'Domínio do fato' poderá punir mão de obra escrava
Ministério Público do Trabalho defende que teoria do mensalão seja usada contra empresas
08 de julho de 2013 | 2h 07
Fernando Gallo - O Estado de S.Paulo
Assim que for consolidado o julgamento do mensalão, no Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público do Trabalho vai utilizar a teoria do domínio do fato para buscar a responsabilização judicial de empresas que utilizam mão de obra escrava.
Na mira estão empresas que comandam as respectivas cadeias produtivas, mas terceirizam a produção justamente para tentar se dissociar da responsabilidade da contratação de funcionários que trabalham em condições análogas à da escravidão.
Entre os setores investigados pelos procuradores, e nos quais eles dizem ser comum a prática, estão o da construção civil, o de frigoríficos, o sucroalcooleiro, de fazendas e vestuário. A título de exemplo, só nos últimos dois anos viraram alvo de operações do Ministério Público a construtora MRV, maior parceira do governo federal no programa Minha Casa, Minha Vida, a grife multinacional Zara e o grupo GEP, detentor das marcas de roupas Luigi Bertolli, Cori e Emme.
Todas essas empresas estão no topo de cadeias produtivas nas quais auditores e procuradores do trabalho encontraram o uso de mão de obra escrava durante as operações - jornadas exaustivas de até 16 horas, pagamento por produtividade e moradia precária no mesmo local do trabalho. Todas terceirizavam a produção, subcontratando outras empresas que forneciam a mão de obra e o produto, e todas alegam que não tinham conhecimento das condições a que os fornecedores submetiam funcionários. As empresas sustentam que não podem ser responsabilizadas porque os funcionários não eram seus.
A súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, de 2011, proíbe a terceirização da atividade-fim das empresas. Significa dizer que uma fábrica de sorvete pode terceirizar atividades-meio do trabalho, como o serviço de limpeza, mas não pode terceirizar a produção do sorvete. Contudo, há questionamentos sobre ela no STF, que ainda não pacificou entendimento sobre o assunto.
Coordenador nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho, o procurador Jonas Ratier Moreno refuta a tese das empresas do topo da cadeia em que foi flagrado o trabalho escravo. Ele é um dos entusiastas do uso da teoria do domínio do fato na acusação dessas empresas. "Será mais um material para a gente alegar. Esse julgamento (do mensalão) vem consolidar muitas posições, e principalmente essa. De que a empresa quando assume essa atividade, contrata alguém para produzir esse produto e coloca para vender, ela tem que saber que tem responsabilidade objetiva por esse produto", afirma.
Moreno diz também que as empresas "não podem dar uma de avestruz e não monitorar a cadeia produtiva", e utiliza o exemplo das confecções de roupa. "Pergunta: já que são confecção, onde está a fábrica? Vocês monitoram o produto? Não estão sendo negados direitos? Muitas vezes terceirizam para ter um produto barato. Em que condições se costura uma peça a R$ 0,20? Não pode alegar ignorância."
Amparo. A tese do coordenador encontra eco entre os pares. Chefe da instituição, o procurador-geral do Trabalho, Luís Antônio Camargo, lembra que o Ministério Público do Trabalho já vem, desde meados da década de 1990, buscando a responsabilidade objetiva das empresas do topo das cadeias produtivas, e endossa o uso do domínio do fato como mais um instrumento jurídico para o Ministério Público do Trabalho. "Essa linha de argumentação vem à baila com muita força na medida em que é adotada pelo Supremo Tribunal Federal. Você passa a ter uma jurisprudência muito significativa."
Os procuradores do Trabalho pretendem incentivar colegas de outras áreas a também usarem o instrumento.
A teoria do domínio do fato foi desenvolvida por Hans Welzel em 1939, mas hoje tem em Claus Roxin o seu grande expoente. Mesmo considerando que os avanços teóricos demoram décadas para aportar aqui no Brasil, não pode ser considerada uma novidade de modo algum. Tenho em mãos uma edição do manual de direito penal do bom e velho Damásio de Jesus, edição de 2003, dez anos atrás, que já tratava do tema. E não era a primeira edição a fazê-lo.
Vale lembrar que leis, quando bem elaboradas, são inspiradas em orientações teóricas, mas a lei, em si mesma, não existe para fixar teorias. É o intérprete que, no instante de enfrentar o caso concreto, fará a aplicação da norma de acordo com alguma teoria. Ou ao menos assim deveria ser. Por isso, causa-me surpresa a notícia de que o Ministério Público do Trabalho vai aguardar o desfecho do caso do "mensalão" para, somente então, perseguir a responsabilização de empresas exploradoras de trabalho escravo.
Responsabilização penal ou não penal, pouco importa. A teoria existe e pode ser suscitada como base de argumentação, porque os fatos estão aí, à disposição do intérprete. Ora, convenhamos: se mesmo que não houvesse lei, doutrina, jurisprudência, etc. e tal, o juiz não pode eximir-se de decidir, qual a lógica de se esperar o trânsito em julgado de um processo específico para que o MPT cumpra a sua missão institucional? Só para poder alegar um precedente?
A meu ver, a coisa está mal explicada.
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