Não tive como não me lembrar do tempo em que, à simples menção da palavra Merthiolate, uma reação de pânico generalizado tomava conta das crianças no recinto. Eram fugas, gritos, súplicas. Muitos preferiam esconder seus machucados, para escapar ao inevitável tratamento.
Na minha infância, o frasco era de vidro. |
Curiosamente, muita gente afirma que, depois da mudança, passou a duvidar da eficiência do medicamento. Eu mesmo, confesso, fiquei um pouco decepcionado com a mudança. Coisa de gente doida, claro. Vale destacar que o tema é abordado em diversos blogs, num ataque saudosista, talvez.
Isso me remete a outro terror de minha infância. Havia uma entidade capaz de apavorar qualquer criança num raio de quilômetros. Não era fantasma, bicho-papão ou o Velho do Saco; o medo atendia pelo nome de fura-dedo. Quem não viveu essa época provavelmente desconhece o agente de saúde que ia de casa em casa munido de um instrumento de tortura: uma lâmica metálica com uma pontinha afiada no meio. Furava nossos polegares, cobria a lâmina e levava o material para testar eventual contaminação por malária, doença endêmica em nossa região. Se uma criança avistasse um fura-dedo, era capaz de sair pela rua gritando ou bater na porta dos amigos, dando o alarma. Pode parecer ridículo, mas houve um dia em que me escondi embaixo de uma mesa. Inútil, claro: os adultos sempre garantiam a nossa disponibilidade.
Um dia, dei-me conta de que há anos nem sequer escutava falar dos fura-dedos. Um dos maiores medos da infância se dissipou assim, tão silenciosamente, que sequer percebemos.
Hoje, penso nisso e me divirto. São lembranças bacanas, ingênuas. O que maltrata, mesmo, é pensar que mais felizes eram as crianças que tinham no Merthiolate e no fura-dedo as maiores preocupações de suas vidas. Quem dera ainda fosse assim!
15 comentários:
Yúdice,
Pior que o ardor (e só hoje me dou conta disso) era aquele aplicador do Merthiolate - o mesmo para todo mundo que o usava, trazendo sérios riscos de contaminação.
Também já fugi do fura-dedo. Morava fora de Belém e quando vinha passar férias aqui, meus primos me atterorizavam com histórias de dores lancinantes, sangue pulsando, essas coisas...
E porque hoje não arde mais???
Antes, pelo-amor-de-Deus...
Muito bem escrito, Yúdice
Abs
Edyr
Verdade, Francisco. Até me lembrei disso, mas acabei publicando o texto sem mencionar a particularidade. De fato, um absurdo, hoje resolvido pela apresentação em spray. Mas também vale lembrar que, naquela época, esses fantasmas de contaminação e acidentes de hoje simplesmente não existiam!
Porque mudaram o princípio ativo, Liandro. Some-se a isso que, com o passar do tempo, o conforto do usuário passou a integrar o conceito de eficiência do medicamento.
Obrigado, Edyr. Sempre bom te encontrar por aqui.
Você esqueceu do Mercúrio, Yúdice? ele não ardia...
O fura-dedo deixou de fazer parte dos métodos de vigilância epidemiológica porque o número de casos autóctones de malária em Belém não justifica esse tipo de rastreamento. (Cá entre nós, Graças a Deus! Mas até meus 14 anos, ou seja em 1994, passou um agente da SUCAM lá em casa...)
Não me esqueci, Ana. Muitas crianças imploravam para que usassem o mercúrio-cromo, mas as mamães sempre preferiam o Merthiolate!
Mataste a minha curiosidade sobre o desaparecimento dos fura-dedos, Alena. Grato!
Quando li a sigla SUCAM, veio-me à mente o uniforme que eles usavam. Havia esquecido o nome do órgão que nos assombrava.
Nos anos 80 tinha o fura-dedo e nos 2000 a coisa piorou: apareceu o fura-olho
Derrubei um vidro do sinistro produto sobre um tapete branco, de pele de ovelha, que minha avó tinha acabado de trazer do Rio Grande do Sul para presentear minha mãe... Recordo que era um pacote enorme e vovó deve ter sofrido misérias empurrando aquele trambolho pelas escalas da Varig, que não tinha vôo direto para Belém. Por sorte, no conjunto de normas que meus pais adotavam para reger nossa criação, não constavam as palmadas, de maneira que me ficaram na lembrança as feições tristes de minha mãe, ao perceber minha peraltice involuntária, além, é claro, as horas que tive de ficar ajoelhado, lavando a mancha vermelha, que quanto mais eu esfregava mais se alastrava, até findar num borrão enorme de tom rosa claro. Infelizmente, compreendi agora, desde aqueles tempos (tinha uns 12 anos na época, ou seja, trinta e tantos anos atrás), eu já era desastrado, hipocondríaco, bacteriofóbico e, ainda por cima, cultivava o péssimo hábito da automedicação.
Das 11h13, será que os fura-olhos não existiam bem antes dos anos 2000?
Bacana a reminiscência, André. Talvez não para ti, claro, mas me faz pensar no tempo em que as crianças e adolescentes eram disciplinados pelas famílias e isso não provocava traumas! Ainda sou dessa época.
Mesmo não tendo sido intencional o dano, impor o dever de limpar o estrago teve a utilidade de te fazer pensar sobre as consequências dos nossos atos impensados ou descuidados. É pedagógico. Pessoalmente, fico muito aborrecido quando alguém me prejudica e se defende dizendo que foi sem querer. Ora, eu sei que foi sem querer, pitombas! Se fosse proposital, eu retaliaria. Como não foi, entendo, mas ainda assim sofri alguma perda e isso não pode ser ignorado.
Quero ensinar minha filha a se importar com as consequências de seus atos, inclusive os impensados. Ou principalmente estes.
Há poucos dias, conversando sobre ferimentos e automedicação, terminamos por concluir que a dor do merthiolate - este inocente trauma das nossas infâncias - acabou por se imiscuir na nossa mente como a dor da cura.
Uma relação tão íntima entre a dor lancinante da aplicação de merthiolate na escoriação e as frases que geralmente remetiam ao "dói porque está curando", que fez com que minha mente e dos integrantes da conversa terminassem por fazer disso uma verdade.
Ainda hoje, me encontro relacionando a dor de uma medicação com seu poder de cura - cabe citar o velho peróxido de hidrogênio, álcool iodado e bicarbonato de sódio (por sinal, receita infalível da vovó para a "cura de aftas").
Como sempre, um texto digno de ser referenciado.
Verdade, Alessandra: para muitos, como mencionado acima, a dor produz uma espécie de convicção íntima de que o medicamento está fazendo efeito. É complicado acreditar no poder de cura quando você engole ou aplica a coisa e... nada acontece. Quem sofre quer alívio imediato.
Caro Yúdice eu sempre visito seu Blog, mas raramente deixo algum comentários, acho seus textos muito bons, e esse então me fez sentir até saudade do ardor do Mertiolate, e sem pensar na contaminação, achava tão prática aquela palhetinha e o modo como voce descreveu o temido fura-dedo foi fantástico, eu achava até que eles adoravam ver a gente com medo..rss
Abs MALU
MALU
Gostarei muito de ver outros comentários seus, Maria Luiza. Mas independentemente disso agradeço por cada visita. Um abraço.
Como eu queria os fura dedos agora ao invés dá vida difícil que vivemos hj. Antigamente não existia, celular, computador, nem mesmo telefone eram só pra quem podia. Mas éramos felizes.hj existe terror, mata se como se mata uma batata.
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