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quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Insignificância em discussão no STF

Venho repetindo isso faz tempo: a insignificância da lesão ao bem jurídico é uma questão afeta à tipicidade penal e esta corresponde a um elemento objetivo do conceito de crime. Por conseguinte, a conduta é típica ou não é típica. Assim como uma pessoa não pode ser adulta apenas à tarde ou virgem somente às terças e quintas, um fato não pode ser típico a depender de circunstâncias acidentais.

Explico-me melhor: se entendermos que a subtração de um objeto cujo valor seja equivalente a 10 reais, por exemplo, é insignificante, não existe crime de furto e ponto final. Não faz a menor diferença se o sujeito é reincidente, se o furto foi cometido em concurso com outra pessoa ou se o tipo penal em apreço admite alguma qualificadora (como, no furto, situações de escalada ou rompimento de obstáculo). Parece-me bastante elementar que se subtrair 10 reais não é furto (premissa objetiva), não poderia passar a ser somente porque o indivíduo pulou um muro para ter acesso ao dinheiro (circunstância acidental). Esse tipo de interpretação tendenciosa me soa tão inaceitável quanto dizer que uma bicicleta não é um automóvel, a menos que esteja guardada em uma concessionária de automóveis.

A despeito disso, o judiciário sempre foi reticente em aplicar o princípio da insignificância (já abordamos isto algumas vezes, aqui no blog) e, para operacionalizar essa resistência, engendrou algumas condições, às vezes apelando até para o famigerado direito penal do autor. Graças a isso, se eu subtrair uma caneta mixuruca de alguém, não cometo crime, mas um sujeito reincidente que fizesse rigorosamente a mesma coisa poderia responder pelo "crime". Isto é, pelo fato que não é típico, mas será considerado típico por causa da reincidência. Grotesco, não?

Tal interpretação, contudo, tem sido sistematicamente chancelada pelo Supremo Tribunal Federal, que deveria guardar a Constituição. Uma boa explicação para isso é assegurar a punição de pessoas que, embora sem reincidência ou mesmo sem antecedentes criminais, cometem o mesmo fato diversas vezes. É a pergunta que sempre escuto em minhas salas de aula: mas e se o sujeito subtrair 10 reais de diversas pessoas? Para punir a todo custo, transforma-se o atípico em típico, não pelo fato em si, mas pela reiteração. Aviso aos homens comprometidos: cumprimentar a colega bonitona de trabalho não configura adultério. Cumprimentá-la todo dia, entretanto...

Mas eis que, finalmente, acendeu-se uma luz em meio ao nevoeiro, que atende pelo nome de Luís Roberto Barroso. Preocupado com as implicações do caso, o ministro avocou ao Pleno o julgamento de três habeas corpus que discutem a mesma questão e, graças a isso, teremos uma decisão que não será formalmente vinculante, mas que terá efeitos intensos, como bem sabemos.

Por isso, merece encômios a lucidez de Barroso, que ontem proferiu um longo e minucioso voto, sustentando exatamente a linha de raciocínio acima sintetizada. Após o seu voto, o julgamento foi encerrado e deve ser retomado na próxima quarta-feira. Mas é cedo para comemorar: há uma grande chance de o STF, mais uma vez, abandonar o lógica e manter tudo como está, para homenagear o espírito punitivista desenfreado do brasileiro, do qual aquela corte é uma expressão.

Aguardemos o final do julgamento. Sem dúvida, ele será histórico para a questão. Para o bem ou para o mal.

Fontes: 
  • http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=281650
  • http://www.conjur.com.br/2014-dez-10/reincidencia-nao-impedir-aplicacao-bagatela-afirma-barroso

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Morador de rua pagando fiança, né?

A falta de recursos financeiros de morador de rua se mostra incompatível com o arbitramento de fiança como condição para concessão de liberdade provisória. Assim decidiu o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, ao suspender a exigência de pagamento de fiança por morador de rua preso há mais de dois meses em São Paulo, sob a acusação da prática do crime de lesão corporal leve.
Na análise do Habeas Corpus, o relator determinou que o juiz de primeira instância retire a exigência do pagamento da fiança, arbitrada em um salário mínimo, para a concessão da liberdade provisória.
De acordo com a Defensoria Pública do estado de São Paulo, a cobrança da fiança seria ilegal, já que no momento da prisão o homem informou ser morador de rua e, portanto, não teria condições de arcar com o pagamento. A Defensoria solicitou a aplicação do artigo 350 do Código de Processo Penal, o qual define que “nos casos em que couber fiança, o juiz, verificando a situação econômica do preso, poderá conceder-lhe liberdade provisória”.
Em sua decisão, o relator esclareceu que a análise de Habeas Corpus não se encontra prevista no artigo 102, inciso I, alíneas “d” e “i”, da Constituição Federal, que trata da competência do STF para julgamentos de HC e, portanto, caberia negar seguimento ao pedido. Entretanto, afirmou que “o Supremo Tribunal Federal tem concedido HC de ofício em casos de flagrante ilegalidade”, o que foi identificado no caso.
Ainda de acordo com o ministro, a falta de recursos financeiros do morador de rua se mostra incompatível com o arbitramento de fiança como condição para concessão de liberdade provisória, devendo o juízo averiguar “a possibilidade de aplicação de medida cautelar diversa, compatível com a situação econômica do acusado”. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.
HC 124.294
Ao final, prevaleceu o bom senso. Mas o fato de uma demanda como essa chegar ao Supremo Tribunal Federal mostra como, no Brasil, prevalece a irracionalidade no que tange ao punitivismo. Mas o preciosismo e a inclinação por prender primeiro e raciocinar depois continuam sendo a tônica da ação das instituições componente do sistema de justiça criminal.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2014-out-21/cobrar-fianca-morador-rua-preso-ilegal-decide-luiz-fux

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

De vez em quando, vence o bom senso

Já que tudo agora acaba no judiciário, pois as pessoas se recusam a agir de maneira correta em sociedade, de vez em quando nos deparamos com algumas decisões judiciais reconfortantes.

DESOBEDIÊNCIA PUNIDA

Aluno repreendido por professor durante aula não tem direito a indenização


Por considerar apenas uma desavença entre as partes que não resultou em dano à imagem, intimidade e honra pessoal de criança e nem de seu pai, a 4ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal manteve sentença que negou pedido de indenização ajuizado pelo pai de um aluno repreendido por um professor e coordenador disciplinar de uma escola pública. O governo distrital também foi colocado no polo passivo da ação.  
Na primeira instância, o juiz da 6ª Vara da Fazenda Pública do DF julgou improcedente a ação indenizatória, destacando: “Não se olvide que se a situação gerou qualquer tipo de aborrecimento ao aluno, foi ele mesmo quem se pôs a experimentá-la, ao desatender 3 repreensões por estar falando ao telefone celular no meio de um trabalho de grupo em sala de aula, atitude, esta sim, proibida, não obstante, infelizmente, cada vez mais comum na lamentável rotina acadêmica atual”. 
O pai, representante do estudante na ação, afirmou que o aluno foi desrespeitado pelo coordenador na escola em que está matriculado. Segundo ele, em outubro de 2010, o professor, agindo de forma ameaçadora e descontrolada, teria ofendido o aluno com xingamentos como “otário”, “moleque”, além de outros impropérios. 
No dia seguinte, quando foi ao colégio para se certificar sobre os fatos, o mesmo profissional teria voltado a afrontar seu filho, o que motivou o registro de boletim de ocorrência. Pelos acontecimentos, pediu a condenação do professor e do Distrito Federal ao pagamento de indenização no valor de R$ 100 mil pelos danos morais sofridos pelo aluno, que teria ficado envergonhado e desmotivado a voltar a frequentar a escola. 
Em contestação, o DF e o professor contaram outra versão dos fatos, confirmada por algumas testemunhas arroladas no processo. O coordenador esclareceu que o aluno tinha sido expulso da sala de aula por outro professor em decorrência de seu comportamento inconveniente, depois de sofrer três advertências pelo uso de celular, sendo encaminhado à coordenação disciplinar. No dia seguinte, o pai do menino compareceu à escola e interferiu de maneira inadequada na ocorrência, interpelando-o, o que motivou acalorada discussão entre ambos e mútua troca de ofensas. 
Em grau de recurso, o TJ-DF manteve o entendimento e extinguiu o processo em relação ao coordenador.
“Ainda que a conduta do coordenador não tenha sido a mais apropriada, eis que nada justifica um tratamento desrespeitoso à criança, não vislumbro que tal situação tenha maculado os direitos de personalidade do aluno, de modo que não merece censura o entendimento do magistrado que, seguindo as regras ordinárias de experiência, considerou insuficiente à violação dos direitos da criança, e tampouco em relação ao seu genitor, eis que nesse caso, as agressões foram mútuas”, concluiu o relator, que foi acompanhado por unanimidade, pelos demais desembargadores do colegiado. Com informações a Assessoria de Imprensa do TJ-DF. 
Processo 2011.01.1.071854-9
Fonte: http://www.conjur.com.br/2014-out-15/aluno-repreendido-professor-nao-direito-indenizacao

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A má fé pode virar crime impossível

A prática é bastante comum em qualquer grande cidade: mesmo havendo circuito interno de TV e funcionários destacados somente para fins de vigilância, muitos supermercados deixam o indivíduo subtrair mercadorias e, mais do que isso, deixam-no sair do prédio, para detê-lo já na rua e, com isso, forçar uma acusação de furto consumado. Ou seja, o estabelecimento dispõe de lautos recursos para impedir a conduta, no nascedouro, mas favorece a sua ocorrência para, com isso, perseguir uma punição mais severa.

Sempre considerei esse tipo de postura de um mau caratismo extremo, principalmente porque, na grande maioria dos casos, a subtração envolve valores irrisórios e gente mais desesperada do que convicta.

Eis que, em São Paulo, uma decisão judicial acolheu pretensão da Defensoria Pública, não a tese de absolvição por atipicidade, aplicado o princípio da insignificância. Contudo, o juiz absolveu o réu com base em um raciocínio relacionado ao crime impossível. Afinal, devido à fiscalização eficiente em tempo real, realizada pelo estabelecimento, o furto era desde o começo impossível e só acabou por acontecer devido ao procedimento da própria vítima.

Fiquei feliz com a interpretação do juiz e quis ler a sentença. Em suma, este decisório merece o nosso apreço, mas acabei me deparando com outros aspectos já não tão simpáticos.

Comecemos pelo aspecto formal. Defensor ardoroso da simplificação da linguagem jurídica, várias vezes me pronunciei contra essa tapeação que é a falsa erudição, cuja principal finalidade, na maioria dos casos, é esconder a mediocridade. Quase não acreditei ao me deparar com uma sentença que, prolatada em 22 de setembro de 2014, foi redigida em termos arcaicos, propositalmente obscuros e com abuso de sinônimos, além da abundância de latim, a desvelar sua intencionalidade. E toda essa erudição, no entanto, não se fez acompanhar de correção, porque são vários os erros de português no texto. Veja por si mesmo:

(...) In primo loco, ao esguardo que faz-se merecedora a culta e combativa Defensoria Pública, não é de ser acolitada a bagatela.
Pois sim.
Nestas plagas donde campeia a pobreza e a miséria, quase quinhentos reais, ínfimo não o é. Seria, venia concessa, temerário entender-se por atípica a ação, com empalmo de quase quinhentos reais que, por outra, não redundaria em qualquer resposta no âmbito penal. "Legalizar-se-ia" - e incentivaria - abafos de tal quantia, o que redundaria no caos ou babel.
E, o que é insignificante para uns, para outros não o é.
Vá inquirir aos milhões e milhões de brasileiros, que em liça mensal de sol a sol, observando horário e ordens, percebendo paga mínima, se quase quinhentos reais é insignificante. A resposta, por óbvio e ululante, parafraseando o saudoso dramaturgo, há de ser negativa.
Derriba-se, pois, a insignificância ou bagatela.
Porém a tese outra impressiona.
É de pôr cobro a esse malsão proceder dos estabelecimentos que, bem cientes da pilha em andamento, não impedem-na, reclamando que o gatuno in continenti devolva bens que acomodou em receptáculo ou bolceta, como in casu, sem  o aguardo de este passar pelo caixa e ser contido, após, fora das dependências do estabelecimento.
Tal agir ou atuar é, por vias transversas, vero acicate ao crime.
E, como é dos autos, o fiscal Pablo (f. 06), ajustou que  observou o réu em atitude suspeita e que em momento algum o perdeu de vista.
O exemplo é baço, bem o sei, mas se garção ou latagão apusesse espadete em fauce de caixa, demandado burras, iria o fiscal (amiúde armados com revólveres, gás pimenta ou outros petrechos como dispositivos de choques, etc.) aguardar a consumação do roubo qualificado ou latrocínio? Cremos que não. Homessa!
E, dá-se ensancha, ainda, a barafunda, eis que o réu (que aliás não possui em seu passado jaça de monta, tanto que caucionado pela autoridade policial) meneou a cabeça a assentou subtração de apenas duas peças. E, também, não anuiu ao acosso, contido no interior do estabelecimento (f. 10), o que é razoável, pois bise-se: o fiscal não perdeu-o de vista em momento algum.
Nada obstante e volvendo ao cerne.
Ante a dinâmica, bem clareada nos autos, temos que, nos dizeres de Aníbal Bruno, jurista merecedor de panegíricos com todas as veras da alma, uma autêntica carência de tipo.
A dinâmica, tal qual exsurge, é manifesta injunção de persuasão ou encabeçamento de que seria impossível a consumação do crime.
Desce e fecha a hipótese vertente o que está no artigo 17 do Código Penal.
Não vinga, pois, o anelo acusatório,  pese o respeito que faz-se merecedor o insigne dominus litis et custos legis que, por sua ímpar cultura e labor, goza, não apenas entre seus pares, mas perante todos os operadores de Direito nesta Vara (e em outras), de grande nomeada.
Ex positis:
JULGO IMPROCEDENTE a presente ação penal e o faço para ABSOLVER como de fato absolvo o réu (...), relativamente a acusação que lhe foi assacada, por infração a norma da cabeça do artigo 155 do Código Penal, forte no artigo 397, inciso III, do Código de Processo Penal.
Vade in pace.
Dixi!

Interessante é que a sentença é curta. Se com menos floreios, seria mais curta e objetiva ainda, quanto bastaria. Daí que procurei saber quem era o juiz autor desta peça rara, pois o imaginei um magistrado das antigas. Trata-se de um magistrado com mais de 20 anos de atividade, porém ainda jovem, mormente em nossos tempos. Pelo que se vê, é uma questão de estilo, inclusive porque outras decisões dele seguem no mesmo exagero estético.

Mas se você entendeu que o magistrado em apreço é um "garantista", para usar expressão bastante desvirtuada em nossos dias, equivocou-se. Em outra sentença, a cuja leitura me sacrifiquei, já que até mais cansativa e despropositada, o magistrado se permitiu criticar o tal "fetichismo da pena mínima", expressão que nunca vi associada a boas análises. Chamou a Lei de Execução Penal de "vergonhosa", defendeu a retribuição e a prevenção geral como "valia maior da pena" e sobre a ressocialização (na qual também não acredito, mas outros motivos) disse o seguinte:

A ressocialização (e gastaram-se tintas e tintas sobre tal tema), repisando-se o máximo esguardo, em maioria supra summo, entende-se, humildemente, que é vã filosofia de pretensos filósofos. E assim o é, pois esbarra no livre arbítrio! A jaula torna o tigre mais manso? A raposa menos astuta? E, por melhor que fosse o sistema prisional, ainda assim, volve-se ao livre-arbítrio. O criminoso aprecia ser criminoso e, quanto mais perigoso ou embrenhado nos ilícitos, jacta-se de tanto. (...) Não tenhamos a ingenuidade do personagem Pangloss do notável filósofo iluminista Voltaire. A áspide, por sua natureza e sentindo-se ameaçada por mera aproximação, destila sua peçonha na vítima indefesa; porém, se sentir-se excessivamente e desmedidamente ameaçada, por certo, não atacará e empreenderá fuga. Assim, e bisando o máximo respeito, outros fossem os desates nos inúmeros crimes praticados, o réu não os cometeria, face a dura resposta estatal sendo dissuadido, ou, porque custodiado estaria.

Eis aí o juiz perfeito para a mentalidade reinante do brasileiro médio atual: todo crime é uma questão de simples escolha. E se deve punir tudo, porque as pessoas são más e devem ser contidas. Simples assim. Sua longa experiência não o ajudou a enxergar a realidade, com seus matizes.

No que tange à linguagem, um aviso aos meus alunos e, especialmente, aos orientandos de monografia: nunca, jamais, em tempo algum ousem escrever desse jeito! Não vai dar certo. Se for monografia, nem autorizo o depósito. Ou escrevemos para sermos tão claros quanto possível, e acessíveis inclusive aos mais humildes, ou de que serve o conhecimento? Massagem do ego?

"Homessa"!!!

Fonte: 

  • http://s.conjur.com.br/dl/sentenca-furto-supermercado.pdf
  • http://s.conjur.com.br/dl/juiz-critica-fetichismo-pena-minima.pdf

terça-feira, 23 de setembro de 2014

"Capitalista e preconceituosa"

Decisões evitando impor condenações por crime de violação de direitos autorais, em situação conhecida como "pirataria", não são inéditas. Mas o desembargador Roberto Mortari, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mostrou que seu horizonte não é o do bairro de Higienópolis. Veja a fundamentação de recurso por ele julgado e acompanhado pelo colegiado, à unanimidade, por meio do qual reformou uma sentença condenatória por esse delito:

O caso é de absolvição.
Após o exame dos autos, concluí que os fatos descritos na exordial, embora típicos, foram praticados em verdadeiro estado de necessidade.
Verifique-se, a propósito, que o acusado é pessoa simples e que retira o sustento próprio e da família do arriscado comércio clandestino que exerce, auferindo parcos rendimentos mensais.
E certamente, não por ser essa a sua vontade, mas por ter sido a única forma que encontrou, em nossa sociedade capitalista e preconceituosa, para trabalhar, prover suas necessidades elementares, e sustentar sua casa.
De mais a mais, as autoridades competentes deveriam combater e prender, para fazer processar e condenar, os verdadeiros mantenedores da “pirataria”, cujos nomes e endereços, com pequeno empenho investigatório, certamente descobririam.
Enquanto tal não ocorre, não é justo que se queira responsabilizar e punir o pobre vendedor ambulante que, sem outra opção de trabalho, expõe à venda, em sua banca improvisada, alguns produtos “pirateados”, sabidamente, com margem de lucro irrisória, suficiente apenas para a subsistência.
De tudo, forçoso recordar antigo quadro do humorista Jô Soares, em que, em situações assemelhadas, que ofendem a equidade, perguntava: “Só eu, e os outros?”.
Bom lembrar, também, que rigor excessivo na aplicação da lei acaba transmutando-se em injustiça. Daí a vetusta máxima SUMMUM JUS, SUMMA INJURIA (Cícero).
Destarte, afigurando-se iníqua, a meu ver, a solução condenatória adotada, entendo melhor, mais prudente, que seja proclamada a absolvição do réu.
Asim, por tais fundamentos, dá-se provimento ao apelo, a fim de absolver Robson Ferreira Mota da acusação de ter violado o artigo 184, § 2º, do Código Penal, com fundamento no artigo 386, VI, do Código de Processo Penal.

Simples assim, sem maiores embromações. Ainda há juízes em São Paulo.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

STF e poder investigatório do Ministério Público

ATRIBUIÇÃO DO PARQUET

2ª Turma do STF reconhece que Ministério Público pode fazer investigações

Por unanimidade, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal concluiu que o Ministério Público pode fazer investigações. O colegiado seguiu o entendimento do relator, ministro Gilmar Mendes, de que o artigo 129 da Constituição Federal, que trata das atribuições do MP, apesar de não falar sobre a investigação pelo órgão, não a veda. E a interpretação o Código de Processo Penal e da Lei Complementar 75/1993, que trata da organização do MP da União, permite concluir que o Ministério Público pode investigar.
O julgamento teve início em outubro de 2013, mas foi interrompido por um pedido de vista apresentado pelo ministro Ricardo Lewandowski logo após o voto do relator. Nesta terça-feira (2/9), o ministro Lewandowski apresentou seu voto acompanhando o relator. Lewandowski explicou que pediu vista dos autos diante da dúvida relativa à nulidade das provas a partir de investigação presidida pelo MP, e decidiu rejeitar o recurso por ter verificado que a matéria não foi tratada pelas instâncias inferiores. Além disso, lembrou que a questão do poder de investigação do Ministério Público está para ser analisada pelo Plenário do STF.
O caso concreto trata de um cirurgião condenado a 1 ano e 2 meses de detenção, em Goiânia, pela prática de homicídio culposo (artigo 121, parágrafo 3º, do Código Penal). A sentença considerou que houve negligência do médico durante uma cirurgia de angioplastia e colocação de prótese vascular, que acabou causando a morte do paciente. A defesa sustentava a nulidade das provas colhidas no curso da investigação presidida pelo Ministério Público de Goiás, que não disporia de poder investigatório.
Investigação com limites
De acordo com o relator, ministro Gilmar Mendes, as regras constitucionais sobre a investigação não impedem que o Ministério Público presida o inquérito ou que faça a própria investigação, desde que essa atuação seja controlada e regulamentada. Da mesma forma, nada impede que o réu colha provas para compor sua defesa no processo criminal.
Em seu voto, Gilmar afirma que o artigo 129 da Constituição Federal, que trata das atribuições do MP, apesar de não falar sobre a investigação pelo órgão, não a veda. E a interpretação o Código de Processo Penal e da Lei Complementar 75/1993, que trata da organização do MP da União, permite concluir que o Ministério Público pode investigar.
“Considerando o poder-dever conferido ao Ministério Público na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (artigo 127 da Constituição), afigura-me indissociável às suas funções relativa autonomia para colheita de elementos de prova como, de fato, lhe confere a legislação infraconstitucional”, escreveu o ministro em seu voto.
Controle judicial
O ministro rebateu também o argumento de que a investigação pelo MP causaria um desequilíbrio entre acusação e defesa. Para Gilmar Mendes a investigação pelo MP não desequilibra o jogo, pois sempre estará sujeita ao controle judicial “simultâneo ou posterior”. Isso decorre, segundo o ministro, do fato de ser “ínsito ao sistema dialético do processo” a possibilidade da a parte colher provas para instruir a própria defesa. “Ipso facto, não poderia ser diferente com relação ao MP.”
O relator explica, ainda, que a investigação não é atividade exclusiva da polícia judiciária, e o raciocínio oposto impediria que outras instituições fiquem impossibilitadas de promover investigações. No entanto, afirma Gilmar Mendes, o poder de investigação do MP não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita, sem controle, pois isso representa agressão a direitos fundamentais.
Atuação subsidiária
Gilmar Mendes disse que a atuação deve ser subsidiária, ocorrendo apenas nos casos em que não for possível ou recomendável que a investigação seja feita pela polícia judiciária. O órgão só deve ser acionado nos casos em que a polícia não puder investigar, ou quando não for “recomendável” sua atuação no caso. Exemplos citados por Gilmar Mendes são apurações de lesão ao patrimônio público, de excessos cometidos por policiais (como abuso de poder, tortura ou corrupção) ou de omissão da polícia.
O ministro ainda sugere que uma regulamentação da investigação pelo MP deve obrigar o órgão a formalizar o ato investigativo; comunicar formalmente, assim que iniciadas as apurações, o procurador-chefe ou procurador-geral; numerar os autos de procedimentos investigatórios, para que haja controle; publicidade de todos os atos; formalização de todos os atos; assegurar a ampla defesa, entre outros. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2014-set-04/turma-stf-reconhece-ministerio-publico-investigar

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Sem mais galinhas no supremo terreiro

Há algumas semanas, nesta postagem, reclamei da atitude do Ministro Luiz Fux, que ao negar uma liminar em habeas corpus, manteve uma ação penal contra um homem acusado de furtar um galo e uma galinha, avaliados em 40 reais, os quais foram restituídos ao dono, eliminando qualquer possibilidade de dano.

Eis que o caso chegou ao fim. Julgando o Habeas Corpus n. 121.903, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal reconheceu a aplicabilidade do princípio da insignificância e mandou trancar a ação penal. O detalhe: esse foi o voto do próprio relator, seguido pelos demais ministros, com exceção de Marco Aurélio, vencido, e Dias Toffoli, ausente. O relator foi quem deixou a ação penal correr por causa de questiúnculas formais.

Como o acórdão ainda não está disponível, segue a notícia do Consultor Jurídico:

A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal determinou, por maioria de votos, o encerramento de ação penal contra um homem acusado de roubar um galo e uma galinha, avaliados em R$ 40, na cidade de Rochedo de Minas (MG). Ao analisar o mérito, o relator da matéria, ministro Luiz Fux, entendeu que cabe a aplicação do princípio da insignificância.

Após indeferimento de Habeas Corpus pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a defesa impetrou HC no Superior Tribunal de Justiça, que indeferiu a liminar. No STF, sustentou a aplicabilidade do princípio da bagatela, tendo em vista o pequeno valor do furto. Ressaltou, ainda, que os animais foram devolvidos. No mérito, pediu o reconhecimento da atipicidade da conduta, com fundamento no princípio da insignificância.

Em parecer, a Procuradoria-Geral da República afirmou que o suposto ladrão é réu primário e tem bons antecedentes. Argumentou ainda que “a lesão ao bem jurídico é inexpressiva, tratando-se de conduta que, pelo contexto em que praticado o delito, não se apresenta como socialmente perigosa”. 
Com informações da assessoria de imprensa do STF.

Em suma, o STF até pode reconhecer que uma certa conduta não é penalmente desvaliosa. Mas mesmo com todos os debates a respeito, com toda a proclamada cultura jurídica dos senhores ministros, com toda a revalorização dos princípios, ainda é preciso que siga toda a tramitação processual para se chegar ao resultado óbvio (ou que deveria ser óbvio). Enquanto isso, o tempo e as energias da Procuradoria-Geral da República e da própria Corte Suprema deixam de ser empenhadas em coisa mais séria.

Que bom pelo resultado. Que pena por todo o resto.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Alguém precisa se mudar para outro planeta. Mas quem?

Uma brasileira aforou ação ordinária contra uma empresa de telemarketing, queixando-se de invasão de privacidade, porque seus dados são utilizados por empresas diversas, sem sua autorização, para fins de publicidade. Um abuso que se tornou corrente em nosso país e pelo qual você, assim como eu, já foi alcançado mais de uma vez. Logo, a meu ver, é benfazejo que alguém, em algum lugar, faça o que a maioria dos cidadãos não faz e tome medidas concretas contra esses facínoras que vivem de roubar o sossego alheio.

Some-se a isso o fato de que o Código de Defesa do Consumidor cria uma política nacional das relações de consumo que reconhece a condição de vulnerabilidade do consumidor e impõe ações governamentais para sua proteção efetiva, inclusive quanto à repressão de abusos nas relações de consumo (art. 4º). Outrossim, são direitos do consumidor, dentre outros, a "proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços" e a "efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos" (art. 6º).

Nada disso interessou, entretanto, ao titular da 13ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre, que matou o processo no nascedouro, em termos contundentes:

"1. Se a suplicante, de fato, sente-se incomodada com publicidades encaminhadas a seu endereço ou telefone, a partir de informes, alegadamente, de iniciativa da ré, sugiro-lhe mude-se para a floresta, deserto, meio do oceano ou para outro planeta..., quando, então sim, ser-lhe-ão assegurados seus direitos à privacidade na forma ou amplitude como defende. Impõe-nos o convívio em sociedade, no entanto, todo dia e toda hora, restrições as mais diversas. Inclusive, o recebimento - ou não - de panfletos, em cada semáforo, enquanto passeamos com a família, especialmente, no final de semana, interferindo, diretamente, com nossos constitucionais direitos à privacidade, ao descanso e ao lazer! Entretanto, como dito, não somos obrigados a abrir o vidro e receber tais encartes. Como podemos usar, gratuitamente, os serviços da operadora de telefonia para bloquear ligações, de qualquer natureza; e, finalmente, ainda podemos por no lixo publicidades enviadas pelo correio que nos estejam sendo inconvenientes ou inoportunas. Agora, medida judicial para atingimentos de finalidades que tais afeiçoa-se como mais uma aventura jurídica, de que os foros de todo o País estão atopetados. Não falta mais nada, pois até o ar que respiramos e o direito de defecar e mictar em banheiro público, amanhã, não duvide, serão passíveis de judicialização! Quem viver, verá. Para litisconsórcio à chicana, todavia, não contem comigo. 2. JULGO EXTINTO O PROCESSO, SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO, por falta de interesse processual (art. 267, VI, do CPC), ficando suspensa a exigibilidade de custas em razão de a requerente litigar sob o pálio da AJG, que ora lhe concedo."

Para descobrir por onde tramitava o processo, usei como expressão de busca o nome do juiz e acabei encontrando outra notícia a ele relacionada, dando conta de que o mesmo se exasperou com uma ação repetitiva. Inflamado, esbravejou contra litigantes e advogados, além de menosprezar a justiça gratuita (veja aqui).

Atitudes como esta são lamentáveis, para dizer o mínimo. Face aos dois episódios, fico com a impressão de que o magistrado anda muito aborrecido com a quantidade de processos em tramitação e passou a transferir suas frustrações para o jurisdicionado. E pior: a solução ideal para o problema, ao que parece, é não entrar com ações, para não incomodar o juiz! Afinal, ele assumiu o papel de decidir que tipo de demanda merece ser aforada. E o faz com o fígado.

Aprendi na faculdade sobre um tal dever de urbanidade, durante o processo. Mas, aqui, ele foi sumariamente ignorado. Por meio de ironias agressivas, o juiz menosprezou o direito da autora. Qual a diferença entre mandá-la para outro planeta e mandá-la pastar, por exemplo? Que grosseria a alusão a necessidades fisiológicas! Poderia ter escolhido qualquer metáfora, mas escolheu esta. Ato falho? Intenção de mandar a parte para lugar relacionado?

De fato, a vida em sociedade nos impõe sacrifícios e renúncias a direitos. Verdade. Mas sob que condições? Se moro em um edifício, sei que sacrifico parcela de minha intimidade. Mesmo morando em uma casa, há limites, p. ex., para o barulho que faço. Se viajo de avião, sei que terei meu corpo fiscalizado. Mas qual a relação entre as escolhas que faço (e aí está o exercício de minha liberdade) e a decisão de um bando de empresas canalhas de, violando a minha paz, invadir os meus espaços para ganhar dinheiro?

Recordo-me de, certa vez, ao atender ligação de uma empresa me oferecendo sei lá que porcaria, indagar como eles possuíam os meus dados. Hesitante, a atendente respondeu que eles possuíam um cadastro com tais informações. Nos momentos seguintes, escutou a minha furiosa reclamação sobre uso indevido de informações pessoais e, com um boa tarde, porém sem se desculpar (eles nunca se desculpam), desligou. Para o juiz em apreço, entretanto, minha faculdade de bater o telefone na cara da atendente (que é só uma empregada, sem poder decisório) purga todos os pecados, elimina qualquer violação ao direito. Mesmo que eu continue recebendo esse tipo de ligação.

Para o juiz, a possibilidade de rejeitar a posteriori as ofertas inconvenientes resolve tudo. Não lhe passa pela cabeça que eu tenho o direito — sim, o direito! — de não ser demandado no recesso do meu lar senão por pessoas autorizadas ou pelo poder público, neste caso por motivo relevante. Quantas vezes já saí correndo do banho, já interrompi trabalhos, já me levantei doente da cama ou fui acordado (até no começo de uma manhã de domingo ou feriado) para atender ao telefone e me deparar com telemarketing. E o nobre magistrado encara isso como ônus da vida em sociedade? E chama de chicaneiro quem tenta se defender?

No lugar da autora dessa ação eu recorreria e, ainda, representaria contra o juiz (ainda que sabendo que, com certeza, não vai dar em nada), não apenas pela falta de educação, mas sobretudo por negar a prestação jurisdicional sem uma palavra sequer sobre seus fundamentos jurídicos, limitando-se a juízos de valor furiosos e utilitaristas. Se está cansado da missão judicante, peça exoneração. Há muita gente interessada na vaga. Ou, ao menos, vá curtir o seu acintoso direito a 60 dias de férias, mais licenças e que tais. Só não transforme a magistratura em expressão de seus tumultos internos, distanciados da realidade do mundo, como por sinal se pode inferir da metáfora empregada na decisão: "não somos obrigados a abrir o vidro".

Ora, senhor juiz, nem todo mundo anda de carro e nem todo mundo possui uma bolha de proteção em redor. Alguns ainda acreditam no judiciário. Ao menos até levar um tapa desses na cara.

Fonte: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI199581,41046-Juiz+sugere+que+mulher+se+mude+para+a+floresta+para+evitar

quinta-feira, 27 de março de 2014

Os dois pesos e as duas medidas, novamente

Há muito que se consolidou uma regra segundo a qual uma pessoa não pode ser processada por crime tributário se o valor sonegado for inferior ao que a Fazenda Pública considera o mínimo para ajuizamento de execução fiscal. A ideia é que se o titular do crédito não se motiva a persegui-lo em juízo, não existe justa causa para a ação penal. Trata-se de uma aplicação do controverso princípio da insignificância, de tão incipiente aplicação no Brasil, porque aqui ninguém gosta de passar a mão na cabeça de ladrão vagabundo, malandro, safado.

Assim, embora o brasileiro médio considere perfeitamente natural e desejável mandar para a cadeia um fulano que furte (delito cometido sem violência contra pessoa, faço questão de ressaltar) a vítima, dela subtraindo, digamos, 50 reais, o próprio poder público se exime de cobrar valores devidos, porém sonegados, em montante bem superior. Não por generosidade, decerto, mas porque os ônus decorrentes do ajuizamento da execução fiscal, nesses casos, não seriam compensados pelo proveito obtido, se obtido. E como me explicou, certa vez, uma ex-aluna que é auditora da Receita Federal, esta regra existe porque o prejuízo provocado pelos (chamemos assim) pequenos sonegadores é superado com folga pelos grandes sonegadores. Assim, o que a Receita quer é acertar os grandes. Reavendo esses ativos, os débitos menores nem fariam falta.

A questão que chega a surpreender é o valor adotado como parâmetro pela Fazenda Pública. Até recentemente, a Lei n. 10.522, de 2002, estabelecia um teto de 10 mil reais. Achou muito? Pois saiba que as Portarias 75/2012 e 130/2012, do Ministério da Fazenda, subiram para 20 mil reais o valor mínimo para ajuizamento de execuções fiscais.

Seguem-se as consequências penais: o Supremo Tribunal Federal já concedeu ordens de habeas corpus sob o argumento de insignificância da conduta, nestes moldes, a mais recente em favor de acusado de descaminho (trouxe muamba do exterior, sem pagar os impostos devidos), em valor abaixo desse montante.

Enfim, não sou contra esta regra. Sou contra a desproporção: a rejeição a parâmetros de razoabilidade para reagir à criminalidade menor, porque nestes casos vigora um discurso moralizador abusivo que, para piorar, nem sempre corresponde ao senso ético que os críticos empregam em suas vidas pessoais.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2014-mar-27/declaracao-insignificancia-vale-debitos-fiscais-20-mil

terça-feira, 18 de março de 2014

Formatura "simbólica"?

Sendo eu e minha esposa professores universitários, fácil concluir que participar de solenidades de colação de grau faz parte de nossa rotina. Ao menos uma vez por ano, lá estamos. Eventualmente, não na condição de professores, mas de amigos de formandos. Assim, ao longo dos anos, vi uma ou outra situação que me pareceu indevida, pelo simples fato de que as regras do jogo devem ser cumpridas. Logo, se você não concluiu seus créditos, não tem por que comparecer à solenidade, senão para prestigiar seus antigos companheiros de curso.

Sim, eu entendo os sentimentos envolvidos, porque o evento é único. Mesmo que você se formasse em outro momento, com a mesma solenidade, não seria mais o momento previsto e nem haveria mais o conjunto dos amigos por lá. E de modo algum embarcarei no barco moralista que considera o aluno não aprovado como fracassado ou de má fé. Não estou aqui para julgar os motivos que retardam a conclusão do curso. Só acho muito estranho, incômodo mesmo, que a pessoa não tenha a capacidade de aceitar a sua condição e seguir adiante.

Já estive em solenidades nas quais o sujeito vestiu beca, sentou-se junto aos colandos, prestou juramento e tudo, submetendo-se ao constrangimento de não ser chamado por ocasião da outorga do grau. Já me disseram, mas não posso afiançar (embora não duvide), que um sujeito chegou a se levantar sem ser chamado e cumprimentar cada componente da mesa dirigente dos trabalhos, tudo devidamente registrado por fotos.

Ah, perdoem-me, mas eu não me prestaria a um papel desses! E não compreendo como a família endosse esse tipo de atitude. Não se trata de uma crítica raivosa minha; eu apenas acho isso triste, porque não é verdadeiro. Se eu tivesse perdido a formatura por alguma razão, estaria mal, mas me sentiria pior ainda fazendo uma encenação dessas. Penso que o melhor seja admitir o revés, fortalecer o espírito e tocar a vida adiante.

Mas nem todo mundo pensa assim. E sempre aparece alguém querendo judicializar os seus problemas emocionais. Foi o que fez uma jovem lá no Rio Grande do Sul. Ela aforou uma ação na comarca de Santa Maria, com pedido de tutela antecipada, a qual foi indeferida sob argumentos formais: “que a exordial não possui qualquer fundamentação jurídica que acompanhe o requerimento da demandante. Carece, portanto, o pedido de prova inequívoca que enseje a verossimilhança das alegações da parte demandante” (fonte: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI197136,91041-Va+assistir+formatura+da+plateia+decide+TJRS+ao+negar+antecipacao+de).

Irresignada, ela agravou a decisão, mas se deparou com uma desembargadora que nem se deu ao trabalho de florear. Precisa, indo direto ao ponto e tocando o mérito da pretensão, a desembargadora escreveu uma decisão que eu adoraria ter produzido, inclusive quanto ao estilo:

Agravo de Instrumento

Sexta Câmara Cível
Nº 70058418559 (N° CNJ: 0034418-66.2014.8.21.7000)

Comarca de Santa Maria


CLAUDIA BOLZAN

AGRAVANTE
UNIFRA - CENTRO UNIVERSITÁRIO FRANCISCANO

AGRAVADO

DECISÃO

Vistos.
Recebo o recurso.
A solenidade de formatura não se constitui em “festa” ou representação teatral, que permita alguém formar-se de forma “simbólica”, e sem qualquer efeito curricular. Se quiser participar da alegria dos formandos que concluíram com êxito o curso, vá assistir a cerimônia da platéia. Se houver festa dos formandos, vá, se receber convite.
Diante do exposto, deixo de conceder a tutela antecipatória recursal pretendida.
Intime-se.
Comunique-se.
Dil.

Porto Alegre, 07 de fevereiro de 2014.

Des.ª Elisa Carpim Corrêa,
RELATORA.

É isso aí. Deixe o judiciário se ocupar de assuntos realmente importantes e aproveite para concluir os seus créditos.

Fico ainda mais aliviado porque o judiciário costuma ser muito receptivo às pretensões deduzidas contra instituições de ensino, limitando-se a aplicar regras ou supostos princípios constitucionais, amplos o bastante para neles caber qualquer coisa. Em se tratando de instituições privadas, a coisa piora, porque os juízes aplicam as regras do direito do consumidor e dane-se o mundo. Já soube de casos em que o aluno estava totalmente errado e a instituição apenas cumpria normas, às vezes regras internas, às vezes determinações do Ministério da Educação. Mas o juiz não quer nem saber e defere. Felizmente, desta vez houve um pouco de bom senso.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Uma pequena demonstração do que falei

Mais cedo do que eu esperava, confirmou-se o resultado pelo provimento dos embargos infringentes, eliminando o crime de associação criminosa em relação a oito réus do "caso mensalão", inclusive os mais famosos. Aí a internet foi-se abarrotando de Ruys Barbosas comentando a deliberação.

No Portal G1:

"Quando o julgamento do mensalão teve início, os ministros do supremo eram outros e a jogada dos bandidos julgados nesse caso foi, utilizarem a morosidade das instituições jurídicas e as lacunas de nossas leis para que os quadrilheiros recebessem de seu compadres do Planalto ( Lula, Dilma e etc....) novos ministros, já que os anteriores deveria se aposentar. E assim foi! Trocaram as peças do jogo e conseguiram amenizar as situação de seus amigos! Ainda bem que temos alguns de lá ( do Supremo) que tem dignidade!!!!"

"O nome da Emissora que diz ser TV 'Justiça' deveria ser 'TV IMPUNIDADE'."

"A Rosa Weber, mais Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Teori Zavascki deveriam ser denunciados por formação de quadrilha!!!"

"Tudo carta marcada. esse é o verdadeiro STF que nós temos, sem credibilidade alguma, o que esses senhores fizer a partir hoje, pra mim e nada é a mesma coisa."

"BANDIDO AJUDA BANDIDO. PARABÉNS MINISTROS DO STF - SUPREMA TRAQUINAGEM FEDERAL."

No Portal Uol:

"Essa 'maioria' muito provavelmente tem 'rabo preso' e precisa manter os bandidos fora da cadeia por precisar de 'favores' deles. A Policia Federal , nosso admirado J. Barbosa e muitos outros já mostraram com todas as evidencias que jose dirceu, genoino e Cia são a escória da política brasileira, no entanto, outros membros do STF, tem interesse maior em manter esses bandidos fora da cadeia. Porque será??? Tavlez essa relação de cumplicidade tenha algo mais profundo ou eles deveriam estar atrás das grades tambem, onde é lugar de mensaleiro corrupto e formador de quadrilha. Quadrilheiros semm vergonha que insistem em se dizer inocentes apesar de todas as provas. Tambem eu nunca vi nenhum bandido sair por aí se dizendo culpado!"

"Eles estão fazendo a lição de casa direitinho, estão aplicando o DIREITO e não a JUSTIÇA, é tudo farinha do mesmo saco..."

"Quem vai contra o Supremo Tribunal Federal? Temos de ser socorridos da corrupção multinível no nosso estado? Por quem?"

"Decisão do STF é para ser cumprida, mas não obrigatoriamente ter concordância, neste caso não tenho, pois houve total mudança de posicionamento quando da alteração da composição dos votantes, esta claramente a serviço do Governo, vulgo Pt. Virou um tribunal comum pollitico com a total desconfiança da sociedade, uma pena, era esperança, hoje disilusão. Daqui a pouco irão conseguir novo julgamento e libertar aqueles que usurparam dos recursos públicos em detrimento de causas não nobres. Daqui a pouco irão condecorar os hoje presos, falta pouco, uma lástima, mas, é o Supremo, ou órgão máximo."

"Com a posse no STF, de Tofoli, Barroso e Zavascki, está tudo dominado. Vou arrumar uma filiação ao PT e estarei liberado para roubar, matar, lesar... e ainda poderei mandar prender quem se manifestar contra mim. Republiqueta latino-americana de quinta..."

Outros portais não permitem a reprodução dos textos, mesmo dos comentários, apenas a indicação do link. Seja como for, não há necessidade de reproduzir uma miríade de protestos que, em última análise, giram em torno de meia dúzia de baboseiras. E nem é o caso de esquentar a cabeça com esses, que representam apenas alguns brasileiros insatisfeitos. O problema, como disse antes, é ver profissionais do direito fazendo as mesmas críticas, no mesmo nível. Aí é triste.

Certezas imbecis

Julgamento dos embargos infringentes na Ação Penal n. 470, o caso "mensalão", no Supremo Tribunal Federal. Os primeiros resultados devem sair hoje e existe uma razoável possibilidade de os réus-embargantes serem absolvidos do crime de quadrilha ou bando (hoje, chamado associação criminosa). Afinal, quatro ministros já votaram pelo provimento dos embargos (Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia); a ministra Rosa Weber já se posicionara pela improcedência dessa acusação e o voto ainda desconhecido, de Teori Zavascki, se for pela absolvição, será o sexto. Numa corte com onze ministros, é o que basta.

O julgamento traz de volta a irracionalidade. Além dos destemperos do presidente da casa — que chegou ao ponto de atrapalhar a leitura do voto do ministro Barroso, cerceando-lhe o próprio exercício da função judicante, como se estivesse diante de um funcionário, não de um igual —, desde ontem as redes sociais estão tomadas pelos donos da verdade, pelos cérebros geniais que asseguram, pelo fio do bigode, a dicotomia: quem é a favor dos réus é bandido, podre, vendido e demente; quem brada pela condenação está do lado do bem.

Curiosamente, nos últimos dois dias, tratando com meus alunos sobre o tema do concurso de pessoas, recordei o dito processo, no particular em que se discute se a teoria do domínio do fato, usada para justificar a condenação, p. ex., de José Dirceu, teria sido bem aplicada ao caso ou não. Para a defesa, alguns réus foram condenados apenas porque exerciam funções de liderança no PT, configurando caso de responsabilidade objetiva. Mas eu deixei muito claro aos meus alunos: jamais tive acesso a qualquer peça do processo em questão, por isso não posso formular juízos conclusivos sobre nada. Limitei-me a comentar o que disseram acusação e defesa, mas saber mesmo, eu não sei. Como regra, não comento processos reais, por uma questão de bom senso e ética.

Causa-me perplexidade que uma pessoa se irrogue o direito, ou mesmo a capacidade, de proclamar a culpa ou a inocência de algum dos réus sem conhecer absolutamente nada do processo, senão aquilo que foi dito pela imprensa — conteúdo esse comprometido desde o nascedouro. O que se diz, portanto, não vai além da convicção pessoal do juiz de fato, do intelectual de folha de jornal, tornando-se mera questão passional tratada como verdade absoluta e indiscutível.

Acho incrível como uma pessoa possa dar um recibo de imbecilidade dessas, tão publicamente. O mais triste, ainda, é que essa atitude tem sido tomada por profissionais do direito, pessoas de quem se poderia exigir um mínimo de razoabilidade por serem ao menos iniciados na matéria. Mas a paixão cega, de fato. E no caso em apreço, ninguém quer raciocinar, apenas bradar aos quatro ventos. Ainda mais porque estamos em ano eleitoral e o processo em questão terá seus custos.

Ah, Deus, por que os brasileiros gostam tanto de viver fora do prumo?

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Certo o Toffoli

A condenação extinta há mais de cinco anos não pode ser utilizada para majorar pena. Com base nesse fundamento, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, retirou o acréscimo de seis meses sobre a pena-base de um condenado por tráfico de drogas. A majoração, em 1/6 da pena, havia sido determinada pela Justiça Federal do Paraná.
Segundo o ministro Dias Toffoli, como o Código Penal determina que os efeitos da reincidência estão limitados a condenações ocorridas até cinco anos antes da infração, não faz sentido que uma pena já extinta há mais tempo seja reconhecida como mau antecedente e sirva para elevar a pena imposta ao condenado.
“A interpretação do disposto no inciso I do artigo 64 do Código Penal [que trata da reincidência] deve ser no sentido de se extinguirem, no prazo ali preconizado, não só os efeitos decorrentes da reincidência, mas qualquer outra valoração negativa por condutas pretéritas praticadas pelo agente”, afirmou o ministro. “Se essas condenações não mais prestam para o efeito da reincidência, que é o mais, com muito maior razão não devem valer para os antecedentes criminais, que é o menos”, concluiu.
Condenado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região a 7 anos e 5 meses de prisão e pagamento de 748 dias multa, o réu recorreu ao Superior Tribunal de Justiça, onde o Recurso Especial foi negado pelo relator, ministro Marco Aurélio Bellize. Segundo o ministro do STJ, a corte entende que, embora o decurso de período superior a cinco anos afaste a reincidência, isso não impede o reconhecimento de maus antecedentes.
A defesa então entrou com Habeas Corpus no STF. Ao analisar o caso, o relator, ministro Dias Toffoli, afirmou que, embora a questão ainda não tenha sido analisada por colegiado do STJ, o que impede o conhecimento do HC pelo Supremo, o caso é de ilegalidade flagrante. Assim, Toffoli não conheceu do HC, mas concedeu a ordem de ofício.
“O homem não pode ser penalizado eternamente por deslizes em seu passado, pelos quais já tenha sido condenado e tenha cumprido a reprimenda que lhe foi imposta em regular processo penal”, afirmou o ministro.
O tema, porém, ainda não foi pacificado pelo STF. A palavra final será dada quando a corte julgar o Recurso Extraordinário 593.818/SC. O caso é Repercussão Geral e nele se discute se as condenações transitadas em julgado há mais de cinco anos devem ser consideradas como maus antecedentes na fixação da pena-base. O relator é o ministro Roberto Barroso.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2014-fev-12/pena-extinta-anos-nao-serve-majoracao-decide-toffoli

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

1.533 anos e 9 meses

Esse inacreditável valor corresponde à pena imposta a dois oficiais do Corpo de Bombeiros do Estado da Paraíba, condenados ontem pela Justiça Militar. Trata-se da maior condenação penal já aplicada no Brasil. E o mais impressionante é que, ao contrário do que com certeza passa em primeiro lugar pela cabeça de todos, não se trata de crimes contra a pessoa, direta ou indiretamente. Não houve homicídio, tortura, latrocínio, estupro nem nada assim. O motivo da condenação foram crimes contra a Administração Pública, praticados centenas de vezes, de acordo com a tese acusatória.

Você encontra aqui o detalhamento do caso.

Como a maior pena abstrata da legislação brasileira é de 30 anos de reclusão (que também é o prazo máximo de cumprimento, ainda que para condenações superiores), mais do que isso somente ocorre na hipótese de concurso de crimes. Naturalmente, quanto maior a quantidade de crimes praticados, maior deve ser a pena. Contudo, estou estranhando o cálculo feito pelo Conselho Especial de Justiça, pois o instituto do crime continuado não permitiria números tão astronômicos.

Recordo-me do "caso Daslu", em que a proprietária, Eliana Tranchesi (já falecida), e seu irmão foram condenados pela prática de crimes tributários a uma pena final de 94 anos e 6 meses de reclusão para cada um. Havia outros réus no mesmo processo, condenado a penas menores, porém elevadas também. Na época, criminalistas criticaram a sentença, por impor uma pena excessiva, incondizente com a natureza dos delitos perpetrados.

Vamos ver, então, o que se dirá da condenação dos bombeiros paraibanos. Porque, meu amigo, com certeza absoluta é de assustar. Estou interessado em ver essa sentença.

Mais: http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2014/02/justica-condena-dois-bombeiros-da-paraiba-15-mil-anos-por-peculato.html

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Novos ventos

Há 13 anos, Laudicéia Mendes Cordeiro, então com 19 anos, subtraiu um cartão de crédito e comprou alimentos e produtos de higiene, falsificando a assinatura da dona do cartão, em uma rede de supermercados de Belém. Um tio dela pagou o prejuízo para a dona do cartão, mas isso não impediu que Laudicéia fosse processada na justiça.
O promotor da 13ª Promotoria de Justiça Criminal, cujo titular é o promotor Cézar Augusto dos Santos Motta, alegou o “princípio jurídico da irrelevância penal do fato” - também conhecida no jargão penal como bagatela imprópria -,pedindo ao juiz que o crime de furto fosse absorvido pelo de estelionato. O pedido foi assinado em novembro do ano passado pelo promotor Alexandre Manuel Lopes Rodrigues, que na ocasião substituia Cézar Augusto Motta. 
Agora, veio a decisão do juiz Sérgio Augusto Lima, da 12ª Vara Penal de Belém, que aceitou a tese levantada pelo Ministério Público, determinando a aplicação do princípio jurídico da “irrelevância penal do fato”. A decisão é inédita no Pará e somente dois outros estados da Federação já haviam aplicado esse princípio. Lima declarou extinta a punibilidade da acusada. O princípio da bagatela é gênero, cujas espécies são o princípio da insignificância (bagatela própria) e o princípio da irrelevância penal do fato (bagatela imprópria).
No caso em questão, como na data dos fatos - no ano 2.000 - o valor do prejuízo superava, em muito, o do salário mínimo, que era de R$ 151,00, não seria possível a aplicação do princípio da insignificância, que exclui a tipicidade material do fato. “Porém, analisando as circunstâncias objetivas do fato, somadas às condições pessoais da acusada, verifica-se a possibilidade evidente de aplicação do princípio da irrelevância penal do fato, que torna desnecessária a pena, extinguindo a punibilidade do agente”, disse o promotor de Justiça em suas alegações finais.
Segundo o Ministério Público do Estado, a acusada preenchia todos os requisitos para a aplicação do princípio da irrelevância penal do fato, entre eles: houve ressarcimento do prejuízo, ainda que sido pelo tio da vítima; a acusada tinha 19 anos, um bebê de quatro meses, estava desempregada e comprou apenas alimentos e produtos de higiene. Além disso, pela análise dos documentos constantes dos autos é possível perceber que ela se arrependeu do fato e se regenerou, pois hoje é servidora concursada da prefeitura de Portel, cedida ao Poder Judiciário do município.
O caráter de Laudicéia como servidora pública foi atestado em documentos assinados por quatro juízes de direito que atuaram na comarca e que destacam a eficiência e retidão dela na função. A prefeitura também informou que ela concluiu o estágio probatório com nota máxima (10) em todos os quesitos.
Impressionado e satisfeito com a decisão, além do prazer de ver envolvido nela, pelo Ministério Público, o amigo Alexandre Rodrigues. Até que enfim vemos o direito penal bem aplicado.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Licença, que eu quero passar

O paciente que desiste da vida, preferindo morrer a se submeter à cirurgia, tem a sua autonomia da vontade reconhecida na Resolução 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina. Esta manifestação, chamada pela norma de Testamento Vital, diz que não se justifica prolongar um sofrimento desnecessário em detrimento da qualidade de vida do ser humano.
O entendimento levou a 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a confirmar decisão que garantiu a um idoso o direito de não se submeter à amputação do pé esquerdo, que viria a salvar sua vida. Assim como o juízo de origem, o colegiado entendeu que o estado não pode proceder contra a vontade do paciente, como pediu o Ministério Público, mesmo com o propósito de salvar sua vida.
Além da Resolução do CFM, o relator da Apelação, desembargador Irineu Mariani, afirmou no acórdão que o direito de morrer com dignidade e sem a interferência da ciência (conhecida como ortotanásia) tem previsão constitucional e infraconstitucional.
Explicou que o direito à vida, garantido pelo artigo 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade humana, previsto no artigo 2º, inciso III, ambos da Constituição Federal. Isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. Entretanto, em relação ao seu titular, o direito à vida não é absoluto, pois não existe obrigação constitucional de viver. Afinal, nem mesmo o Código Penal criminaliza a tentativa de suicídio.
No âmbito infraconstitucional, Mariani citou as disposições do artigo 15 de Código Civil: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica’’.
‘‘Nessa ordem de ideias, a Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter à cirurgia ou tratamento’’, concluiu, sem deixar de considerar que o trauma da amputação pode causar sofrimento moral. O acórdão foi lavrado na sessão dia 20 de novembro.
Álvará judicialO Ministério Público ingressou na Justiça estadual com pedido de Alvará Judicial para suprimento da vontade do idoso e ex-portador de hanseníase (lepra) João Carlos Ferreira, que mora no Hospital Colônia Itapuã (HCI), localizado em Viamão, município vizinho a Porto Alegre.
Diagnosticado com necrose no pé esquerdo desde 2011 e em franco definhamento, ele vem recusando a amputação, cirurgia que poderia salvar a sua vida. Se não o fizer, corre o risco de morrer por infecção generalizada. O idoso, de 79 anos, não apresenta sinais de demência, mas foi diagnosticado com quadro de depressão.
Conforme o laudo da psicóloga que o atende, ‘‘o paciente está desistindo da própria vida vendo a morte como alívio do sofrimento”. Assim, segundo o MP, o paciente estaria sem condições psíquicas de recusar o procedimento cirúrgico. Em síntese, a prevalência do direito à vida justifica contrapor-se ao desejo do paciente.
O juízo da Comarca de Viamão indeferiu o pedido de amputação, negando a concessão do Alvará. Argumentou que o paciente é pessoa capaz, tendo livre escolha para agir e, provavelmente, consciência das eventuais consequências. Assim, não cabe ao estado tal interferência, ainda que porventura possa vir a falecer. Desta decisão é que resultou recurso de Apelação ao TJ-RS.
Acessando a notícia do ConJur, você encontra links para a resolução do CFM e para o acórdão do tribunal gaúcho. Caso bem interessante. E, a propósito, a decisão da corte foi unânime.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Demonização do "juiz social"?

No dia em que vou falar um pouco sobre criminalização dos movimentos sociais, objeto de estudo do grupo de pesquisa que coordeno no CESUPA, tomo conhecimento de um estranhíssimo caso no qual um juiz federal do Amapá foi demandado em processo disciplinar perante o Conselho Nacional de Justiça. As acusações contra ele são: atrasos nas audiências, excesso de audiências, chamamento ao processo de quem não é parte, descumprimento de decisão judicial com trânsito em julgado, atuação política e denunciação caluniosa.

Mas eis que um Procurador da República com conhecimento pessoal de alguns fatos e seus protagonistas resolveu escancarar o caso, dizendo que o juiz João Bosco Costa Soares estaria sendo perseguido por ser honesto e se preocupar demais com questões sociais.

Nada sei sobre os fatos e, por isso, não terei a leviandade de tecer comentários. Mas como o procurador Manoel Pastana afirma que "este caso precisa ser conhecido pelos profissionais e acadêmicos da área jurídica, bem como pelos cidadãos que se preocupam com a Justiça", resolvi repercutir. Os interessados podem ler a notícia, inteirar-se melhor do caso e assim formar melhor opinião.

Aliás, não é a primeira vez que menciono Pastana aqui no blog. Ele é paraense da Ilha do Marajó, tem uma história de superação pessoal, mas já conquistou as suas próprias inimizades. Abaixo, o conjunto de quatro postagens que lhe dizem respeito:

  • http://yudicerandol.blogspot.com.br/2012/05/estardalhaco-juridico-parte-1.html
  • http://yudicerandol.blogspot.com.br/2012/05/estardalhaco-juridico-parte-2.html
  • http://yudicerandol.blogspot.com.br/2012/05/estardalhaco-juridico-parte-3.html
  • http://yudicerandol.blogspot.com.br/2012/05/estardalhaco-juridico-parte-4.html

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A família é mais importante do que a caserna

Soldado que é arrimo de família e abandona o Serviço Militar por conta das dificuldades financeiras da família não deve ser condenado por deserção. Essa foi a conclusão do plenário do Superior Tribunal Militar, que por maioria rejeitou recurso do Ministério Público Militar e manteve decisão de primeira instância da Auditoria Militar do Rio de Janeiro, absolvendo um soldado.

Em sua defesa, o oficial afirmou que desertou por conta das dificuldades financeiras. Ao atuar como pedreiro durante tal período, ele recebia salário maior do que os proventos recebidos no serviço militar, insuficientes para cobrir as despesas da família, segundo seu depoimento. Ao ajuizar o recurso, o Ministério Público Militar alegou que o réu não comprovou a condição de arrimo de família, considerada excludente de culpabilidade neste caso.

Relatora do recurso, a ministra Maria Elizabeth apontou para os testemunhos que comprovaram tal condição. De acordo com os depoimentos, o soldado era o responsável pelas despesas dos dois filhos biológicos e por uma terceira criança, seu filho de criação. Ela citou também a decisão de primeira instância, tomada de forma unânime pelo colegiado composto por um juiz e três militares.

Ao  votar pela absolvição do réu, a ministra disse que a hierarquia e disciplina, princípios que norteiam as Forças Armadas, não preponderam quando colocados ao lado de outros igualmente importantes. Na situação em questão, de acordo com ela, o dever militar — interesse de cunho funcional — não pode se sobrepor à proteção familiar, colocado por ela como um interesse de relevância social, o que justifica a absolvição do soldado. Com informações da Assessoria de Imprensa do STM.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-out-31/stm-absolve-soldado-desertou-constatar-ele-arrimo-familia

Muito lúcida a decisão, que nos dá o alento de ver que mesmo o Direito Penal Militar está sendo cada vez mais interpretado à luz dos princípios constitucionais, o que chega a ser um truísmo dizer, mas por incrível que pareça não é algo tão certo na cabeça de muita gente. Afinal, sempre caberia o argumento de que o réu poderia desligar-se da vida militar pelos meios corretos. Mas comida é algo de que se precisa todo dia e nem sempre dá tempo de esperar a conclusão de trâmites burocráticos. No mais, sabe lá se alguém daria importância e prioridade ao pedido.

Outro aspecto que chama a atenção na notícia é o fato de o réu ganhar mais como pedreiro do que como militar. É grave o desapreço por essa categoria que, ao fim e ao cabo, é de trabalhadores, também, mesmo que não se enxergue desse modo. E como todo trabalhador, merece respeito. Quando o sub-emprego eventual gera receita mais vantajosa e certa de que uma função pública, algo de muito preocupante está acontecendo no país.

Pelo senso de humanidade e realidade, parabéns ao STM.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Exageros brasileiros

"A inserção da fotografia do acusado na peça da denúncia só é admissível se houver necessidade específica, devidamente demonstrada e fundamentada. Afinal, o Estado não pode ser o violador do direito de imagem, garantido pela Constituição."

Com esse entendimento, a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul confirmou decisão do primeiro grau, que mandara excluir a fotografia do réu da denúncia, porque compete ao réu determinar o uso de sua imagem.

Quem me conhece sabe o quanto prezo as liberdades individuais e o quanto me bato por um direito e um sistema judiciário que respeitem a constituição. Por outro lado, irrito-me profundamente com o excesso de prurido em torno do tema dos direitos, que reputo uma consequência de nossa incapacidade de amadurecer frente ao nosso passado ditatorial. Um fenômeno social que se repete no modo como muitas famílias, hoje, educam seus filhos: lutou-se tanto por liberdade que, no dia em que conseguiram alcançá-la, tal qual o cachorro que corre atrás do automóvel, não souberam o que fazer com ela.

No caso dos direitos, o grande problema é que sua consagração não trouxe junto a noção de que deveres fazem parte do pacote. Ou como dizia Montesquieu, "até a liberdade deve ser restringida, a fim de ser possuída".

Sou totalmente avesso ao sensacionalismo contra acusados de crimes e defendo que os mesmos têm o direito de preservar a sua imagem frente a esses programas tétricos de TV, matérias jornalísticas e congêneres. Em geral, eles são obrigados a mostrar o semblante para as câmeras e até a conceder entrevistas. Policiais seguram seus rostos para cima, a fim de que sejam filmados. É essencial que sejam vistos, para que possam ser reconhecidos no futuro. Isso é violência.

A denúncia, contudo, é a peça por meio da qual o Ministério Público demonstra a sua convicção preliminar em torno de certo crime e pede que o indivíduo seja julgado e condenado pelo fato. Dados qualificativos são apresentados: nome completo, filiação, sinais particulares, etc. Por que não uma fotografia? É somente mais uma forma de qualificação, para cumprir a finalidade da lei: assegurar que a pessoa certa está sendo processada e não um homônimo ou alguém parecido. Mas se o direito à imagem é assim tão absoluto, então até mesmo a qualificação pessoal deveria ser questionada. E aí como viabilizar a ação penal?

E em relação a perícias? Laudos de exame de corpo de delito ou reconstituições, p. ex., hoje cada vez mais documentados em mídia eletrônica. Eventualmente, o acusado pode aparecer nessas imagens. Elas não podem ser usadas? Não posso capturar uma tela para incluir no meu arrazoado, para tentar demonstrar algum aspecto relevante? Ou, no máximo, tenho que borrar a imagem? São diversos questionamentos, problemas que simplesmente não existiriam se as pessoas fossem um pouco mais razoáveis.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que tantas contribuições já deu ao avanço do direito penal, agora se excedeu, a meu ver. Lamento muito por essa decisão exagerada, que tomo por um sintoma de nossa sociedade atual, onde todo mundo é altamente suscetível, se ofende com tudo, se magoa, sofre, chora, arranca os cabelos e exige compreensão de Deus e do mundo. Em suma, um cenário em que todo mundo tem muitos direitos e dever nenhum.

Anote aí: isso não vai dar certo.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-out-27/foto-reu-denuncia-agride-direito-fundamental-decide-tj-rs

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Black-bloc-reacionário-ou-não

Foi assim que Caetano Veloso (71) quis ser fotografado no último dia 5 de setembro: com uma camiseta preta ocultando o rosto, para demonstrar seu apoio ao movimento Black Bloc, que tem tirado o sono das autoridades em diferentes países, o Brasil inclusive. E a foto foi feita na sede do grupo Mídia Ninja, um movimento de jornalistas que se consideram ativistas sociopolíticos e uma via alternativa à imprensa tradicional. Junto com sociólogos e antropólogos, Caetano mandou uma carta ao secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, João Mariano Beltrame, cobrando o fim da violência policial contra populares, nas incessantes manifestações que tem ocorrido na capital daquele Estado.

Moderno, audacioso e libertário esse Caetano, não? Contra a ordem estabelecida! Difícil crer que se trata do mesmo Caetano Veloso que, há duas semanas, entrou no olho do furacão na polêmica sobre as biografias não autorizadas.

Para quem não sabe, tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação direta de inconstitucionalidade que tenta expurgar do ordenamento jurídico dispositivos do Código Civil com base nos quais uma pessoa, ou seus descendentes, pode proibir a publicação de biografias, a fim de preservar a privacidade. O confronto se dá com a liberdade de expressão e o direito à verdade histórica, este um tema de crescente interesse não apenas para juristas, mas para a sociedade como um todo. O caso ganhou maior repercussão porque a Min. Cármen Lúcia, relatora do processo, marcou uma audiência pública para debater a matéria.

Como ninguém pode ousar se meter com a imprensa, a confusão está armada. Tenho lido alguns artigos muito interessantes e elegantes sobre o tema e qualquer hora dessas farei uma postagem a respeito. O fato é que Caetano Veloso é um dos expoentes do movimento "Procure Saber", que, sob diferentes argumentos humanitários, quer influenciar o STF a manter o Código Civil como está.

Caetano não é o único bipolar. Sua ex-esposa, a produtora Paula Lavigne, que tornou público o seu "orgulho" frente à atitude "sensacional" do "painho", é quem está à frente do "Procure Saber".

Veloso e Lavigne, assim, revelam-se maus líderes da campanha, cuja baixa credibilidade fica ainda mais comprometida diante de uma postura tão contraditória, ensejando a conclusão de que, no final das contas, a suposta ideologia é presidida mesmo interesse pessoal. Caetano acaba sendo o mais achincalhado de todos os defensores da lei atual, porque foi justamente ele que, no embate contra a ditadura militar, entrou para a história com a frase "é proibido proibir".

Estou achando bem divertido o bate-boca, que acompanho com interesse porque adoro biografias.

Fonte: http://extra.globo.com/noticias/brasil/caetano-veloso-cobre-rosto-com-pano-preto-em-apoio-ao-black-bloc-9848055.html