Não sei se já disse aqui no blog, mas sou de opinião que o escritor e teledramaturgo Walcyr Carrasco possivelmente quis ser advogado em algum momento de sua vida, mas acabou não cursando Direito e ficou com uma frustraçãozinha (o que seria uma bobagem, pois seu trabalho é altamente recompensador, em todos os sentidos, além de que, como autor do primeiro escalão da Globo, ele não deve ganhar menos de 300 mil reais por mês, algo que somente advogados muito bem sucedidos conseguem e que, no serviço público, é impossível, se o sujeito for honesto). Mas só assim para eu entender a obsessão de Carrasco por dar grande destaque a julgamentos em todas as suas novelas e, sempre, sempre, sempre assassinando o Direito das maneiras mais acintosas e covardes.
Não acompanho Amor à vida, a primeira incursão do autor no horário nobre. Mas há uma sucessão de absurdos que chegam ao meu conhecimento. O mais recente foi comentado por um grupo de colegas advogados e eu, a partir de suas informações, tenho a tecer os seguintes comentários:
O absurdo consistiu em mostrar o personagem Atílio sendo condenado a 5 anos de prisão pelos crimes de bigamia e de falsidade ideológica (complementei as informações consultando a internet), em regime inicial fechado e sem direito a apelar em liberdade!!!
O tipo de bigamia prevê uma pena de 2 a 6 anos de reclusão e o de falsidade ideológica, se incidente sobre documentos públicos, como são os ligados ao estado da pessoa, 1 a 5 anos de reclusão. Num intervalo de 3 a 11 anos de reclusão, uma condenação a 5 até que não soaria tão esdrúxula assim, se:
1. Atílio não fosse uma pessoa sem qualquer acusação criminal anterior, um homem reconhecidamente honesto, de condição intelectual, social e econômica a colocá-lo fora da clientela habitual do sistema de justiça criminal. Já se pode questionar por que não uma pena menor, inclusive a mínima.
2. Esdrúxulo mesmo é que, se a falsidade ideológica foi praticada especificamente para permitir o casamento, como entendi, então deveria ser aplicada a consunção: a falsidade ideológica deveria ser absorvida pela bigamia, por constituir apenas o meio executivo desse outro delito, por sinal mais grave. Logo, Atílio deveria ser condenado a 2 anos de reclusão ou pouco mais do que isso, tão somente.
3. É perfeitamente possível aplicar o regime fechado inicial em caso de condenação inferior a 8 anos por crime não hediondo, tratando-se de réu não reincidente. Mas isso exigiria condições particularmente graves de execução. Singulares, eu diria. Os crimes aqui considerados não envolvem violência contra a pessoa e, pelo perfil do réu, a medida simplesmente não se justifica, ainda mais diante das Súmulas 718 e 719 do Supremo Tribunal Federal (respectivamente: "A opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motivação idônea para a imposição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada" e "A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea").
4. Mesmo um leigo bem desinformado, se assiste televisão (e decerto que leigos desinformados assistem muitas horas de TV), aprendeu com o caso do "mensalão" que os réus somente devem ser presos após o trânsito em julgado da condenação, ou seja, quando não é mais possível nenhum recurso. Em uma linguagem mais simplória: quando o processo chega ao fim. E o caso de Atílio não acabou, porque o advogado pode recorrer. Mesmo assim, a juíza ensandecida do caso mandou prender, de imediato, o réu que respondeu ao processo em liberdade! Esse habeas corpus seria concedido em qualquer tribunal do país.
5. Não satisfeito com o já inacreditável volume de insanidades, Carrasco ainda fez o pobre personagem sair algemado da sala onde foi realizado o julgamento (como sempre, uma sala em estilo tribunal do júri, enorme, totalmente diferente dos gabinetes apertados da vida real), em flagrante afronta a Súmula Vinculante n. 11, do Supremo Tribunal Federal, a respeito da qual foi dada ampla publicidade e virou assunto de qualquer conversa de botequim. E isso mesmo sem que ele tenha oferecido perigo a ninguém.
6. Se você acha que não pode piorar, enganou-se. Pode piorar muito. É que Atílio sofreu danos neurológicos decorrentes de agressões encomendadas pelo vilão Félix, ao ponto de perder a memória. Ele parecia mudar de personalidade, "transformando-se" numa outra pessoa, que era apaixonado pela personagem de Elizabeth Savalla, motivo de sua decisão de casar-se com ela. Ou seja, era indispensável analisar a capacidade mental do réu e, segundo me disseram, havia laudos médicos nos autos. Mas a questão foi sumariamente ignorada e o coitado, que é bem possível ter agido em momento de imputabilidade penal, foi condenado mesmo assim, sem direito, sequer, à redução de sua pena, como previsto em lei, em face de capacidade mental reduzida.
Bom, meus caros, tudo isso em um único capítulo da novela das 9, a de maior audiência da principal emissora de TV do país. Walcyr Carrasco pode ter muito amor à vida mas, com certeza absoluta, não tem nenhum pelo Direito. E não é ignorância, não, mas escolha. Ele teria acesso a toda consultoria que quisesse, ainda mais porque estamos falando de aspectos jurídicos comezinhos. No entanto, ele prefere persistir no erro, no absurdo, no nonsense. E com isso acaba prestando um desserviço a uma sociedade que, sabidamente, tem como principal meio de "informação" a televisão.
Mas ao que parece, Carrasco é um caso perdido. Não vale a pena tentar racionalizar.
Acréscimo em 3.10.2013:
Na coluna semanal em que critica tudo e todos, Lenio Streck abordou o caso deste personagem e outros absurdos jurídicos da novela Amor à vida. Leia aqui, se achar que vale a pena.
Nenhum comentário:
Postar um comentário