No mês de agosto, durante as aulas iniciais que ministrei para minhas novas turmas de Direito Penal I, mencionei o crime de pederastia, como exemplo das escolhas ardilosas que o legislador faz, na hora de decidir o que deve ser crime. Acabo de tomar conhecimento de que a Procuradoria-Geral da República concorda comigo:
A Procuradoria-Geral da República ajuizou, no Supremo Tribunal Federal, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 291, na qual questiona a constitucionalidade do artigo 235 do Código Penal Militar, que tipifica como crime a “pederastia ou outro ato de libidinagem” em lugar sujeito a administração militar. O dispositivo, segundo a PGR, viola os princípios da isonomia, da liberdade, da dignidade da pessoa humana, da pluralidade e do direito à privacidade.
A PGR afirma que, a partir da Constituição Federal de 1988, não há fundamento “que sustente a permanência do crime de pederastia no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que é nitidamente discriminatório ao se dirigir e buscar punir identidades específicas, sem qualquer razão fática ou lógica para tal distinção”. O crime estaria inserido num contexto histórico de “criminalização da homossexualidade enquanto prática imoral, socialmente indesejável e atentatória contra os bons costumes”, visão que não mais se sustenta internacionalmente.
Discriminação
A norma do artigo 235 do Código Penal Militar, que criminaliza o militar que praticar ou permitir que com ele se pratique “ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”, sujeitando-o à pena de detenção de seis meses a um ano, foi, de acordo com a PGR, criada no contexto histórico de um regime militar ditatorial, e escancara visões de um momento político autoritário e pouco aberto às diferenças e à exposição delas. Os termos “pederastia” e “homossexual ou não”, portanto, teriam viés totalizante e antiplural.
Para corroborar a argumentação, a Procuradoria remete à exposição de motivos do Código Penal Militar para incluir entre os crimes sexuais a “nova figura” da pederastia: “É a maneira de tornar mais severa a repressão contra o mal, onde os regulamentos disciplinares se revelarem insuficientes”, diz o texto. A PGR sustenta que a discriminação é explícita, e, mesmo com a retirada dos termos “pederastia” e “homossexual”, sua aplicação continuará afetando primordial e intencionalmente os homossexuais. Uma vez que a grande maioria do contingente das Forças Armadas é masculina, e havendo ambientes estritamente masculinos, “os heterossexuais, em tese, não seriam atingidos pela norma de austeridade sexual”.
Liberdade sexual
Além do aspecto discriminatório, a Procuradoria aponta que a norma tem o objetivo de limitar a liberdade sexual dos militares. Finalmente, a PGR diz que, em qualquer ambiente de trabalho, os atos inapropriados são punidos. No caso, porém, o Código Penal Militar utiliza o Direito Penal, “cujo princípio é o da intervenção mínima”, para reprimir “o que é considerado inapropriado em algumas situações”. O que seria passível de punição, assim, seria o assédio sexual, de acordo com a PGR. “Não pode haver criminalização do exercício pleno da sexualidade consensual entre dois adultos, ainda mais quando os indivíduos não estejam exercendo qualquer função”.
Assim, a PGR pede a concessão de medida cautelar para suspender a eficácia do artigo 235 do Código Penal Militar, até o julgamento definitivo da arguição. No mérito, pede que seja declarada a não recepção do dispositivo pela Constituição de 1988. O relator da ADPF é o ministro Luís Roberto Barroso. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.
Revista Consultor Jurídico, 19 de setembro de 2013
Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-set-19/pgr-fim-criminalizacao-pratica-sexual-area-militar
Algo mais poderia ser dito sobre a questão. Embora o penúltimo parágrafo mencione o princípio da intervenção mínima, a argumentação segue em termos de proteger a liberdade de autodeterminação: o indivíduo tem o direito de conduzir sua vida de acordo com suas preferências, se isso não implica em danos a terceiros. Mas a intervenção mínima conduz a uma outra observação: a de que não existe a menor necessidade de intervenção penal sobre essa matéria.
Com efeito, se pensarmos que atos sexuais (independentemente do sexo dos envolvidos) praticados dentro de unidades militares podem comprometer o serviço e conduzir ao descrédito social uma instituição que depende bastante de sua honorabilidade, ainda assim podemos afirmar que o modo de reprimir ou prevenir esse tipo de comportamento não precisa ser através de intervenção penal, porquanto há outros modos eficientes de fazê-lo. Para os militares, a responsabilização disciplinar é particularmente grave. Crime para quê? Para gerar efeitos estigmatizantes, claro.
Andou bem a PGR. Pena que seja uma medida pontual. O país realmente precisa é de uma reforma geral de sua legislação, que inspire uma nova mentalidade entre os brasileiros.
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