a comercialização de cópias não autorizadas de CDs/DVDs caracteriza infração penal, mormente considerada a sua nítida aceitação social.

Na última década do Século XX e início do XXI, elevou-se a moderna concepção do Direito Penal, subministrado às cominações constitucionais. Trata-se da denominada “Teoria Constitucionalista”, cujos expoentes são EUGENIO RAÚL ZAFFARONI e LUIZ FLÁVIO GOMES.

Releva destacar que os adeptos desta hodierna doutrina não desconhecem a importância da objetividade jurídica, acrescentam, porém, ser indispensável o elemento da ofensa. O tipo penal se consubstancia no conjunto de pressupostos que fundamentam uma determinada ofensa ao interesse jurídico tutelado na norma penal. Isto é, o Direito Penal somente deve tipificar as condutas que tenham relevância social:
A partir da premissa de que o direito penal somente tipifica condutas que têm certa "relevância social", posto que do contrário não poderiam ser delitos, deduz-se, como consequência, que há condutas que, por sua "adequação social", não podem ser consideradas como tal (Welzel). Esta é a essência da chamada teoria da "adequaçãosocial da conduta": as condutas que se consideram "socialmente adequadas" não podem ser delitos, e, portanto, devem ser excluídas do âmbito da tipicidade. [JUNIOR, Octahydes Ballan. A FALSIFICAÇÃO DE CDS E DVDS E A ADEQUAÇÃO SOCIAL.
Nessa esteira, o italiano LUIGI FERRAJOLI elucida que a intervenção do direito penal deve se dar apenas nas ações reprováveis por “seus efeitos” lesivos a terceiros:
A lei penal tem o dever de prevenir os mais graves custos individuais e sociais representados por estes efeitos lesivos e somente eles podem justificar o custo das penas e proibições. Não se pode e nem se deve pedir mais ao direito penal. [FERRAJOLI, LUIGI. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Prefácio de Norberto Bobbio. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais., 2002-págs. 372/382.]
Ademais os estudos mais progressistas do campo das ciências criminais, nos trazem o importante princípio da intervenção mínima do Estado, no qual diminuem-se as condutas a serem reprimidas pelo Direito Penal apenas para aquelas que efetivamente são causadoras de lesões importantes a bens jurídicos relevantes.

Ao desate da presente contenda, inexorável a aplicação do princípio da adequação social. Como é cediço, tal princípio foi desenvolvido sob a premissa de que uma conduta socialmente aceita ou adequada não deve ser considerada como ou equiparada a uma conduta criminosa.

A teoria da adequação social foi concebida pelo grande jurista e filósofo alemão HANS WELZEL, que preconiza a ideia de que, apesar de uma conduta se subsumir ao tipo penal, é possível deixar de considerá-la típica quando socialmente adequada, isto é, quando estiver de acordo com a ordem social. É possível afirmar que, em razão da sua aplicação, não são consideradas típicas as condutas praticadas dentro do limite de ordem social normal da vida, haja vista serem compreendidas como toleráveis pela própria sociedade.

Note-se que o objeto dessa teoria não é a tipicidade formal da conduta. Em outras palavras, o comportamento continua sendo formalmente típico, haja vista que se subsume perfeitamente à norma penal incriminadora. O que se atinge com a sua aplicação é a tipicidade material.

Trata-se, enfim, como destacado por diversos doutrinadores pátrios, de uma regra de hermenêutica tendente a viabilizar a exclusão da tipicidade de condutas que, mesmo formalmente típicas, não mais são objeto de reprovação social relevante, pois nitidamente toleradas. Nesse sentido, LUIZ FLÁVIO GOMES e ANTONIO GARCÍA-PABLOS DE MOLINA asseveram que:
(...) A tipicidade material tem por fundamento dois juízos valorativos: a) juízo de valoração (desaprovação) da conduta e b) juízo de valoração (desaprovação) do resultado. Quando a conduta é socialmente aceita (…) fica afastada a desaprovação da conduta (porque se trata de conduta que cria que cria risco tolerado, aceito). (...). (In “Direito Penal – Parte Geral”, 2ª ed., RT, São Paulo, 2009, p. 235.)
Basta caminhar pelo centro de Goiânia para se encontrar milhares de pessoas comprando CDs e DVDs falsificados (“pirateados”, como são conhecidos popularmente) com toda tranquilidade, uma vez que não encaram a prática de maneira criminosa ou mesmo imoral. Aliás, para boa parte da população esta é uma das únicas formas de se adquirir produtos que visem a formação de seu capital cultural. É sabido que existem grandes gravadoras e produtoras que controlam a criação, produção e circulação dos produtos de entretenimento, ademais da altíssima taxa tributária, impedindo que as parcelas mais pobres tenham acesso à produção artística e cultural.

O mais absurdo é que camadas mais elevadas da sociedade patrocinam o suposto crime em tela, diuturnamente, através da “internet”, “ipods”, “iphones” e outros. Carros luxuosos dotados de equipamentos habilitados à reprodução de músicas em formato digital (“MP3”), as quais, são “baixadas” de “sites” da “internet”, sem qualquer valor adimplido aos detentores dos direitos autorais, circulam livremente pela cidade. Crianças e adolescentes de classes mais abastadas, circulam com seus “Ipods”, “Ipads”, “Iphones” e aparelhos outros, ouvindo canções que foram objeto de “download” nas mesmas circunstâncias.

Mas contra tais pessoas, existe algum tipo de coerção estatal? Há nota da expedição de mandado de busca e apreensão a residências de pessoas que realizam gravação de mídias deste gênero, em violação ao art. 184, “caput”, do CP? Algum condutor de veículo, que tenha sido alvo de abordagem de rotina pela atividade policial, flagrado fazendo uso de mídia “pirateada”, foi criminalmente autuado na forma do art. 184, “caput”, do CP?

Jamais. Pois, o fato é que em sua grande maioria, a reprimenda penal é direcionada e investida contra as classes baixas. Desta forma que as condutas imorais típicas das classes despossuídas são tipificadas nos estatutos penais, como o furto, roubo, falsificação e etc... Enquanto as práticas imorais típicas das classes possuidoras, não são tipificadas, ou quando o são tem penas brandas, como os crimes tributários ou contra o meio ambiente, e amiúde, são precisamente estes os crimes em que a afetação social é maior, tendo em vista que toda a população é prejudicada. Para ficar em um exemplo, temos o jogo do bicho, que notoriamente leva à ruína, sem qualquer controle, milhares de pessoas todos os anos, mas que não passa de uma contravenção penal.

Logo, precisamente aquelas que não conseguiram, ou muitas vezes foram impedidas, de se encaixar no mercado de trabalho formal e buscaram sustento no comércio informal, acabam sendo reprimidas pela legislação penal simbólica e voltada, exclusivamente, à tutela de grupos econômicos específicos, como forma de controle social de determinadas parcelas sociais. LUIZ FLAVIO GOMES e ANTONIO GARCIA-PABLOS DE MOLINA, com muita propriedade, lecionam sobre o tema:
O controle social é altamente discriminatório e seletivo. Enquanto os estudos empíricos demonstram o caráter majoritário e ubíquo do comportamento delitivo, a etiqueta do delinquente, sem embargo, manifesta-se como um fator negativo que os mecanismos de controle social repartem com o mesmo critério de distribuição dos bens positivos (fama, riqueza, poder etc.): levando em conta o status e o papel das pessoas. De modo que as "chances" ou "riscos" de ser etiquetado como delinquente não dependem tanto da conduta executada (delito), senão da posição do indivíduo na pirâmide social (status). Os processos de criminalização, ademais, vinculam-se ao estímulo da visibilidade diferencial da conduta desviada em uma sociedade concreta, isto é, guiam-se mais pela sintomatologia do conflito que pela etiologia do mesmo (visibilidade versus latência). [GARCÍAPablos de Molina, Antônio; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 4 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.]
Atualmente, é normal estarmos em bares, restaurantes,feiras, na rua, e nos depararmos com indivíduos vendendo objetos pirateados – e não é segredo para ninguém a origem falsificada de tais produtos. A reação da sociedade não é de rechaço para com essa ação, pelo contrário, é aceito com normalidade. A posição do Juiz de DireitoRoberto Coutinho Borba do Rio Grande do Sul sobre o assunto é clara:
(...) o Juiz de Direito Roberto Coutinho Borba considerou que a conduta perpetrada pelo agente é flagrantemente aceita pela sociedade e, por tal motivo, impassível de coerção pela gravosa imposição de reprimenda criminal. Basta circular pelas ruas e avenidas centrais de qualquer cidade deste País para que se vislumbre milhares de pessoas comprando CDs e DVDs falsificados, sem qualquer receio de imposição de abordagem policial. E o mais espantoso, é que a prática de fatos afrontosos aos direitos autorais são cometidos às escâncaras em diversos setores das classes média e alta, mas, como costuma acontecer em um sistema jurídico afeto à seletividade, apenas as camadas populares arcam com o revés da incidência estigmatizante do Direito Penal, afirmou o magistrado. [http://www.tjrs.jus.br/site/]
Além da reação popular de não repudiar a ação, vemos também a manifestação de diversos artistas que reconhecem que a pirataria serve como propaganda de seus trabalhos. Exemplo disso é o que afirmou o ilustre escritor internacionalmente renomado, Paulo Coelho, em seu blog paulocoelhoblog.com, em 2012 (original em inglês, tradução em http://blogs.estadao.com.br/link/paulo-coelho-defende-pirataria-e-atacasopa/):
Em 1999, quando primeiro fui publicado na Rússia (com uma tiragem de três mil), o país sofria com uma severa falta de papel. Por sorte, eu descobri uma edição “pirata” d’O Alquimista e a publiquei na minha página na internet. Um ano depois, quando a crise tinha passado, vendi 10 mil cópias da edição impressa. Em 2002, eu já tinha vendido um milhão de cópias na Rússia. Hoje, já passei dos 12 milhões. Quando viajei pela Rússia de trem, encontrei várias pessoas que me disseram que haviam descoberto meu trabalho através da edição “pirata” que postei no meu site. Hoje em dia, mantenho o site “Pirate Coelho”, fornecendo links para quaisquer livros meus que estejam disponíveis nos sites de P2P (compartilhamento). E minhas vendas continuam a crescer – são quase 140 milhões de cópias no mundo inteiro. Quando você comeu uma laranja, você tem que voltar para a loja para comprar outra. Nesse caso, faz sentido pagar no ato. Com um objeto de arte, você não está comprando papel, tinta, pincel, tela ou notas musicais, mas a ideia que nasceu da combinação desses produtos. “Piratear” pode servir como introdução ao trabalho de um artista. Se você gosta da sua ideia, então você vai querer tê-lo em casa; uma boa ideia não precisa de proteção. (grifo nosso) (Paulo Coelho, http://paulocoelhoblog.com/2012/01/20/welcome-to-pirate-my-books/).
Enfim, o que se denota com toda clareza, é que se está diante de uma prática contrária ao direito, em que o agente obtém ou intenta obter lucro com a comercialização de criações que não são de sua autoria, sem o pagamento dos valores devidos ao titular da obra. O que, todavia, como já demonstrado, a ação é aceita tanto pela sociedade quanto, até mesmo, por vários artistas.

Esta não é, de nenhuma maneira, uma prática rechaçada pela sociedade de modo expresso, notório, tendente a justificar a contundente intervenção penal.

Assim sendo, transparece que a prática ilícita cometida pelo denunciado seria passível de contenção mais razoável e proporcional com a só intervenção do Direito Administrativo, quem sabe com mera apreensão dos produtos contrafeitos e imposição de sanção pecuniária. E isto para não entrar nas raízes que fazem com que tais práticas existam na sociedade e tenham, de alguma forma, de serem punidas.

Finalmente, não há como conceber a imposição do cárcere a uma conduta que encontra tolerância na quase totalidade da sociedade.

A jurisprudência dos tribunais, começa a a admitir a absolvição sumária dos acusados de “pirataria” com fulcro nos princípios da adequação social e da insignificância. Observemos a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
“Fato notório de que em todo o Estado do Rio de Janeiro, e talvez em todo o Brasil, CDs e DVDs são vendidos em grandes quantidades, por ambulantes, e por preços módicos; sobretudo, devido ao alto custo para a grande maioria da população. Fato também notório de que pessoas, mesmo de condição social média, média para elevada, e elevada, através da Internet, obtém cópias de filmes e de obras musicais, relegando ao oblívio os ditos direitos de autor. Positivação de que o réu; operário de “lava-jato”; com baixíssima renda, a complementava com tal atividade, por certo ilícita, porém muito menos lesiva à sociedade do que o comércio de drogas ou a investida violenta ao patrimônio alheio. Rigor de o julgador estar atento à sofrida realidade social deste país, a qual assim continua; embora de pouco alterada nos últimos tempos. Tipicidade que existe no sentido próprio, mas que é afastada in casu pela aceitação social da mesma conduta; e que apenas cessará por medidas sólidas, de governantes e legisladores, combatendo pelas reais origens.” (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Data da sessão: 02/02/2010. Órgão julgador: Sexta Câmara Criminal. Relator: Des. Luiz Felipe da Silva Haddad).
Para tanto, podemos elucidar o caso também com jurisprudência do Tribunal de Justiça do Mato Grosso:
“Consta na denúncia que no dia 24/02/2011, por volta das 14h15min, na Avenida Ernesto Geisel, Centro, nesta capital, o denunciado foi flagrado vendendo/expondo a venda 279 cópias de CD’ s e DVD’ s, reproduzidos com violação de direitos autorais. A conduta imputada ao recorrido é atípica, devendo ser mantida a decisão que rejeitou a denúncia, pela aplicação do princípio da insignificância. O princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção do fato à norma, mas, primordialmente,em seu conteúdo material,de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, consagrando os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima.(...). É evidente que o comércio clandestino de CD’ s e DVD’ s (pirataria) deve ser combatido, mas não se deve punir os miseráveis comerciantes que arriscam a própria vida para sobreviver dessa prática e, sim, os "medalhões", aqueles que obtêm fortuna com a fabricação ilegal de milhões de cópias de CD’ s DVD’ s, os quais são espalhados pelo mundo afora. Portanto, mantenho a rejeição da denúncia proposta em face do recorrido, com base no art. 395, III, do CPP (faltar justa causa para o exercício da ação penal), já que sua conduta é irrelevante para o Direito Penal.” (Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Julgamento: 14/05/2012. Órgão julgador: 1ª Câmara Criminal. Classe: Recurso em Sentido Estrito. Relatora: Exma. Sra. Desª. Marilza Lúcia Fortes). 
No Tribunal de Justiça do Acre:
APELAÇÃO CRIMINAL – VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL VENDA DE CD E DVD PIRATAS – ABSOLVIÇÃO – POSSIBILIDADE – PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA POR SER A LESÃO INEXPRESSIVA AO BEM JURÍDICO – INTELIGÊNCIA DO ART. 386, INCISO III, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. 1. Deve prevalecer a absolvição dos apelados, uma vez que a reprovabilidade de seus comportamentos foi de grau reduzidíssimo e a lesão ao bem jurídico se revelou inexpressiva. 2. Apelo improvido. (Tribunal de Justiça do Acre. Julgamento em 01/09/2011. Órgão Julgador Câmara Criminal. Relator Feliciano Vasconcelos de Oliveira).
Noutro prisma, em caso similar o Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu os acusados que foram encontrados com 1.336 cópias de CD's e DVD's mais 84 jogos eletrônicos, pelo fato da perícia ter sido feita por amostragem e não indicar corretamente os autores que teriam sido lesados com a conduta do agente. Ora, o mesmo se dá na presente denúncia, a perícia de fls. 98/114 não identificando as supostas vítimas. Nas palavras do Relator Newton Neves:
(...) A norma indica que o crime somente se configura quando a venda ocorre sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente. Embora tenha laudo pericial concluindo pela falsidade das peças examinadas, mostra-se ele ausente de fundamentação ou especificação das obras examinadas. Não há nem mesmo indicação de autor ou autores. Assim, fica impossível reconhecer pela violação a direito de outrem, se sequer foi ele identificado nos autos, observando que a perícia foi feita por amostragem, não sendo indicados pela denúncia a vítima, ou vítimas, não havendo qualquer representação de violação dos direitos tidos como violado. Daí porque, e de forma conclusiva, dá-se provimento ao recurso para absolver o réu das imputações que lhe foram feitas(...) DIREITO AUTORAL - Artigo 184, § 2o, CP - Violação - CD's e DVD's - Autoria evidenciada - Condenação imposta - Ausência do elemento normativo do tipo penal - Não identificação das obras contrafeitas - Conduta criminal não configurada - Absolvição decretada - Recurso provido para esse fim - (voto 11759). (Tribunal de Justiça de São Paulo. Julgamento: 12/04/2011. Data do registro: 29/04/2011. Órgão Julgador 16ª Câmara Criminal. Relator: Exmo. Newton Neves.).
Ante todo o exposto, e com fundamento no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal, JULGO IMPROCEDENTE a pretensão constante na denúncia, e de consequência ABSOLVO a acusada PRISCILA MONTEIRO DA SILVA das acusações que lhe são feitas nestes autos. Após o trânsito em julgado, arquivem-se os autos com as devidas baixas.

Sem custas. Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Goiânia, 30 de agosto de 2013.

ADEGMAR JOSÉ FERREIRA
Juiz de Direito

Fonte: http://s.conjur.com.br/dl/pirataria-nao-configura-infracao-penal.pdf