segunda-feira, 7 de março de 2022

Pensando como um criminalista

De acordo com reportagem do Diário do Pará publicada hoje, na última quinta-feira, 3 de março, em Marabá, um homem de 57 anos amarrou um de seus netos, de 12, e o açoitou com cordas. Como é recorrente nestes tempos, a agressão foi filmada e acabou nas redes sociais, gerando repercussão. Veja aqui a reportagem e o vídeo, borrado para não ser tão terrível, se achar que vale a pena.

Não sabemos o que motivou o ataque, se o agressor estava ciente de que era filmado nem qual o motivo da divulgação das imagens, atribuídas a uma adolescente, talvez também neta do espancador. Sabemos que os menores foram encaminhados ao Conselho Tutelar, para providências, e que todos os adolescentes e crianças (em um total de 6 pessoas) estão sendo criados pelo avô, ou seja, são financeiramente dependentes dele. A certa altura do vídeo, é possível escutar o menino gritar "ai, vô, tá bom!". Isso me faz pensar em um contexto de temor reverencial.

A reportagem afirma em duas passagens que a polícia local está apurando os fatos como possível crime de maus-tratos, tipo previsto no art. 136 do Código Penal, com a seguinte descrição:

Art. 136 - Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:
Pena - detenção, de dois meses a um ano, ou multa.
[...] § 3º - Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos.

A meu ver, considerando a natureza e a intensidade da agressão (embora não tenhamos notícia de lesões corporais decorrentes), bem como a absoluta indefensividade da vítima, a polícia de Marabá está sendo estranhamente parcimoniosa, pois mesmo minha mente antipunitivista encara o caso como sendo tortura, conforme tipificação do art. 1º, II, da Lei n. 9.455, de 1997:

Art. 1º Constitui crime de tortura:
[...] II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
[...] § 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
[...] II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos;
[...] § 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
§ 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.

A diferença de capitulação penal traz consequências bastante severas, no que diz respeito à quantidade de pena cominada; ao impedimento das medidas despenalizadoras da Lei n. 9.099, de 1995; à caracterização de crime hediondo (e seu impacto para progressão de regime e liberdade condicional); à vedação à possibilidade de fiança e ao regime fechado inicial obrigatório.

Em um raciocínio simplista (os raciocínios em matéria penal são frequentemente toscos e ilegais, inclusive quando manifestados por profissionais do Direito), o caso se resolveria com a prisão do agressor, seu processamento e condenação a uma pena exemplar, tudo permeado com belos discursos sobre a proteção da criança. Exceto quanto à prisão preventiva e a uma "pena exemplar", eu não diria que essas consequências estão erradas, em uma análise estritamente baseada da dogmática penal, considerando ainda a aparência de prova suficiente para a compreensão do fato em si. Mas é meu dever fazer uma ponderação. Você prestou atenção na parte em que mencionei que o agressor é mantenedor financeiro da família? Ainda que não seja o único, foi dito que ele cria os netos.

O fato, citado pela reportagem, de que o agressor garante a subsistência de ao menos 6 netos, inclusive da própria vítima, torna o caso bastante melindroso. Esta é daquelas situações em que a facilidade da solução dogmática não é capaz de enfrentar as consequências humanas que não apenas o delito, mas a intervenção estatal sobre ele, provocariam. E bem sabemos que intervenções estatais costumam ser devastadoras, sobretudo porque, hoje em dia, do policial ao ministro das cortes superiores, os agentes da persecução criminal parecem possuídos por uma questionável convicção de que são guerreiros em uma batalha pela salvação dos mais desvalidos ou de uma abstrata sociedade. Os discursos penais são cada vez mais salvacionistas, o que nos remete àquela instigante provocação que se tornou corriqueira na seara penal: quem nos protege da bondade dos bons?

Evidentemente, precisaríamos de maior conhecimento sobre como está estruturada a família na qual ocorreu esse desastre. Um dos maiores problemas de qualquer análise criminal é a insistência das pessoas em olhar os fatos do modo mais limitado possível (a conduta criminosa em tese), quando o único modo de compreendê-los seria na amplitude dos contextos pessoais, sociais, econômicos, educacionais, religiosos e de outras ordens. 

Neste caso, em particular, temos a velha discussão em torno da violência como recurso educacional. A reportagem cita a Lei n. 13.010, de 2014, cognominada "Lei Menino Bernardo" ou "Lei da palmada", que veda todo castigo físico ou tratamento cruel ou degradante contra crianças e adolescentes. Recordo-me claramente de que, enquanto o projeto de lei tramitava no Congresso Nacional, impulsionado por um bárbaro homicídio intrafamiliar de criança (a velha estratégia brasileira de lei penal decorrente de crime específico), as pessoas por aí protestavam como nunca costumam fazer quando se discute o endurecimento da legislação. Qual era o mote? Os políticos não podem dizer se eu vou ou não bater no meu filho! Quem decide sou eu!

Entendeu o tamanho do problema que temos nas mãos? Não duvide: muita gente apoiará a atitude desse avô, mesmo sem saber nada sobre as circunstâncias concretas do caso. Legitimarão a barbárie como um direito natural daquele que cria, que investe o seu dinheiro, principalmente se for pouco. Outros criticarão o excesso, mas não a violência em si. 

Isto posto, gostaria de convidar o distinto leitor a se manifestar sobre este caso. Não precisa ser uma análise jurídica. Quero que você se ponha no lugar de alguém em posição de autoridade para tomar alguma decisão oficial sobre o futuro dos envolvidos. O que você faria? O que entende relevante ser analisado? O que é que deve ser defendido em caráter prioritário nesse contexto?

Agradeço pela contribuição que puder oferecer.

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