Outro questionamento que recebi foi quanto à postagem "Absolvição", da quinta-feira passada. Ela se refere ao caso da mulher que matou o próprio pai depois de ser estuprada por ele desde os 9 anos de idade e ter com ele 12 filhos. Como disse, para o público em geral a decisão teve um efeito de lavar a alma. Mas o leitor Gabriel Parente, que foi meu aluno e não tem muita simpatia pelo Ministério Público, questionou a atitude do promotor de justiça, que pediu a absolvição da ré para, em seu entendimento, "satisfazer a sociedade com posições humanitárias e politicamente corretas". Na verdade, o grande questionamento de Gabriel é como foi possível absolver a autora intelectual do crime se os dois executores foram condenados e se encontram cumprindo pena.
Inicialmente, respondo a Gabriel quanto ao fato de o MP instaurar uma ação penal e depois pedir a absolvição do réu. Não há qualquer inconveniente nisso. Quando a denúncia é oferecida, parece ao órgão ministerial, a partir de elementos idôneos, que certa pessoa pode ser autora do crime. Mas isso é uma hipótese plausível, não uma certeza. A certeza só virá, se vier, após a instrução processual. E se ela não vier, o mais correto é que o próprio denunciante reconheça a fragilidade da imputação e peça a absolvição do réu. Aliás, é interessante que a Constituição de 1988 mudou a nomenclatura "promotor público" para "promotor de justiça", o que pode ser interpretado como a intenção de mostrar que a função do Parquet não é e nem deve ser acusar (como muitos integrantes da instituição, ridiculamente, ainda pensam ser), mas aplicar corretamente o Direito, inclusive o penal, ainda que isso implique em pedir absolvições ou benefícios para os acusados ou condenados.
Neste caso, a irresignação de Gabriel não tem a ver exatamente com o pedido de absolvição, mas com o seu fundamento: reconhecer que a ré agiu de forma não reprovável (ausência de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, o que é um conceito técnico e pode não ser corretamente compreendido por quem não seja iniciado no Direito Penal).
Para entender melhor o caso, é preciso destacar que o pedido de absolvição feito pelo promotor, aparentemente, não se prendeu apenas ao passado (a mulher reagiu a uma vida de maus tratos, violação e anulação), mas atentou para um risco iminente: consta que o homem pretendia estuprar uma de suas filhas-netas. Assim, como já aconteceu tantas vezes antes, a vítima suporta a violência que sofre, mas se rebela quando percebe que a violência atingirá alguém que ela ama, ainda mais uma filha.
Naturalmente, para que a tese de inculpabilidade prevalecesse, pelos motivos alegados, seria necessário demonstrar que a mulher não dispunha de outros meios para prevenir o estupro, mas os fatos denotam o contrário. Afinal, se ela foi capaz de contratar dois assassinos de aluguel, decerto que teria acesso a outras opções, inclusive fugir. Tecnicamente, a tese ministerial é estranha e pouco crível, mas é exatamente assim que se faz o tribunal do júri: afastando a técnica para julgar de acordo com os valores e sentimentos do lugar onde aconteceu o fato. Não justifica, mas talvez ao menos explique. A grande surpresa, mesmo, é esse caminho ter sido trilhado pelo Ministério Público.
Destaco, ainda, que qualquer julgamento moral sobre a mulher que passou décadas sendo violada e deu fim a esse ciclo com um homicídio é pernicioso. Sei que, por impulso, perguntarão por que ela não fugiu, não matou antes ou tantas outras coisas. É a síndrome de Estocolmo, provavelmente, que leva a vítima a desenvolver uma relação de tanta dependência com seu agressor, que não foge mesmo quando pode. Por isso mesmo, recomendo mais uma vez a leitura do livro Tigre, tigre, sobre o qual já escrevi.
Em suma, este caso de simples não tem nada. E demonstra por que o Direito Penal apaixona, mesmo que tudo em seu redor seja tão feio e triste.
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