Imagine a seguinte situação: em um dia qualquer, você sai de casa e sofre um acidente de trânsito ou então um assalto no qual é baleado. Como consequência, fica tetraplégico. Horrível de pensar, não? Mas existe solução? Pelo visto, existe sim: basta a seleção brasileira de futebol jogar e o Neymar fazer um gol. Aliás, segundo a imprensa, um golaço!
Ato contínuo, você se erguerá da cadeira de rodas e andará.
O brasileiro aí da foto se chama Miguel Ângelo Laporta Nicolelis, um médico e neurocientista paulista de 53 anos. Na década passada, foi apontado pela revista Scientific American como um dos 20 maiores cientistas do mundo. Premiado e reconhecido internacionalmente, lidera uma pesquisa da Universidade Duke (Durham, Estados Unidos), na área de fisiologia de órgãos e sistemas, que pretende permitir ao cérebro comandar próteses e, assim, permitir o movimento controlado e consciente a pessoas dotadas de deficiências físicas.
Segundo o seu currículo Lattes: "Atualmente é professor titular do Departamento de Neurobiologia e Co-Diretor do Centro de Neuroengenharia da Duke University (EUA), professor do Instituto Cérebro e Mente da Escola Politécnica Federal de Lausanne (Suíça) e Presidente do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS). Tem experiência na área de Fisiologia, com ênfase em Neurofisiologia, atuando principalmente nos seguintes temas: informática médica, eletrofisiologia, sistemas sensoriais, sistema somestésico e próteses neurológicas."
Nicolelis deveria ser a melhor coisa da copa da FIFA no Brasil. Em minha opinião, a única coisa boa. Foi anunciado com anos de antecedência que, se tudo desse certo, na abertura do evento um paciente com deficiência usaria um exoesqueleto para chutar uma bola. Seria o primeiro chute da copa, uma demonstração dos méritos da ciência brasileira.
O chute aconteceu, no último dia 12. O voluntário Juliano Pinto, de 29 anos, usou o exoesqueleto. Mas a Globo, emissora oficial dos jogos, exibiu a cena por apenas 7 segundos, porque preferiu mostrar o ônibus da seleção brasileira chegando ao estádio. Sintomático. Pressionada nas redes sociais, a Globo culpou a FIFA pela escolha, omitindo o fato de possuir cinco câmeras exclusivas, fato de que se ufanou publicamente por muito tempo.
Assim, o cientista Nicolelis foi parar na fogueira da insanidade brasileira. A atual copa é menos um evento esportivo do que mais um capítulo na interminável, grosseira e burra guerra de pseudoideologias políticas e sociais em que estamos chafurdados. Você odeia o PT, então não pode elogiar a copa e, com isso, até uma pesquisa científica da maior relevância se tornou alvo de chacotas.
"Ideólogos" oficiais e mais conhecidos dos setores mais deprimentes da sociedade brasileira, Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo tripudiaram do cientista que, felizmente, não deixou por menos e respondeu à altura (veja aqui). Mas ele não merecia ter seu nome sequer pronunciado por esses dois beócios. Para minorar um pouco os nossos pecados, este foi um caso em que mesmo a imprensa, deslumbrada e mal intencionada, sentiu que não podia ficar do lado dos maus: foi obrigada a valorizar Nicolelis e seu trabalho. Isso é um alento, sem dúvida, mesmo que amanhã somente os especialmente interessados no tema se recordem de seu nome. O restante do povo estará injetando a tabela da copa na veia.
Entusiasta da ciência, sou fã de Nicolelis, ainda que lamentando que a brasilidade de sua pesquisa dependa de políticas públicas e recursos estrangeiros, como sempre. Mas ela existe e traz o nome do Brasil na frente. Para iluminar os caminhos de quem pode vir a ser o futuro da ciência brasileira, se chegar o dia em que ela, enfim, seja levada a sério.
Até lá, os gritos de gol serão dados das cadeiras de rodas e leitos de hospital, como hoje em dia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário