domingo, 30 de julho de 2017

O irresponsável mais do mesmo

Para cumprir a missão incessante de criticar o "governo" tucano do Pará ― que, de fato, merece todas as críticas; a questão é que, no contexto, tais críticas têm óbvias finalidades eleitoreiras ―, a coluna Repórter Diário deste domingo começa assim:

"A presença de tropas federais no Rio de Janeiro há três dias mudou a cara da cidade e é saudada por todos os moradores como esperança para a crescente onda de violência."

Segue a crítica ao cantor e dublê de governador (cassado) do Pará, que não pede ajuda federal para não passar recibo de incompetência em relação à segurança pública. Vou-me concentrar só nesse trecho da nota.

Até um leigo como eu pode afirmar que tudo nela transpira antijornalismo. Vejamos: (1) a linguagem do texto é panfletária, sem a esperada isenção jornalística; (2) a afirmação de que a simples presença de tropas federais mudou tudo em apenas três dias é feita para sugerir que essa medida é a oitava maravilha do mundo e que, se aplicada em Belém, iríamos do inferno ao paraíso quase que instantaneamente, o que é falso; (3) é no mínimo estranho falar em "crescente onda de violência" em uma capital que, há décadas, tem sido apontada como extremamente violenta.

Mas eu gostaria de ressaltar, acima de tudo, isto: a irresponsabilidade da nota está em promover uma política militarizada de segurança pública, em um nível superior ao já existente, a cargo da Polícia Militar estadual. A presença de tropas federais e tanques nas ruas é uma situação extraordinária e nada desejável, que mergulha os munícipes em um cenário bélico bastante desagradável. Além disso, segurança pública de rotina e atividade militar são realidades díspares. A militarização da vida comum tem custado caro aos cidadãos, por todo o país. Mas, na nota seguinte, o filho do dono do jornal e futuro recandidato ao governo, atual ministro do governo golpista, é citado como "cidadão responsável e ciente da situação insustentável" porque formalizou um pedido de intervenção militar no Estado.

Por fim, temos o quarto e, a meu ver, mais grave pecado da nota, que é mentir descaradamente. O jornalista pode apontar que fonte foi consultada para afirmar, de modo tão peremptório, quais são os sentimentos dos cariocas em relação às tropas federais? Já existe alguma consulta nesse sentido? Se não há, como pode o colunista afirmar que tais sentimentos existem?

Piora: quem são esses "todos os moradores" tão cheios de esperança? Os moradores dos bairros nobres, das regiões turísticas, das praias, que são os verdadeiros destinatários da "proteção" do Estado? Alguém se deu ao trabalho de perguntar aos moradores das periferias, e sobretudo das favelas, usualmente acostumados às abordagens policiais agressivas (esculachos), à suspeição e à humilhação, se a esperança chegou também a seus lares?

O blindado do Exército passou toda a manhã de ontem no Largo do Machado.
Há apoio popular? Sim. Mas também há reclamações. Esqueça a unanimidade.
Foto: Domingos Peixoto/ Agência O Globo
Duvido muito, porque essas populações não têm voz. São elas as grandes atingidas pela militarização da vida. São os suspeitos preconcebidos, por força da cor da pele, das roupas, do pouco dinheiro, da nenhuma influência, da região de moradia, etc. A opinião deles não conta para os elaboradores de políticas públicas que, no fundo, são tão turísticas quanto as praias cariocas ― políticas destinadas a assegurar que os cidadãos de bem possam transitar por seus calçadões, estacionar seus carros, frequentar seus points sem risco de encarar a bandidagem que vem do outro lado.

Esta é uma questão grave, mas não interessa para a coluna dominical do Diário do Pará. Aqui basta a crítica, mesmo que ela venda falácias e ilusões para o eleitor desavisado.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Um pouco da seletividade penal brasileira

Um dos conceitos mais centrais para o estudo do campo penal é o de seletividade. Aos estudiosos, há ótimas referências para entender a questão mas, por todas, recomendo a obra Direito penal brasileiro, I, de Eugenio Raúl Zaffaroni et alli, publicado pela Editora Revan.

Zaffaroni explica que a seletividade é uma realidade inafastável de qualquer ordenamento penal, haja vista que todas as agências punitivas possuem limitações infraestruturais. Logo, nunca seria possível instaurar persecução criminal em relação a todos os fatos criminosos em tese que ocorrem, dando origem ao conceito de cifra oculta da criminalidade. Contudo, ao lado dos problemas infraestruturais, existe a questão das finalidades que movem as agências punitivas, as quais não são isentas. A despeito do discurso oficial de proteção dos bens jurídicos, na verdade elas atuam para manter a dinâmica de forças desiguais que já existem na sociedade, como bem explicam autores como Juarez Cirino dos Santos e Nilo Batista.

Daí surge uma outra seletividade, que é de natureza político-criminal, clandestina, porque as agências punitivas jamais admitirão que são comprometidas com as classes hegemônicas. Aquela seletividade quem se tornará cliente do sistema penal, mesmo que inocente, e quem está imune a ele, mesmo que claramente culpado.

Esta é uma questão muito séria, mas que no Brasil de hoje, para variar, encontra-se severamente deturpada por causa da crise político-partidária. Com efeito, devido à recorrência do argumento de que o Ministério Público, o judiciário e a imprensa tratam com ferocidade as imputações criminais aos petistas e com leniência os malfeitos dos tucanos, inclusive isentando-os de responsabilidade ou arquivando inquéritos, a intelligentsia à brasileira reagiu passando a negar a própria existência da seletividade, como se fosse desculpismo de corruptos, comprando o discurso alucinado de isenção das agências punitivas.

Que a seletividade é real, temos exemplos diários. Selecionei aqui um único caso, para demonstrar. Vou transcrever dois textos sobre ele, naturalmente indicando a fonte, e em itálico colocarei alguns breves comentários.

*****

Primeira matéria: http://www.revistaforum.com.br/blogdorovai/2017/07/23/preso-com-130-quilos-de-maconha-e-199-municoes-de-fuzil-filho-de-desembargadora-e-libertado/

Preso com 130 quilos de maconha e 199 munições de fuzil, filho de desembargadora é libertado

O jornalista Alcemo Góis informa em sua coluna do jornal O Globo algo que merece ampla apuração, mas que provavelmente vai ficar na notinha e ser tratado como algo da vida. Mais ou menos como no caso do helicóptero pertencente à família do senador Perrella. [O blogueiro se refere ao famosíssimo caso do "helicoca", helicóptero pertencente à empresa dos filhos do senador por Minas Gerais Zezé Perrella, apreendido com 445 quilos de pasta base de cocaína em novembro de 2013. Como a pasta base pode ser processada para produzir uma quantidade muito maior de cocaína em pó, estima-se que a carga valia 50 milhões de reais. Perrella é um dos grandes aliados do senador Aécio Neves. O piloto assumiu a culpa sozinho e, embora devesse ser caracterizado como um grande narcotraficante, já está em liberdade. Enquanto isso, temos pessoas presas por terem sido flagradas portando 2 gramas de maconha. A tese de que eram usuárias foi recusada e essas pessoas acabaram na cadeia como traficantes.]
  • Para saber mais sobre o caso, consulte, p. ex.: https://oglobo.globo.com/brasil/helicoptero-da-empresa-dos-filhos-de-senador-apreendido-com-quase-meia-tonelada-de-pasta-de-cocaina-10878457 e a série de reportagens publicada em http://www.diariodocentrodomundo.com.br/categorias/especiais-dcm/helicoca/.


Segundo Góis, o plantão judiciário do TJ-MS, soltou na última sexta-feira Breno Fernando Solon Borges, de 37 anos. Ele teria sido preso com 130 quilos de maconha, 199 munições de fuzil calibre 762 e uma pistola nove milímetros. E tinha contra ele dois mandados de prisão, que foram suspensos pela Justiça. [Observe para a imensa quantidade de droga e de munições, além de uma arma. Nos termos do Estatuto do Desarmamento, é crime não apenas a posse ou o porte ilegal de armas, mas também de munições. Como a pistola era uma 9 mm e a munição era para fuzil, pode-se inferir que a carga visava suprir algum arsenal. Tanto a pistola quanto fuzis são armas de uso restrito às Forças Armadas ou a agentes de segurança pública, o que torna o crime mais grave, com penas de 3 a 6 anos de reclusão e multa, nos termos do art. 16 da Lei n. 10.826, de 2003. Embora se trate se crimes em tese muito graves, e de serem acusações distintas, todos os mandados de prisão foram suspensos.]


Ainda segundo o jornalista, Breno seria filho da desembargadora Tânia Garcia de Freitas Borges, presidente do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-MS) e integrante do Pleno do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul.

O Tribunal Regional Eleitoral, a saber, é entre outras coisas, quem conduz o processo eleitoral e que julga processos envolvendo candidatos.

Ou seja, aqueles que dizem que os problemas do Brasil são os políticos e a corrupção deveriam olhar melhor para o judiciário.

Segunda matéria: http://www.revistaforum.com.br/blogdorovai/2017/07/23/filho-da-desembargadora-solto-na-madrugada-de-sexta-e-considerado-de-alta-periculosidade-pela-pf/

Filho da desembargadora solto na madrugada de sexta é considerado de alta periculosidade pela PF

O blogue foi atrás de mais informações sobre o caso da controvertida libertação do engenheiro Breno Fernando Solon Borges, 37 anos, filho da presidente do Tribunal Regional Eleitoral e integrante do Tribunal Pleno do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, desembargadora Tânia Garcia de Freitas Borges.

Como já dito no post anterior, ele foi preso por portar, entre outras coisas, 130 quilos de maconha, 199 munições de fuzil calibre 762, de uso exclusivo das forças armadas e só utilizado por facções criminosas como PCC, e uma pistola nove milímetros. 


Na imprensa do estado, quem tem tratado do assunto é o blogue O Jacaré, do jornalista Edvaldo Bitencourt. Pela leitura de suas matérias a história fica ainda mais cabeluda do que parecia no post que publiquei há pouco.

A saga de Solon Borges com a Justiça começou em 8 de abril, quando ele, a namorada, Isabela Lima Vilalva, e o funcionário da sua serralheria, Cleiton Jean Chaves, foram presos. [A prática de crimes em situação de concurso de agentes também é uma circunstância de maior gravidade, nos termos da lei, que, no entanto, não parece ter sido sopesada na decisão judicial que concedeu a liberdade.]

Na ocasião, o juiz da Vara Única de Água Clara, Idail de Toni Filho, decretou sua imediata prisão no presídio de Três Lagoas, mas na última sexta-feira, na madrugada, o desembargador de plantão José Ale Ahmad Netto, suspendeu os dois mandados de prisão e determinou o cumprimento do habeas corpus para interná-lo numa clínica médica particular. [O Brasil aplica uma política de guerra em matéria de drogas. Os discursos punitivistas mais radicais, que são usualmente sustentados pelas agências punitivas, repudiam com virulência a tese de que drogas devem ser tratadas como questão de saúde pública e não de segurança pública. Neste caso específico, porém, aplicou-se a orientação de saúde.]

No seu despacho, o magistrado ainda criticou os dois juízes que decretaram a prisão preventiva do filho da desembargadora. E não levou em consideração que a Polícia Federal considera o filho de sua colega de toga alguém de alta periculosidade. [Criminólogos críticos repudiam a ideia de "periculosidade" como fundamento da persecução criminal. No entanto, esse é justamente um dos argumentos mais comuns na atuação histérica das agências punitivas. Por isso, é no mínimo estranho quando a periculosidade é ignorada com tanta veemência.]

Por conta dessa decisão de José Ale Ahmad Neto, o filho da sua colega não deve mais ser julgado por associação ao tráfico e venda de armas de grosso calibre, mas por ser doente e usuário de drogas. [Uma solução para acalmar a opinião pública: as agências fingem estar cumprindo a lei e só o fizeram porque se viram forçadas a isso, o que chamamos de "criminalização por comportamento grotesco" ― o crime é tão grave que não dá para fazer vista grossa. Na verdade, estão protegendo o acusado privilegiado. Em vez de cadeia, internação em clínica particular, com acesso a todo conforto que a família pode proporcionar-lhe.]

O local do tratamento de Breno ainda não foi definido. O Tribunal de Justiça determinou que fosse em Campo Grande, apesar do pedido da mãe para que se realizasse em Atibaia (SP).

Só que as duas clínicas da Capital, Nosso Lar e Carandá, segundo a defesa, informaram que não possuem vaga para receber o réu.

Segundo o blog O Jacaré, a história daqui para frente passa a ser um mistério, já que a defesa de Breno pediu, e os desembargadores decretaram, segredo de Justiça no caso. [Outro fato inusitado. A regra é que processos criminais sejam públicos, mas motivos específicos podem determinar a decretação do segredo de justiça: situações envolvendo crianças e adolescentes; crimes sexuais; investigações que envolvam quebra de sigilo de dados pessoais ou bancários ou que versem sobre organizações criminosas. Não está claro qual seria o fundamento no caso deste acusado que, afinal, é apenas um usuário de maconha, segundo o desembargador.]

Entre outras coisas, as investigações realizadas pela Polícia Federal apontam que Breno teria participado ativamente da orquestração para garantir a fuga de Tiago Vinicius Vieira, chefe de uma facção criminosa, em março deste ano do presídio de Três Lagoas. [Parece uma acusação de crime muito grave, não? Para o judiciário do Mato Grosso do Sul, não é.]

O caso revela muito do que é o Partido da Justiça Brasileira. Uma lei pra alguns, outra lei para muitos.

[Agora você se informa melhor e tira as suas conclusões.]

OAB: e pur si muove

Sou extremamente crítico ao modo como são realizados os concursos públicos no Brasil ― atividade que se tornou uma rentável indústria e, como tal, incompatibilizada com a valorização do conhecimento científico. Sem meias palavras, concursos públicos são imbecilizantes, mormente no que tange às provas objetivas. As subjetivas favorecem outras habilidades além da memorização, mas se essas habilidades não tiverem peso relevante na correção, de nada adiantará.

Como demonstra o histórico deste blog, sou amplamente favorável ao exame da Ordem, questionando entretanto o modo de sua execução. Quanto mais se aproxima do estilo concurso público, pior. No entanto, há uma grande diferença entre os concursos, que se esgotam em si mesmos, pois têm uma finalidade específica de selecionar para o provimento de certo número de cargos, e o exame da OAB, que pode ser posto em uma perspectiva temporal. Com efeito, ainda que mude a instituição executora, trata-se da mesma instituição comandando um processo de verificação de proficiência, sem caráter classificatório além do "apto". Com isso, podemos identificar os movimentos que a OAB faz para adequar seu exame a diferentes contextos.

Antes da unificação nacional (2010), já observávamos um fenômeno curioso. Os candidatos consideravam certa disciplina mais fácil e se inscreviam nela para a segunda fase (conhecimentos específicos). O aumento da demanda fazia a OAB reagir e, de repente, aquela disciplina oferecia uma prova complicadíssima. Daí os candidatos em busca de facilidade migravam para a área menos exigente, de acordo com os últimos certames. Com a unificação, nossa instituição ganha maior capacidade para tomar decisões sobre a estrutura da prova e, com isso, implementar uma visão específica de política profissional.

Noticia-se hoje que a OAB surpreendeu candidatos e a indústria concurseira com uma prova de estrutura diferente (veja matéria aqui). Basicamente, suprimiu questões das áreas de ética (deontologia) e direitos humanos, transferindo-as para processo civil, processo penal e direito tributário. Vale dizer, reduziu o campo da formação humanista e aumentou o das disciplinas profissionalizantes, notadamente processo. Sintomático, claro. Faz-me pensar se isso não favorece, em última análise, um profissional mais técnico e menos cidadão. Isso me preocupa, dada a imagem que a profissão de advogado já possui. Segundo a matéria, as questões de ética (na verdade, não é apenas ética, mas normas próprias da atividade advocatícia) estavam voltadas a temas técnicos, tais como sociedade de advogados e mais processo. 

Não tenho como saber se o movimento feito pela OAB indica, realmente, um redesenho na expectativa de perfil profissional ou se foi algo mais imediatista: gerar uma prova mais difícil ou talvez, apenas, surpreender, sinalizando que não adianta buscar zonas de conforto. Certamente, a prova do XXIII Exame de Ordem Unificado, aplicada ontem, mandou um recado para os cursinhos: reinventem-se, porque nós estamos vivos e vamos sempre buscar abordagens diferentes. E vocês nunca saberão quando. A velha estratégia de buscar o acervo de provas já aplicadas para fazer prognósticos sobre o que tem maior propensão de ser cobrado na próxima acaba de ficar mais insegura.

Não sou especialista nesse tipo de avaliação. Esta postagem mais não é do que uma mera opinião, mas acredito que o maior impacto desse tal recado não recai sobre os candidatos. Afinal, estes dispõem de um edital e precisam se preparar para o que vem pela frente. O impacto maior recai sobre a indústria concurseira, que vende um serviço com todo um marketing de suposta eficiência, medida por índices de aprovação, e precisará agir com maior inteligência doravante. Só macete não vai adiantar.

Termino como comecei: provas são imbecilizantes quando enfatizam, sobretudo, a habilidade de memorização, forçada por conteúdos programáticos gigantes que são sondados por meio de provas acríticas, fortemente presas à letra da lei. Ao fim e ao cabo, provas construídas sobre temas instigantes, sobre a realidade da vida ― e não aquela baboseira de Caio, Tício e Mélvio enredados em uma trama rocambolesca ―, que ensejam a tomada de decisão e a assunção de posturas, seguem sendo um caminho mais garantido para a formação de bons profissionais. E de bons cidadãos. 

Nossos alunos precisam pensar de verdade, não apenas reproduzir. Trata-se de uma estratégia tão vetusta quanto eficaz.

sábado, 22 de julho de 2017

Um contratempo

Imagine que você é um homem na casa dos 30 anos e está vivendo o seu melhor momento. Seu trabalho lhe rendeu dinheiro, fama internacional e prêmios. Você é casado com uma mulher apaixonada e tem uma filha linda. E para temperar tudo, você tem uma amante, que também é casada e, por isso, está feliz e satisfeita em ser apenas a outra. Ninguém lhe cobra nada; você tem as rédeas de sua excelente vida. Aí um belo dia você acorda em um quarto de hotel, sem que haja uma boa explicação para você estar lá, e sua amante está morta, cercada de muito dinheiro. Com portas e janelas trancadas por dentro, você é o único suspeito, porque teve a oportunidade e o motivo (impedir a exposição). Agora você corre contra o tempo para provar sua inocência mas, para isso, terá que convencer as pessoas de que havia uma terceira pessoa no quarto, tese esta que se mostra contra todas as evidências.

Esta é uma sinopse de Um contratempo (Contratiempo), filme espanhol de 2016 dirigido por Oriol Paulo. Embora o cinema espanhol seja renomado, o filme aqui mencionado é tão fora de circuito que demora um pouco encontrar informações sobre ele na internet. Não se trata de um beneficiado pela mídia da indústria, que incensa quem paga e quem faz porcaria e ignora grandes talentos.

Um contratempo é um suspense muito bem construído. De saída, já proporciona o prazer de sairmos do circuitão estadunidense. Basicamente, temos o protagonista Adrián Doria (Mario Casas) sendo entrevistado por uma célebre advogada criminalista, Virginia Goodman (Ana Wegener), que o prepara para ser interrogado, na condição de suspeito. Ela o exorta a falar a verdade e, após um entrevero, olha-o bem na cara e adverte: "Eu sou mais esperta que você". Enquanto Doria narra os fatos, vemos em flashback o que se deu naqueles dias fatídicos.

A cena do crime sugere uma hipótese muito plausível.
Não se trata, por certo, de nenhuma revolução no gênero. Vemos lá uma interação meio novelesca entre os personagens (mas a vida real costuma nos surpreender com suas pegadinhas), a exploração de um tema recorrente (vingança), permeado por um acréscimo bastante plausível (a perda de confiança nas instituições públicas) e, inclusive, o recurso linguístico de exibir, ao longo da projeção, breves pistas da verdade, que quando finalmente é revelada você consegue identificar. O diretor, por sinal, insere alguns frames explicativos, a fim de facilitar as coisas para os menos astutos, o que pode ser incômodo para alguns, mas não compromete a qualidade da narrativa.

Um cervo no meio da estrada e um rapaz no outro carro:
o drama está só começando
Um contratempo, se não revoluciona, certamente é uma execução muito competente do estilo suspense criminal, com suas reviravoltas e a clara intenção de, ao final, deixar o público de boca aberta exclamando "ooooooooooh!". Mas um espectador atento é capaz, se não de descobrir toda a verdade, ao menos de se aproximar bastante dela (p. ex. quando um certo personagem pede que seja feita uma marcação em um mapa). Isso não impede, porém, de você curtir o desenrolar dos acontecimentos e o cumprimento dos propósitos a que se lançaram dois importantes elementos da trama, que se encerra em um momento em que você pode apenas especular acerca das consequências.

E não é que ela era, mesmo?
Encontrei este filme por acaso navegando pela Netflix. Como muitos fãs do gênero, assim como eu, certamente nunca ouviram falar dele, achei por bem fazer esta recomendação. O filme é entretenimento de qualidade, especialmente por sua capacidade de produzir empatia em relação a alguns personagens, característica que considero uma virtude em obras ficcionais. Aproveite.

Na porrada

Um dos textos mais conhecidos de Fernando Pessoa (no caso, sob o heterônimo de Álvaro de Campos) é o "Poema em linha reta", que inicia com versos célebres:


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


Abstraindo a ironia do poema, estou me sentindo exatamente o oposto do que essas palavras dizem ― muito mais perto do que elas provavelmente pretendem dizer. Se bem que o poeta criticou a hipocrisia e o meu problema é um pouco diferente. Talvez cegueira seja o termo. Uma cegueira caracterizada não pela impossibilidade, mas pela recusa deliberada em enxergar as próprias ações e os sentimentos alheios.

Também eu tive 20 anos. Também eu me acreditei sábio, infalível e melhor do que os outros(*), embora provavelmente isso fosse mais defesa do que convicção. Havia em mim a centelha da compreensão de todas as minhas fraquezas, mas eu acreditava estar certo e o resto do mundo, errado. Já naquela época me diziam que isso era marra de adolescente e eu me ofendia. Porque eu era um adolescente ou pós-adolescente. Hoje, percebo que as pessoas tinham mesmo razão. A vida também é feita de obviedades terrivelmente repetitivas.

Há pessoas que só aprendem apanhando. Mas, às vezes, por amor ou tibieza, ou por qualquer um dos outros motivos que conduzem nossas vulnerabilidades, nós evitamos que apanhem. Nós tentamos os caminhos que nos parecem mais fáceis: orientar, ensinar, exortar, conclamar; depois brigar, repreender, castigar, reiterar; depois repetir, pedir, suplicar, chorar. Pode acontecer de passarmos anos tentando variações disso tudo. Sem sucesso. Chega a hora, por fim, de aceitar que algumas pessoas somente aprenderão alguma coisa tomando porrada. E que, talvez, o melhor a fazer por elas é abrir a porteira para o mundo e deixar que se lancem, como sempre quiseram, para ver no que dá.

Não é algo que possamos fazer sem sofrimento. Mas o sofrimento já existe. Chega uma hora em que entregar a pessoa a si mesma é um ato de legítima defesa. Ela cresceu, é supostamente livre e pode fazer suas escolhas. A nós cabe seguir amando, se ainda é possível. Rezar, caso se acredite nisso. Torcer pelo sucesso, ao menos. Ou esquecer, se formos capazes.

Mas, sem dúvida alguma, há coisas que não podem continuar como estão.

(*) Esse tipo de atitude pode ser vista nas postagens da primeira fase deste blog. Textos implacáveis em suas valorações. Com o tempo, creio ter ficado mais compreensivo e moderado. Dizem os mais sábios que, com a idade, vamos aprendendo a calar.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

MP sem pudor?

Tenho escutado com alguma frequência, por parte de estudiosos de viés crítico, que os canalhas têm perdido a vergonha. Com efeito, foi-se o tempo em que as pessoas tentavam disfarçar a canalhice, a maldade, a burrice, o preconceito e outras vilanias. Agora está na moda mostrar tudo isso, porque você se alinha ao "pensamento" e ao sentimento reinantes no país.

Começou a repercutir na internet o anúncio de um seminário a ser realizado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em 15.9.2017, sob o tema "Segurança pública como direito fundamental". Basta o título para entendermos a proposta: o negócio é parar com esse papo de direitos humanos, porque o direito fundamental que realmente interessa é o tal à segurança. O resto é balela de intelectualoides esquerdistas.


Como não se deve acreditar no que se vê na internet, dei-me ao trabalho de acessar o sítio do MPRJ. Naveguei por ele e encontrei o link "Eventos". Clicando nele, fui redirecionado a uma página contendo quatro atividades, datadas para julho e agosto. Nada sobre setembro, nada sobre o deboche aí em cima. Mas é importante ressaltar, em favor daquela instituição, que as pautas confirmadas envolvem questões técnicas sobre obras públicas, uma audiência pública sobre segurança e os dois eventos de agosto são relacionados à justiça restaurativa: um com o belo tema "Perdão e resiliência" e o outro é um relato de experiência da Promotoria de Justiça de Petrópolis sobre álcool e outras drogas.

Importante ressaltar, portanto, que há trabalho sério e honesto sendo realizado no MPRJ. Nem tudo está perdido. Mas voltando ao tal seminário, não encontrei nada sobre ele no sítio institucional, por isso decidi dar uma googlada. Obtive alguns resultados, inclusive estudos acadêmicos, mas simplesmente não surgiu nada sobre o tal seminário. Observei, então, um selo com a legenda "Movimento de Combate à Impunidade". Procurei por ele e encontrei uma página do Facebook, que se apresenta assim: "Cansados de ver a impunidade que impera e que traz enorme desânimo aos cidadãos do Brasil, Juízes e Membros do MP se uniram para debater e reagir."

Nessa página, contudo, também não há qualquer alusão ao seminário. Em consequência, sou forçado a duvidar da veracidade da iniciativa, apesar de algumas pessoas respeitáveis, como o criminólogo Pedro Abramovay, estarem registrando seus protestos.

Eu teria algumas coisas a dizer, afinal, se por um lado há alguma sutileza em discursos do tipo "direito penal da vítima", por outro causa perplexidade ver subtemas como "Desencarceramento mata" e "Bandidolatria e democídio", que são absurdos tão escandalosos que, honestamente, me puseram incrédulo desde que vi o tal prospecto pela primeira vez. Seria o alinhamento descarado de uma agência de segurança pública à mais deliberada violência institucional contra direitos fundamentais. Seria o MP capaz disso?

Seria, sim. Nós todos sabemos que seria. As agências de segurança pública, em países de democracia combalida como o Brasil, discursam em nome do tal bem comum, que obviamente não existe, da proteção de bens jurídicos e, justamente, dos direitos fundamentais, mas sua praxe é violentamente oposta a todos eles. E nestes tempos em que mergulhamos fundo e convictamente no fascismo e no mais descarado escárnio contra valores humanos, seria uma ocasião oportuna para iniciativas como esta.

Mas para não correr o risco de cair na pegadinha, fico por aqui. Caso esse seminário seja verdadeiro, mesmo, teremos mais o que dizer sobre ele.

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Houve um tempo

O tempo dos blogs acabou faz tempo. Mais de 10 anos atrás, estavam no auge. Qualquer pessoa, inclusive insignificâncias como eu, criavam os seus e se danavam a falar sobre tudo e mais um pouco. Mas o curioso é que havia audiência e reciprocidade. Criei um grupo muito seleto de amigos na blogosfera. Mais de uma década depois, seguem tão amigos e tão virtuais quanto antes.

Mas a internet é impiedosa e as ferramentas vão se sucedendo e mudando as práticas. As redes sociais são um fator relevante. O finado Orkut nem tanto, talvez porque as pessoas se organizassem em torno das comunidades. Mas o modelo do Facebook privilegia as postagens individuais, a emissão de opiniões, de modo que aquelas ideias que você compartilhava em seu blog começaram a migrar para a plataforma do Zuckerberg, por ser mais rápida e proporcionar maior alcance.

Também surgiram outras redes, como o Twitter, esmagando a expressão na banalidade de seus 140 caracteres. As pessoas, que já liam pouco, ficaram cada vez mais convictas de que qualquer coisa com dois parágrafos já é um "textão". É ridículo e triste, mas as pessoas hoje em dia pedem desculpas por escrever dois parágrafos! Sem dúvida, o mundo empobreceu.

Com tantas redes sociais, nas quais as pessoas se danaram a publicar de tudo, inclusive as maiores tolices e desimportâncias, como o passo a passo do próprio dia ou os check ins e check outs de qualquer coisa, além de mergulhar na fantasia da felicidade, mostrando ao mundo apenas os lados mais recortados da vida real, blogs não tinham mais espaço e foram se requalificando. Os que permaneceram ganharam objetos mais delimitados, à exceção talvez dos jornalísticos, que seguem versando sobre qualquer coisa. Hoje, sucesso na internet é ser youtuber. Mas você também pode ser um blogueiro bem sucedido se publicar sobre coisas importantes, como moda e maquiagem. Obviamente, há elevadas doses de ironia aqui.

A par dessa reconfiguração, eu também mudei. E muito. Perdi o élan para a ação virtual, bem como a disposição para os conflitos que frequentemente surgiam. Também percebi que não preciso ter opinião sobre tudo e, mesmo tendo, não preciso compartilhar todas. Nem me animo mais as afirmações contundentes, que me colocavam tão dono da verdade, o que ninguém é. Nesse ponto, acho que melhorei. Em meio a isso tudo, claro, houve os meus dramas familiares, que me roubaram quase toda a disposição. Com tudo isso, este blog entrou em estado terminal e, a despeito dos esforços, nunca mais saiu.

Volta e meia, sinto vontade de mantê-lo vivo. Afinal, há umas postagens bem interessantes nele; algumas até engraçadas. Acima de tudo, ele poderia ser requalificado como um blog de interesse para estudiosos das ciências criminais. Por isso ele vai ficando. Uma hora, eu acerto a mão. E de vez em quando alguém passa por aqui e me lê. Às vezes de muito longe. Isso é realmente legal.

O blog é um arquivo de quase 11 anos de uma vida. Isso pode não significar nada para quase ninguém, mas significa para mim. Acredito que justifique sua permanência. Mesmo com esta sensação de escrever para mim mesmo. Mas vai que alguém aparece por aqui? Que seja bem vindo, então. Receba meu abraço.