segunda-feira, 24 de julho de 2017

Um pouco da seletividade penal brasileira

Um dos conceitos mais centrais para o estudo do campo penal é o de seletividade. Aos estudiosos, há ótimas referências para entender a questão mas, por todas, recomendo a obra Direito penal brasileiro, I, de Eugenio Raúl Zaffaroni et alli, publicado pela Editora Revan.

Zaffaroni explica que a seletividade é uma realidade inafastável de qualquer ordenamento penal, haja vista que todas as agências punitivas possuem limitações infraestruturais. Logo, nunca seria possível instaurar persecução criminal em relação a todos os fatos criminosos em tese que ocorrem, dando origem ao conceito de cifra oculta da criminalidade. Contudo, ao lado dos problemas infraestruturais, existe a questão das finalidades que movem as agências punitivas, as quais não são isentas. A despeito do discurso oficial de proteção dos bens jurídicos, na verdade elas atuam para manter a dinâmica de forças desiguais que já existem na sociedade, como bem explicam autores como Juarez Cirino dos Santos e Nilo Batista.

Daí surge uma outra seletividade, que é de natureza político-criminal, clandestina, porque as agências punitivas jamais admitirão que são comprometidas com as classes hegemônicas. Aquela seletividade quem se tornará cliente do sistema penal, mesmo que inocente, e quem está imune a ele, mesmo que claramente culpado.

Esta é uma questão muito séria, mas que no Brasil de hoje, para variar, encontra-se severamente deturpada por causa da crise político-partidária. Com efeito, devido à recorrência do argumento de que o Ministério Público, o judiciário e a imprensa tratam com ferocidade as imputações criminais aos petistas e com leniência os malfeitos dos tucanos, inclusive isentando-os de responsabilidade ou arquivando inquéritos, a intelligentsia à brasileira reagiu passando a negar a própria existência da seletividade, como se fosse desculpismo de corruptos, comprando o discurso alucinado de isenção das agências punitivas.

Que a seletividade é real, temos exemplos diários. Selecionei aqui um único caso, para demonstrar. Vou transcrever dois textos sobre ele, naturalmente indicando a fonte, e em itálico colocarei alguns breves comentários.

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Primeira matéria: http://www.revistaforum.com.br/blogdorovai/2017/07/23/preso-com-130-quilos-de-maconha-e-199-municoes-de-fuzil-filho-de-desembargadora-e-libertado/

Preso com 130 quilos de maconha e 199 munições de fuzil, filho de desembargadora é libertado

O jornalista Alcemo Góis informa em sua coluna do jornal O Globo algo que merece ampla apuração, mas que provavelmente vai ficar na notinha e ser tratado como algo da vida. Mais ou menos como no caso do helicóptero pertencente à família do senador Perrella. [O blogueiro se refere ao famosíssimo caso do "helicoca", helicóptero pertencente à empresa dos filhos do senador por Minas Gerais Zezé Perrella, apreendido com 445 quilos de pasta base de cocaína em novembro de 2013. Como a pasta base pode ser processada para produzir uma quantidade muito maior de cocaína em pó, estima-se que a carga valia 50 milhões de reais. Perrella é um dos grandes aliados do senador Aécio Neves. O piloto assumiu a culpa sozinho e, embora devesse ser caracterizado como um grande narcotraficante, já está em liberdade. Enquanto isso, temos pessoas presas por terem sido flagradas portando 2 gramas de maconha. A tese de que eram usuárias foi recusada e essas pessoas acabaram na cadeia como traficantes.]
  • Para saber mais sobre o caso, consulte, p. ex.: https://oglobo.globo.com/brasil/helicoptero-da-empresa-dos-filhos-de-senador-apreendido-com-quase-meia-tonelada-de-pasta-de-cocaina-10878457 e a série de reportagens publicada em http://www.diariodocentrodomundo.com.br/categorias/especiais-dcm/helicoca/.


Segundo Góis, o plantão judiciário do TJ-MS, soltou na última sexta-feira Breno Fernando Solon Borges, de 37 anos. Ele teria sido preso com 130 quilos de maconha, 199 munições de fuzil calibre 762 e uma pistola nove milímetros. E tinha contra ele dois mandados de prisão, que foram suspensos pela Justiça. [Observe para a imensa quantidade de droga e de munições, além de uma arma. Nos termos do Estatuto do Desarmamento, é crime não apenas a posse ou o porte ilegal de armas, mas também de munições. Como a pistola era uma 9 mm e a munição era para fuzil, pode-se inferir que a carga visava suprir algum arsenal. Tanto a pistola quanto fuzis são armas de uso restrito às Forças Armadas ou a agentes de segurança pública, o que torna o crime mais grave, com penas de 3 a 6 anos de reclusão e multa, nos termos do art. 16 da Lei n. 10.826, de 2003. Embora se trate se crimes em tese muito graves, e de serem acusações distintas, todos os mandados de prisão foram suspensos.]


Ainda segundo o jornalista, Breno seria filho da desembargadora Tânia Garcia de Freitas Borges, presidente do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-MS) e integrante do Pleno do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul.

O Tribunal Regional Eleitoral, a saber, é entre outras coisas, quem conduz o processo eleitoral e que julga processos envolvendo candidatos.

Ou seja, aqueles que dizem que os problemas do Brasil são os políticos e a corrupção deveriam olhar melhor para o judiciário.

Segunda matéria: http://www.revistaforum.com.br/blogdorovai/2017/07/23/filho-da-desembargadora-solto-na-madrugada-de-sexta-e-considerado-de-alta-periculosidade-pela-pf/

Filho da desembargadora solto na madrugada de sexta é considerado de alta periculosidade pela PF

O blogue foi atrás de mais informações sobre o caso da controvertida libertação do engenheiro Breno Fernando Solon Borges, 37 anos, filho da presidente do Tribunal Regional Eleitoral e integrante do Tribunal Pleno do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, desembargadora Tânia Garcia de Freitas Borges.

Como já dito no post anterior, ele foi preso por portar, entre outras coisas, 130 quilos de maconha, 199 munições de fuzil calibre 762, de uso exclusivo das forças armadas e só utilizado por facções criminosas como PCC, e uma pistola nove milímetros. 


Na imprensa do estado, quem tem tratado do assunto é o blogue O Jacaré, do jornalista Edvaldo Bitencourt. Pela leitura de suas matérias a história fica ainda mais cabeluda do que parecia no post que publiquei há pouco.

A saga de Solon Borges com a Justiça começou em 8 de abril, quando ele, a namorada, Isabela Lima Vilalva, e o funcionário da sua serralheria, Cleiton Jean Chaves, foram presos. [A prática de crimes em situação de concurso de agentes também é uma circunstância de maior gravidade, nos termos da lei, que, no entanto, não parece ter sido sopesada na decisão judicial que concedeu a liberdade.]

Na ocasião, o juiz da Vara Única de Água Clara, Idail de Toni Filho, decretou sua imediata prisão no presídio de Três Lagoas, mas na última sexta-feira, na madrugada, o desembargador de plantão José Ale Ahmad Netto, suspendeu os dois mandados de prisão e determinou o cumprimento do habeas corpus para interná-lo numa clínica médica particular. [O Brasil aplica uma política de guerra em matéria de drogas. Os discursos punitivistas mais radicais, que são usualmente sustentados pelas agências punitivas, repudiam com virulência a tese de que drogas devem ser tratadas como questão de saúde pública e não de segurança pública. Neste caso específico, porém, aplicou-se a orientação de saúde.]

No seu despacho, o magistrado ainda criticou os dois juízes que decretaram a prisão preventiva do filho da desembargadora. E não levou em consideração que a Polícia Federal considera o filho de sua colega de toga alguém de alta periculosidade. [Criminólogos críticos repudiam a ideia de "periculosidade" como fundamento da persecução criminal. No entanto, esse é justamente um dos argumentos mais comuns na atuação histérica das agências punitivas. Por isso, é no mínimo estranho quando a periculosidade é ignorada com tanta veemência.]

Por conta dessa decisão de José Ale Ahmad Neto, o filho da sua colega não deve mais ser julgado por associação ao tráfico e venda de armas de grosso calibre, mas por ser doente e usuário de drogas. [Uma solução para acalmar a opinião pública: as agências fingem estar cumprindo a lei e só o fizeram porque se viram forçadas a isso, o que chamamos de "criminalização por comportamento grotesco" ― o crime é tão grave que não dá para fazer vista grossa. Na verdade, estão protegendo o acusado privilegiado. Em vez de cadeia, internação em clínica particular, com acesso a todo conforto que a família pode proporcionar-lhe.]

O local do tratamento de Breno ainda não foi definido. O Tribunal de Justiça determinou que fosse em Campo Grande, apesar do pedido da mãe para que se realizasse em Atibaia (SP).

Só que as duas clínicas da Capital, Nosso Lar e Carandá, segundo a defesa, informaram que não possuem vaga para receber o réu.

Segundo o blog O Jacaré, a história daqui para frente passa a ser um mistério, já que a defesa de Breno pediu, e os desembargadores decretaram, segredo de Justiça no caso. [Outro fato inusitado. A regra é que processos criminais sejam públicos, mas motivos específicos podem determinar a decretação do segredo de justiça: situações envolvendo crianças e adolescentes; crimes sexuais; investigações que envolvam quebra de sigilo de dados pessoais ou bancários ou que versem sobre organizações criminosas. Não está claro qual seria o fundamento no caso deste acusado que, afinal, é apenas um usuário de maconha, segundo o desembargador.]

Entre outras coisas, as investigações realizadas pela Polícia Federal apontam que Breno teria participado ativamente da orquestração para garantir a fuga de Tiago Vinicius Vieira, chefe de uma facção criminosa, em março deste ano do presídio de Três Lagoas. [Parece uma acusação de crime muito grave, não? Para o judiciário do Mato Grosso do Sul, não é.]

O caso revela muito do que é o Partido da Justiça Brasileira. Uma lei pra alguns, outra lei para muitos.

[Agora você se informa melhor e tira as suas conclusões.]

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