Sem adentrarmos ao mérito da ação penal, temos que, pelo menos em tese, a imputação de agressão realizada por um indivíduo contra sua namorada, poderia, dentro do conceito lógico-legal, ser tutelada pela Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06). Entretanto, a ratio legis requer sua aplicação contra violência intra-familiar, levando em conta relação de gênero, diante da desigualdade socialmente constituída. O campo de atuação e aplicação da respectiva lei está traçado pelo binômio hipossuficiência e vulnerabilidade em que se apresenta culturalmente o gênero mulher no conceito familiar, que inclui relações diversas, movidas por afetividade ou afinidade. No entanto, uma simples análise dos personagens do processo, ou mesmo da notoriedade de suas figuras públicas, já que ambos são atores renomados, nos leva a concluir que a indicada vítima, além de não conviver em relação de afetividade estável como o réu ora embargante, não pode ser considerada uma mulher hipossuficiente ou em situação de vulnerabilidade.
Há algumas outras decisões de tribunais estaduais, na mesma linha.
Em sentido oposto, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará julgou, na manhã de hoje, conflito negativo de jurisdição no qual se discutia se determinado processo, instaurado a partir de acusação de estupro de vulnerável, deveria ou não ser processado perante a vara privativa dos feitos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher. No caso, a 4ª Vara Penal de Marabá considerou aplicável a "Lei Maria da Penha" diante da informação de que acusado e vítima eram namorados. Contudo, a Vara de Violência Doméstica e Familiar de Marabá declinou da competência alegando que a aludida lei "não se aplica simplesmente pelo fato de a vítima ser mulher, 'mas sim a circunstância de a ofendida ser incapaz de resistir (por questão de imaturidade ou deficiência física ou psicológica) à ação delituosa', citando precedentes do Superior Tribunal de Justiça e de tribunais estaduais".
O Procurador-Geral de Justiça também sustentou que a norma tutelar se aplica ao crime "motivado pela vulnerabilidade da vítima em relação ao ofensor, em decorrência de seu gênero", caracterizada ainda a relação íntima de afeto prevista pela lei de regência, não havendo provas do envolvimento entre acusado e ofendida, que se teriam resumido a “relações sexuais ocasionais”.
Relator do feito, o Des. João José da Silva Maroja não concordou com a tese, destacando que a proteção da mulher é uma questão de direitos humanos. Foi acompanhado por todos os integrantes do Tribunal Pleno presentes à sessão. Eis o voto:
O presente caso se encontra instruído apenas com as informações coligidas durante o inquérito policial, do qual consta o depoimento da suposta ofendida, R. G. S., assistida pela mãe, ocasião em que declarou que, “no mês de julho de 2011, começou a ‘curtir’” com o acusado, engravidou e este parou de procurá-la, para não assumir a paternidade.
A mãe da adolescente disse que esta “começou a se relacionar” com o acusado, passando “dias sem dormir em casa”. Aduziu que a menor se envolvera sexualmente com outro homem, antes, e fugia da escola para se encontrar com ele.
A irmã da ofendida foi quem se referiu à relação entre os envolvidos como um namoro que teria durado cerca de um ano.
O acusado disse ter “ficado” com a adolescente algumas vezes, por ser apaixonada por ele, tanto que o procurava em sua casa, onde mantinham relações sexuais. Alegou não saber se é o pai do filho da mesma, porque ela teria ficado com outros cinco homens.
Estes são os únicos elementos que temos à disposição, lembrando que a presente análise deve ser perfunctória, porque se cuida apenas de decidir o órgão jurisdicional competente, sendo vedada incursão pelo mérito. Em consequência, esta corte não pode firmar um juízo conclusivo acerca de o caso em apreço implicar em violência de gênero, mas tão somente decidir se o caso apresenta requisitos suficientes para ser interpretado dessa forma, com base em que se decidirá o juízo competente.
Esclarecido isto, temos que o próprio acusado admite um relacionamento com a adolescente, ao longo de alguns meses. Mesmo que para ele não houvesse nenhum interesse de compromisso, é ele quem diz que a jovem estava apaixonada e o procurava em sua casa. Daí se depreende que se locupletou do sentimento da jovem para conseguir relações sexuais o máximo de vezes que pudesse.
A meu ver, esta particularidade preenche o sentido da “Lei Maria da Penha”, no que tange à ação criminosa ser decorrência de alguma forma de abuso no contexto de relações íntimas de afeto, tendo o acusado convivido com a ofendida independentemente de coabitação (art. 5º, III). No caso, a intimidade não deve ser entendida no contexto do sentimento, mas do fato de ter havido relações sexuais consensuais, íntimas por natureza.
Aduza-se que o presente caso traz consigo a singularidade do próprio tipo penal denunciado — estupro de vulnerável —, no qual a violência decorre de uma valoração da ordem jurídica: não precisa haver violência real, senão um juízo normativo que reconhece certos indivíduos como incapazes de deliberar sobre a própria vida sexual, em consequência de uma vulnerabilidade que não é material, mas jurídica, associada por lei a certas características pessoais, no caso a idade inferior a 14 anos.
Posso ainda acrescentar que o acusado, por ser heterossexual, decidiu manter relações sexuais com a ofendida justamente por se tratar de uma mulher, argumento que me parece reforçar a conclusão aqui sustentada.
O argumento defendido pelo juízo suscitante, e corroborado pela Procuradoria-Geral de Justiça, de que a “Lei Maria da Penha” somente pode ser aplicada em situações que evidenciem a fragilidade real da mulher em relação ao homem, não parece minimamente sustentada no texto expresso da norma, seja porque todas as alusões feitas a “mulher” ou “mulheres” nunca apresentam qualquer qualificativo, exceto a óbvia e genérica “mulheres em situação de violência doméstica e familiar”, seja porque o art. 2º dispõe, ostensivamente, que “toda mulher”, sem exceção, independentemente de circunstâncias que as qualifiquem, são abrangidas pelas normas em questão.
A restrição, estabelecida nos precedentes de tribunais estaduais citados, esvazia o sentido tutelar da “Lei Maria da Penha”, ainda mais quando lembramos o seu art. 6º, segundo o qual “a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”. E constitui informação elementar que os direitos humanos se caracterizam por sua universalidade.
Sob estes argumentos, firmo minha convicção quanto à caracterização, em tese, de um caso de violência de gênero na hipótese dos presentes autos, motivo pelo qual declaro a competência em favor da Vara de Violência Doméstica e Familiar de Marabá.
É como voto.
Belém, 23 de outubro de 2013.
Des. João José da Silva Maroja
Relator
2 comentários:
Interessante a decisão, de fato um avanço em um tema que precisamos muito estabelecer decisões como essa. Porém, fica uma pergunta: caso um deputado mantivesse, em sua casa, relações sexuais esporádicas com uma menor de idade em idade de vulnerabilidade e, além desse fato, a agredisse. Como seria a decisão do desembargador e do Tribunal? Seria aplicada a Lei Maria da Penha?
Encaminhe um e-mail ao desembargador e outro à assessoria do tribunal. Estou certo de que sua pergunta será respondida. Os endereços estão disponíveis no site do tribunal.
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