segunda-feira, 24 de maio de 2021

Você pode ir

Li matéria sobre o adolescente Tomás Covas (15 anos), filho do recentemente falecido prefeito de São Paulo, Bruno Covas, vitimado por câncer. A reportagem (que pode ser lida aqui) enfatiza o fato de o jovem ter dito ao pai que ele poderia ir tranquilo. Que poderia descansar.

Inevitável pensar que, um dia, também precisei fazer algo semelhante. E eu posso dizer a data com precisão: 28 de setembro de 2015. Abracei minha mãe (segundo o prontuário, consciente, porém totalmente não comunicativa) e disse a ela as coisas que me haviam sido sugeridas por meu irmão ― ele, por sua vez, auxiliado por uma linda rede de apoio que tínhamos à época. A diferença é que ele acreditava naquelas ideias e eu, claro, não. Estava revoltado demais para acreditar em alguma coisa. E duvido que meu discurso tenha enganado minha mãe. Espero que, ao menos, tenha ajudado de algum modo o seu processo de desligamento, que durou quase seis dias.

Eu disse que ela precisava descansar e que podia fazê-lo, pois nós ficaríamos aqui e cuidaríamos de tudo. Dando a entender que cuidaríamos bem. Isso se revelou uma mentira de variadas formas, porém, naquele momento, nem eu mesmo possuía essa compreensão. Concentrei-me, em especial, em prometer a única coisa que eu acho que cumpri minimamente: cuidar de Júlia, a netinha por quem minha mãe queria tanto viver. Não acho que tenha falhado. Um dia, perguntada, Júlia me disse que se considerava feliz. As coisas andam complicadas no mundo, mas espero que ainda seja.

Enquanto as pessoas morrem a rodo por causa da pandemia do novo coronavírus, o planeta segue girando, o que significa que pessoas seguem morrendo de outras coisas. Os dramas antigos continuam todos aí, provocando-nos essa sensação pesada de perdas que se amontoam, pressionando nossas mentes, esgotando nossos sentimentos. Alivio-me na autopercepção de conservar a capacidade de empatia, de ainda me importar com o que é simplesmente humano. E, por razões que me parecem óbvias, separações familiares me tocam muito diretamente.

Curioso que, desta vez, senti vontade de escrever, pois a quase totalidade dos meus impulsos emotivos, que considerei compartilhar, foram engavetados. Como diria a canção, "confesso entretanto que sou incapaz/ de exibir assim minhas marcas nos jornais". Hoje, fiz diferente. Talvez como uma forma de dizer aos que estão se separando de seus amores que alguém por aí se importa com eles, mesmo que não nos conheçamos. E que eu realmente desejo que os tempos vindouros possam ser mais leves. Do resto, não sei.

domingo, 9 de maio de 2021

Um homem, não um peru

O exemplo mais famoso dos livros de direito penal, usualmente recebido com certa ironia pelos alunos, sai das páginas para a realidade: um caçador atirou em um ser humano após confundi-lo com um animal. Para ficar mais pitoresco, o caçador confundiu um trilheiro com um peru. Leia a reportagem aqui.

Infelizmente, a matéria não fornece maiores detalhes. Sabemos apenas que a vítima está viva. Vamos torcer para que se recupere.

Mas agora os professores de direito penal, quando estiverem falando sobre erro de tipo, terão a vantagem de enfrentar a incredulidade dos estudantes com o melhor dos argumentos: a realidade.


sábado, 8 de maio de 2021

Leitura profunda, empatia e humanidade

Vi este vídeo agorinha (clique na imagem para assistir) e gostei tanto que senti necessidade de compartilhá-lo. Afinal, não apenas sou um sujeito que ama ler desde a infância, mas que entende absolutamente necessário defender certas práticas que hoje estão atropeladas pela sociedade do desempenho (Byung-Chul Han) e acabam por nos comprometer, enquanto pessoas, enquanto sociedade, enquanto espécie.


Não se trata de menosprezar, e muito menos demonizar, as tecnologias de comunicação que aceleraram o mundo mais do que podemos suportar. Cuida-se, isto sim, de mostrar que ser um incluído digital não é incompatível com a leitura; que ser ativo e proativo não é incompatível com momentos de desaceleração e recolhimento. Aliás, cuida-se, sobretudo, de recordar que um pouco de tédio, um pouco de ócio e um pouco de fantasia sempre foram ingredientes importantes para o nosso desenvolvimento pleno como pessoas.

Algumas pessoas estão impedidas, por circunstâncias da vida, de usufruir do tédio, do ócio e da fantasia. Mas se você é um dos privilegiados que pode se permitir isso, não abdique dessas dádivas, ainda mais por conta própria. A vida é mais do que as urgências que ninguém disse serem obrigatórias, mas que assumimos como tal mesmo assim.

Leia. Os bons e velhos livros de papel. Com capa, projeto gráfico, textura, cheiro, lombada, volume, barulhinho de página sendo virada. E cuide-se. Estamos todos precisando.


quarta-feira, 5 de maio de 2021

Saudades - Nunca mais como antes

Desde ontem, o país comenta, com estupefação, o caso do atentado em uma creche no Município de Saudades (SC). Sabe-se que um jovem de 18 anos invadiu o estabelecimento, munido de um facão, e lesionou de modo fatal cinco pessoas, sendo uma professora, uma auxiliar de educação e três crianças, todas com menos de dois anos.

Os fatos estão aí, na imprensa, amplamente divulgados, inclusive os nomes dos envolvidos.

O objetivo desta postagem não é repetir o que a mídia já divulgou, ainda mais porque pouco se avançou nas investigações, em tão pouco tempo. De ontem para hoje, as únicas informações novas que vi foram quanto ao fato de que não se conhece nenhuma ligação do agressor com a creche (o que pode sugerir um ataque aleatório ou com vítimas anonimizadas) e que o rapaz rondou o local antes de iniciar o ataque, o que foi entendido como premeditação, em algum nível. 

Meu objetivo com esta postagem, antes de mais nada, é manifestar profunda solidariedade às famílias de todas as vítimas. Somos pais e, inclusive, temos um bebê, de modo que a notícia foi recebida com muita tristeza nesta casa. A solidariedade se estende aos pais do agressor, que não conseguem compreender o ocorrido e se encontram, neste momento, no olho de um furacão de perplexidade, certamente recebendo muitas emanações negativas, sem que tenham contribuído para tanto. Outrossim, o rapaz atentou contra a própria vida, o que reforça a hipótese de um surto psicótico. Se for esta a situação, de nada adianta esbravejar ódios: quem está fora de si não pode ser responsabilizado por seus atos, por mais terríveis que sejam as consequências.

Contudo, o que de fato me motivou a escrever foi uma ponderação que julgo realmente oportuna, em uma sociedade convictamente punitivista e racista como a nossa. Fabiano, o agressor, está totalmente fora do perfil de suspeito que as pessoas comuns e policiais costumam apresentar:

1) ele é branco, do tipo que não parece suspeito à primeira vista, nem induz atitudes suspeitas apenas por estar andando na rua;

2) ele tem pai e mãe dentro de casa, contrariando o vice-presidente militar de uma certa república miliciana aí, que em setembro de 2018 declarou publicamente que indivíduos desajustados surgem em famílias desestruturadas, pela ausência de pai ou avô, ou seja, famílias comandadas por mulheres não conseguem manter os valores da família e impedir que seus jovens se tornem criminosos;

3) ele possuía um emprego e, portanto, cumpria a exigência de ser trabalhador, condição de moralidade imposta em sociedades nas quais o cidadão comum precisa ser um corpo obediente às relações de exploração, por mais iníquas que sejam;

4) ele não possui nenhum registro de crime ou ato infracional pregresso, condição que, somada a sua branquitude, elimina a pecha de periculosidade atribuída a muitos jovens brasileiros por estereotipização, primeiro fundamento da criminalização secundária, como nos ensina Zaffaroni.

Em suma, a realidade não cabe nas molduras que o preconceito geral repete acriticamente sem parar.

Um último comentário: Fabiano armou-se de um facão. Você pode imaginar o que teria acontecido se ele dispusesse de uma arma de fogo? A quem interessa armar a população civil?

Temos muito em que pensar  nós, que seguimos vivendo.