sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Trabalho escravo: mais um pequeno passo

Após anos e anos de enrolação vigarista, a despeito dos esforços de setores mais decentes do Congresso Nacional, a PEC do trabalho escravo retornou à pauta da Câmara dos Deputados em maio deste ano. Mas como a proposição já está aprovada pelo Senado, a turma empenhada em barrar a matéria precisava engendrar mais alguma chicana para impedir a aprovação. A estratégia escolhida foi dizer que, antes de mudar a constituição, era necessário definir claramente o conceito de trabalho escravo. Um conveniente argumento de segurança jurídica.

Coube então à Comissão Mista de Consolidação de Leis e Regulamentação de Dispositivos Constitucionais a tarefa de propor um projeto de lei regulamentando o tema. Naquele momento, pensei comigo: "Pronto: mais alguns anos de omissão criminosa".

Confesso que, com imensa surpresa, soube que a tal comissão aprovou o texto do projeto de lei ontem, em pouco mais de quatro meses. Com isso, a PEC poderá finalmente ser votada. Será que agora a coisa vai? Acho que sim. Mas não se engane: nossos valorosos congressistas estão mais uma vez aplicando a prática de dar os aneis para conservar os dedos. A aprovação da PEC será anunciada com todo o estardalhaço, para mostrar o compromisso da classe política com a justiça social no campo. A mídia, sempre atrelada a quem pode lhe render mais dinheiro, p. ex. através de contratos de publicidade, divulgará essa perspectiva. Mas o povo não saberá que o ouro é de tolo e a vitória, de Pirro.

Depois de supostos debates, a comissão definiu trabalho escravo com base nos seguintes parâmetros:

  • "submissão a trabalho forçado, exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, ou que se conclui da maneira involuntária, ou com restrição da liberdade pessoal"
  • "submissão a jornada exaustiva, quer sujeitando o trabalhador a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto"
  • "cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho"
  • "manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho ou a apropriação de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho"
  • "restrição, por qualquer meio, da locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com empregador ou preposto"

Você realmente acha que essa tragédia vai acabar?
Não com os métodos que vêm sendo empregados.
A malinagem começa a ser percebida pelo fato de que a comissão passou esses meses todos trabalhando para chegar a uma redação que, no final das contas, é apenas um aprimoramento sutil do texto que já define o crime de redução à condição análoga à de escravo (art. 149 do Código Penal, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 10.803, de 2003). Dez anos após a aludida lei, não se avançou na matéria e, inclusive, foram mantidos equívocos conhecidos, como a previsão de que só há ilicitude se a vigilância no local de trabalho for ostensiva, brecha deixada para que os exploradores possam ficar impunes, em caso de vigilância dissimulada. E isto em tempos de popularização da tecnologia e expansão do trabalho escravo urbano.

Seja como for, o que é ruim na origem não tem como se salvar. Sempre em nome da segurança — rectius: da proteção dos escravizadores —, foram engendrados três mecanismos propensos a esvaziar a eficácia da norma.

O primeiro é a previsão de que a expropriação das terras somente pode ocorrer quando a exploração do trabalho escravo for realizada diretamente pelo proprietário das terras. Em princípio, esta ressalva faz todo o sentido, evitando que um inocente seja punido por atos de terceiros. Os parlamentares se lembraram de resguardar o proprietário que, estando distante, não sabe que seus prepostos perversos estão escravizando pessoas sem a sua ordem e conhecimento.

O que os parlamentares fizeram questão de esquecer foi nada menos que a realidade. Dentre as muitas formas de assegurar a própria impunidade, está a ação de atribuir a responsabilidade aos administradores das fazendas. Por meio de uma cadeia de comando, tenta-se dificultar a apuração de responsabilidades, sabendo-se que, na dúvida, os acusados serão inocentados. Insuficiência de provas. Assim, o dono não sabe o que faz o seu gerente; o gerente não sabe o que faz o capataz; o capataz não sabe o que fizeram os empregados enfurnados no mato no meio dos trabalhadores. O argumento é sempre o mesmo: o local do trabalho era distante da sede da fazenda e de difícil acesso. Eu não ia lá e por isso não sabia o que se passava. Resultado: absolvição.

Para conhecer essa tese defensória, os congressistas não precisavam sequer sair do prédio: há uns tantos deputados e senadores acusados de escravizar seres humanos e eles se defenderam exatamente assim. Mas, curiosamente, ninguém se lembrou de pensar em procedimentos de segurança em favor das vítimas.

O segundo estratagema é o condicionamento da exploração a uma sentença penal condenatória. Originalmente, a ideia era permitir a expropriação a partir da constatação do fato em si do trabalho em condições análogas à escravidão. Assim, uma diligência do Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho seria suficiente. Afinal, é um meio idôneo de prova. Mas os advogados internos dos exploradores trataram de condicionar a medida ao reconhecimento de crime, não do fato em si. E aí surgem todos os condicionamentos próprios do processo penal, inclusive a absolvição por falta de provas e especialmente a prescrição.

Com sua pena máxima cominada em 8 anos de reclusão (há duas hipóteses de majoração), a prescrição se dá em 12. Mas se o acusado for maior de 70 anos, o prazo é reduzido pela metade. No judiciário brasileiro, arrastar um processo por mais de 6 anos é trivial, ainda mais para quem conta com bons advogados. Mas essa é a situação considerada a pena máxima. Digamos que o acusado seja condenado à pena mínima, módicos 2 anos de reclusão: prescrição em 4. Nem precisa reduzir à metade para vê-la aparecer. As terras permanecerão nas mesmas mãos, para mais alguns anos de exploração. Afinal, o direito de propriedade é sagrado.

O último malfeito, consequência imediata do tópico anterior, é postergar a expropriação para depois do trânsito em julgado da dita sentença penal condenatória. Embora seja uma medida previsível, traz como efeito prático a impossibilidade de iniciar o procedimento expropriatório durante longos anos, tempo suficiente para que, através da prescrição ou eventuais outras hipóteses, a sentença não transite em julgado e a impunidade seja assegurada, com base na lei.

Estas considerações nada têm de inéditas. São até bastante conhecidas. Só os congressistas é que parecem não ter conhecimento delas. E, certamente, não se importam.

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