Não costumo escrever sobre o caso "mensalão", porque é da minha natureza rejeitar o que é massificado: se todo mundo fala do assunto, não gosto de falar dele. E se antes todo mundo era um pouco médico, como diziam nossos avoengos, esse caso transformou cada brasileiro em jurista-penalista com pós-doutorado, já que todo mundo arrota profunda sapiência jurídica pela internet. No final, só constataremos que de louco todo mundo tem um pouco e nada mais.
Quebrando minha resistência, gostaria de externar algumas opiniões, destacando, contudo, que o pouco que sei sobre o caso foi visto através da imprensa comum, que todos sabemos ser a maior fonte de desinformação do país. Ainda mais em um caso como este, em que o ódio e a irracionalidade presidem.
Vamos aos pontos. Antes, porém, quero deixar todos muito à vontade para corrigir qualquer erro que eu cometa nestas mal traçadas linhas e, claro, para responder a minhas dúvidas.
I
Vi que o Ministro Joaquim Barbosa ia assinar os documentos necessários ao início do cumprimento das penas dos réus condenados, inclusive daqueles que se encontram em situação de "pena fatiada", conceito criado pela
Igreja da Verdade Real (só o conceito, porque o "instituto" é original do nosso STF).
Expedidos os mandados de prisão (eu achava que seriam
guias de execução*), nove apenados foram enfiados em um avião da Força Nacional e levados a Brasília. Eu me pergunto: por quê? A Lei de Execução Penal prevê expressamente que o apenado tem direito a cumprir sua pena o mais próximo possível de sua família e, que me conste, em São Paulo e em Belo Horizonte há casas penais. Mas todos foram enviados a Brasília, mesmo havendo, hoje, mecanismos bastante seguros para assegurar o início do cumprimento das penas em outros Estados. Obviamente, esse voo custou bem caro ao contribuinte e
simplesmente não se justificava.
Mais tarde, quando os presos forem autorizados a cumprir suas penas em suas cidades de domicílio ou o mais próximo possível delas (imagino que é isso que acontecerá, se a lei for respeitada), o contribuinte pagará a viagem de volta. Uma estupidez.
* Sobre as guias de execução: http://oglobo.globo.com/pais/juiz-de-execucao-penal-diz-que-definicao-sobre-destino-de-presos-pode-atrasar-10806816
II
 |
"...devendo a Autoridade Policial agir com absoluta urbanidade e assegurar ao preso o respeito às garantias inscritas na Constituição da República e na lei processual penal." |
Fiquei estarrecido com a cautela do Ministro Barbosa, que apôs, nos tais mandados de prisão, advertência expressa sobre cumprir a medida com respeito aos direitos dos presos! Entenderam? Cumpram estes mandados com todo o respeito aos direitos dos caras!
Um país que precisa lembrar às autoridades sobre o respeito aos direitos dos presos está praticamente na Idade Média. No caso, imagino que a cautela do ministro se explica particularmente pelo objetivo de mitigar, quanto possível, a espetacularização do episódio. Mesmo que seja isso, a coisa já está de ponta-cabeça.
No mais, é inevitável me lembrar que, em relação a todas as demais pessoas presas neste país, que não foram condenadas na célebre Ação Penal 470, não existe recomendação semelhante. É por que não precisa ou é licença implícita para baixar o sarrafo?
III
Vi agora no
Fantástico que, para entrar no avião, os presos foram algemados. Isso me enervou. Começa pela desculpa sempre na ponta da língua dos policiais federais: "procedimento de segurança". Toda vez que escuto isso, tenho vontade de sugerir um lugar para as ínclitas autoridades introduzirem seus procedimentos de segurança.
O mais engraçado é que a Súmula Vinculante n. 11, do STF, afirma: "Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado".
Parece que alguém não leu direito o mandado, com aquela ressalva comentada no item anterior. Ou, o que é mais provável, os riscos à segurança são óbvios e inerentes; estão sempre presentes e, por isso, sempre há necessidade de algemar o preso. É o que diz a PF.
IV
 |
Olha aí a PF se promovendo no Twitter! Qualquer semelhança com os bombados de academia que divulgam seus músculos não é mera coincidência. A diferença é quem está pagando a fatura. |
Os presos foram sentados à janela e cada um possuía um agente ao seu lado. Parece que todos eram presos de extrema periculosidade ou, talvez, que houvesse risco de fuga. Fez-me pensar no sequestro aéreo que se vê na sequência inicial do filme
Batman - The Dark Knight rises. Além de aumentar a opressão sobre os apenados, aumentou a quantidade de agentes envolvidos e, portanto, os custos para o contribuinte.
V
A cereja do bolo foi a proibição de falar. Mesmo ainda não estando dentro da casa penal, os apenados já estavam em pleno século XIX, entregues ao histórico
silent system. Vai ver que a proibição de emitir sons fosse para prevenir os planos da dita fuga aérea... A regra, também expressa, segundo a qual o preso conserva todos os direitos não atingidos pela pena foi sumariamente ignorada.
Na hora que vi essa palhaçada, comentei: fosse eu, passaria a viagem cantando. Quando me mandassem calar, eu diria: "Não calo. Vai fazer o quê? Me prender?" A pena cominada ao crime de desacato é de 6 meses a 2 anos de detenção, então eu correria o risco. Valeria a pena alegar situação de extremo estresse, potencializada pela redução dos níveis de oxigênio no interior da aeronave.
Mais: eu cantaria a canção do quati. Você não conhece? Trata-se de uma versão de
I want to break free, do Queen, com a qual certa vez irritei um amigo durante uma viagem de ônibus. A proposta é basicamente o seguinte (cante com o ritmo da famosa canção):
Comprei um quati
Comprei dois quatis
Comprei três quatis, quatro quatis, cinco quatis, seis quatis, sete quatis
Comprei uma porção de quatis!
Aí você repete mudando o verbo "comprei" por "alimentei" e segue do jeito que quiser: "banhei", "tosei", "passeei", etc. O melhor é quando você mata o quati e o cara ao lado pensa que o negócio acabou. Aí você ataca de "ressuscitei o quati" e é um desbunde!
Epílogo
Meu amigo, este país ridículo exige o máximo de nossa capacidade de humor e reinvenção. O que precisa ser sério nunca é, mesmo podendo.
Deixe que eu explique, por fim, que a razão da minha indignação é que, se a polícia dita mais preparada do país age dessa forma, e em relação a idosos e mulheres, que tratamento estará destinado ao cara do dia-a-dia do sistema de justiça criminal? No fundo nós sabemos, mas é assustador quando a coisa é escancarada dessa forma.