sábado, 30 de maio de 2009

Que exemplo se quer?

Alinhadíssimo a correntes garantistas e democráticas, bem como a posicionamentos da Criminologia Crítica, quando entro em sala de aula no primeiro dia, numa turma de Direito Penal I, a primeira coisa que digo aos meus alunos é que o sistema de justiça criminal é estruturalmente seletivo, que persegue os mais vulneráveis (pobres, sem instrução, estigmatizados, etc.) e é leniente com os mais afortunados; que a igualdade formal prevista na Constituição e nas leis é uma balela na prática; que as autoridades públicas atuam de acordo com seus preconceitos de classe ou pessoais. Ou seja, comigo, a primeira coisa que os alunos aprendem sobre o Direito Penal é um chamamento à razão, uma tentativa de abrir-lhes os olhos à realidade.
Devido a essa minha preocupação em ajudar meus alunos a desenvolver uma consciência cidadã, fundada em valores humanitários, sinto-me à vontade para lamentar a postura de diversas entidades da sociedade civil, reunidas esta semana em torno da Comissão de Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CNBB. A pauta: a concessão de habeas corpus em favor de Luiz Afonso Sefer.
Ando exausto de dizer que o brasileiro médio engendra opiniões cabais e dramáticas sobre os mais diversos assuntos, mas não se informa sobre eles. Para piorar, a mídia tem o compromisso de deseducar a sociedade, por meio da exploração do mundo cão, realizando aquilo que Eugenio Raúl Zaffaroni, um dos maiores penalistas da atualidade, chama de "propaganda völkisch" (1). Por conseguinte, frequentemente existe uma absoluta incapacidade da opinião pública de entender as limitações à prisão antes de uma condenação definitiva. Aliás, a latinidade em nosso sangue nos leva a essas posturas sempre passionais, desbragadas, irracionais. Brasileiro gosta de ardências e de paixões, não de reflexão e de bom senso.
O desinformado brasileiro confunde, ainda, o fato de que as distorções sociais, no que diz respeito à criminalidade e à violência, devem ser resolvidas pelo aumento das liberdades individuais, de modo que o poder público respeite inclusive os mais vulneráveis, e não por meio do incremento do arbítrio estatal, levando o poder público a atingir também os mais privilegiados. Ou seja, em vez de se resguardar os mais frágeis, o que se quer é socializar as suas misérias com os mais ricos, num raciocínio que, além de insensato, revela uma boa dose de ódio de classes.
Lamento ver pessoas e entidades valorosas reunidas em torno de um discurso equivocado, do qual já não fazem segredo. Ao menos isso. Vendo ou lendo ontem as entrevistas de algumas das pessoas reunidas na CNBB, ficou absolutamente nítido o motivo pelo qual entendem que a prisão de Sefer deveria ser mantida: para ele servir de exemplo. Isso foi dito com todas as letras. Aparentemente, acreditam que a prisão de um pedófilo poderoso teria a capacidade de contramotivar os demais pedófilos, ricos ou não, na medida em que estes saberiam do risco real de punição.
Se for esse mesmo o raciocínio, é lastimável. A começar porque, embora o Direito Penal seja construído em torno da ideia de contramotivação psicológica ao crime (esta é apenas uma das vertentes), a História tem demonstrado que quem realmente deseja cometer um crime o faz, independentemente de haver penas e de serem duras. No máximo, o indivíduo perseguirá a sua impunidade. Esse é um dos argumentos pelos quais eu e muita gente somos contrários às penas de morte e corporais: não cumprirem as finalidades que delas se esperam.
Aliás, conheci Sefer muitos anos atrás, numa palestra promovida pela União Espírita Paraense sobre pena de morte. Ele era o palestrante encarregado de defender a sanção capital. Recordo-me dele girando em torno daquela falácia estúpida: "fazemos isso, na verdade, para defender a vida". Antipatizei com ele desde aquele momento, portanto. Ser um deputado direitão, da bancada de apoio de governos que detestei, não ajudou a torná-lo mais simpático a mim. Por isso, engana-se quem pensa que lhe tenho qualquer amizade. Menos ainda comiseração. Minha piedade está ocupada com as vítimas desta violenta temporada de chuvas nas regiões pobres do país. Contudo, recuso-me a entrar na paranoia punitiva que ataco todo santo dia em minhas aulas.
Eu não sou contra a execração oficial e sistemática e a anulação individual do criminoso pobre. Sou contra a execração oficial e sistemática e a anulação individual de qualquer criminoso, rico ou pobre. E nem preciso ser garantista para afirmar isso. Posso ser, apenas, legalista. Afinal, a Constituição de 1988 está assentada nas bases da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da prevalência dos direitos humanos, da eliminação das discriminações, do valor da liberdade individual, etc.
Sou contra a prisão de tantas pessoas pobres, para dar ao Leviatã (não apenas o Estado em sentido estrito, mas também a sociedade civil) a falsa sensação de segurança. Mas não defenderei a prisão dos ricos como solução para esse abuso. Por mais que não se entenda isso, a gravidade ínsita ao delito não é motivo a determinar, necessariamente, uma prisão cautelar. Quem o diz é o Supremo Tribunal Federal. Eu apenas concordo. Uma pessoa só deveria sofrer consequências penais por causa das condutas que praticou, não por causa de suas condições sociais ou econômicas desfavoráveis, como é a realidade, ou altamente favoráveis, como se quer instituir.
Uma coisa é certa: dentre os controversos objetivos a que se destinam o Direito Penal e a sanção criminal e, por força de consequência, o instrumento da prisão cautelar , não está presente a exemplaridade, que é uma das mais odiosas de suas utilizações, banida pela consciência da civilização, mas utilizada todos os dias pelo Estado, contra os fracos, e perseguida pelos defensores destes fracos, tendo como alvo os fortes.
Para mim, é uma questão de coerência.

(1) A palavra völkisch é traduzida por Zaffaroni como "popularesca" e significa "um discurso que subestima o povo e trata de obter sua simpatia de modo não apenas demagógico, mas também brutalmente grosseiro, mediante a reafirmação, o aprofundamento e o estímulo primitivo dos seus piores preconceitos" (In: O inimigo no Direito Penal. 2ª edição, Rio de Janeiro: Revan, 2007).


PS Como já sei que respostas esperar, vou logo avisando que aplicarei o meu "filtro do índice" quanto a eventuais comentários: eles poderão ser publicados, mas só se merecerem. Portanto, se a linha for aquela arenga de sempre sobre bem e mal, passe reto.

6 comentários:

David Carneiro disse...

1)Yúdice, não acompanhei de perto o caso. Mas, me parece que o juiz pediu a prisão por conveniência da instrução, visto que haveria indícios de coação de algumas testemunhas. Se for isso mesmo, aí acho que são outros 500...Mas, no mais, concordo com os seus argumentos sobre a "punição exemplar".

2) Um dia, assistindo a BBC, vi um debate sobre o aumento de penas para certos crimes na Inglaterra. De um lado estavam os "liberais" e, do outro, os "conservadores". Em um dado momento, um jurista liberal disse que já havia um consenso de que penas mais duras não inibem a criminalidade. Em resposta um tanto visceral, um jornalista (algo do tipo Datena) retrucou: "consenso de quem? Com quem vocês acordaram isso?"

3) É claro que a argumentação do jornalista estava fundamentada em consensos de certos círculos acadêmicos. Mas, no entanto, é visível que as posições garantistas batem de frente com certos sensos comuns profundamente arraigados em todo o mundo, diga-se de passagem. Não acho que o jornalista estivesse sendo desonesto na sua colocação. O caso é de desconhecimento mesmo.

4) Então, acho que é importante promover mais debates públicos sobre o tema. Senão a "turma dos direitos humanos" vai continuar sendo avacalhada por aí, com prejuízo para outros grupos além da população carcerária.

Um grande abraço!

Rodrigo disse...

Yúdice, concordo que esse tipo de manifestação pública, no sentido de dar ao Direito Penal uma função de "resposta à sociedade" é prejudicial e atenta contra o Estado Democrático de Direito e ao conjunto de garantias constitucionais. Entretanto, no caso concreto, fundamentando-se a prisão preventiva na salvaguarda da instrução criminal, na preservação da prova, havendo fatos concretos que demonstram que o acusado buscou cooptar ou intimidar testemunhas, aliciar a própria vítima não seria perfeitamente constitucional a prisão cautelar? Outra: se relator teve tanta segurança para deferir liminarmente a ordem, porque se acautelou de exigir a presença do acusado em seu gabinete? Há algo que o relator possa dizer ou ouvir do paciente que interfira na sua decisão? Nesse sentido, causando a decisão certa estranheza do ponto de vista jurídico, não há um mínimo de legitimidade na manifestação da sociedade civil, através das pessoas que estão a frente do movimento contra a pedofilia? E por último, ainda que nos tenhas demonstrado com uma análise bastante fundamentada a tua visão sobre o caso, o fato de seres assessor de um magistrado que anteriormente indeferiu pedido de prisão preventiva no mesmo caso não te torna, de uma certa maneira, parcial para tratar a questão? Deixo as provocações não como algo pessoal, pois te admiro e sou leitor assíduo do blog, mas para o debate e crítica. Um abraço

Yúdice Andrade disse...

Caríssimo David, acredito ser essencial perceber que consensos sociais são uma utopia. Por isso, não me verás adotar argumentos nessa linha. Não creio que nem os garantistas nem os de lei e ordem possam justificar-se em qualquer argumento relacionados a consensos. E eu temo pelas ideias da maioria.
Daí resulta que se deve buscar sempre uma racionalidade no discurso, pois é isso que se pode enfrentar. Note que a minha base foi: a Constituição deste país elegeu alguns fundamentos e eles são garantistas. Ponto. Se não é para ser assim, mudemos a Constituição (o que de modo algum é o meu interesse). Logo, enquanto a Constituição for o que é, defenderei pontos de vista como este.
Abraço.

Rodrigo, antes de mais nada, obrigado pela atenção ao blog e pela fidalguia do seu comentário, ao qual respondo nestes termos:
1. No caso Sefer, os elementos que apontam a tentativa de influenciar ou cooptar testemunhas (quiçá intimidá-las) me parece o único argumento relevante para fundamentar a prisão. Deliberadamente, evito comentar o caso concreto (explicarei o motivo no item 4). Limito-me a afirmar que essas atitudes são, de fato, motivo plausível para decretar a prisão. Mas penso que Sefer, concretamente, não conseguiu prejudicar a prova testemunhal. Aliás, ele não conseguiu barrar a CPI, não conseguiu manter o mandato, não conseguiu nada do que pretendia. Pode ser rico e influente, mas tem sofrido sucessivos reveses e não conta com apoios nem entre seus pares ou ex-pares. Por isso, pessoalmente, duvido do seu atual poder de fogo e duvido de uma prisão baseada em especulações.
2. Quanto à legitimidade do discurso das instituições, penso que ela sempre existirá. Isto é: sempre será legítimo insurgir-se, protestar, querer mudar as coisas. É o papel da sociedade civil. Eu questionei apenas o discurso, não os objetivos. Aliás, sou exatamente o tipo de pessoa que tende a defender o uso social da propriedade, o fim de privilégios de classe, o meio ambiente, a justiça social e outras bandeiras frequentemente menosprezadas. Mas procuro escolher meus argumentos. Não quero justiça social através do ódio entre as classes. Não quero meio ambiente saudável com os modos de agir do Greenpeace, e por aí vai. O que questionei foi gente instruída e experiente usar os mesmos argumentos dos leigos e desinformados.
3. Quanto à determinação do Des. Raimundo Holanda, para que Sefer se apresente a ele, passei dois dias tentando entender o que isso significava. Estou quase concluindo uma explicação para isso, mas escreverei uma postagem específica sobre, talvez amanhã.
4. Quanto ao fato de eu ser assessor do Des. João Maroja, não creio que isso me retire a isenção. Até porque quem decide é ele, não eu, obviamente. Posso te assegurar que quem decide é ele. Minha visão sobre o caso é a de um estudioso do Direito Penal e pronto. Tenho certas convicções, como todos, mas por ora evito externá-las porque meu chefe no tribunal, qualquer hora dessas, pode ser chamado a decidir ou a participar da decisão sobre o caso Sefer e quero minimizar esse tipo de especulação que mencionas (embora nunca fiquemos livres da boca do povo).
O fato é que as decisões no caso Sefer em nada atingem a minha vida, por isso insisto que minha visão não está comprometida. No máximo, sou parcial a favor de um bom Direito Penal, que talvez um dia tenhamos. Bem a propósito, a imprensa publicou a íntegra da decisão por meio da qual o Des. Maroja indeferiu a prisão preventiva. Nela, encontra-se um único argumento: o acusado tinha imunidade parlamentar. Só isso. Não há uma só vírgula acerca da existência, ou não, dos pressupostos da prisão preventiva. Sobre isso, ninguém sabe o que pensa o desembargador. Por isso, mais sensato não o prejulgar. Se ele decretaria a prisão, caso não houvesse a imunidade, nem eu sei dizer.
Muito bom o nosso debate. À disposição para prosseguir. Um abraço.

David Carneiro disse...

Yúdice,

Quando citei a reação do jornalista, sobre o "consenso garantista" foi só para ilustrar o quanto, para alguns, esses argumentos parecem absurdos. Foi mais pra fazer uma ponderação do que pra justificar a atuação das entidades referidas no post. Minha ponderação é de o acesso a esse tipo de formulação é muito restrito e vai te encontro a um poderosíssimo senso comum, que considero majoritário inclusive entre os acadêmicos de direito. Um grande abraço!

Wilson Franco disse...

Sabe de uma coisa??!!

A aplicação da Lei penal da forma como defendeste só vai ser utilizada quando todas as garantias presentes na Constituição também forem, e nisso eu concordo contigo plenamente!!!

Na verdade esse peso maior das mãos do estado sobre os mais pobres e os mais poderosos é resultado do clamor social pela tomada de providências, o que gera a arbitrariedade.

O que quero dizer com isso?! Chegou-se ao ponto em que os cidadãos brasileiros só querem ver um poderoso político ou empresário salafrário se !!!lascar!!! não importando que para isso se tenha que atropelar a Carta magna, ou a lei penal, pois, (aqui vai o aspecto medular da questão) o sistema que deveria garantir que se faça a justiça está provocando o efeito contrário!!!

A mesma coisa quanto aos estigmatizados: morou na periferia, é considerado traficante, bandido, e se uma bomba cair no meio do canal do barreiro e livrar a cidade de 20 ou trinta bandidos(já que a segurança pública não existe mesmo) pelo preço das vidas de milhares de seus familiares inocentes, já valerá à pena!

É claro que o Sefer tá pagando por alguma coisa que agente não sabe, deve ter cutucado quem não devia, mas por conhecer esse país sei que não vai acontecer nada a mais com ele e, aí vai minha opinião:
Se ele vai ficar impune mesmo, uns diazinhos na prisão já vão dar pelo menos um gostinho bom na nossa boca! vamos aproveitar estes dias e propalar pra todo o brasil ouvir(enquanto ele não é solto).

NO PARÁ POLÍTICO QUE ATENTA CONTRA A LEI, A MORAL E A HUMANIDADE É PUNIDO!!!!!

Yúdice Andrade disse...

Eu entendo, David. E tens razão nas ponderações.

Caro Wilson, como disseste, estamos de pleno acordo sobre como as coisas deveriam ser, num mundo ideal. Se assim é, nada a discutir.
Quanto ao argumento de que, dada a impunidade que sempre se espera em casos assim, alguns dias de prisão serviriam para lavar a alma, trata-se de argumento emocional. "Humano, demasiado humano". Não recrimino de modo algum. Volta e meia, também me lanço a esses sentimentos. É consequência de termos sangue nas veias.