Em minhas aulas de ontem, falava aos alunos de Direito Penal I sobre os princípios reitores de nossa disciplina e dei alguma ênfase ao princípio da insignificância. Alguém me perguntou sobre a aceitação prática da tese e respondi que ela vem sendo admitida com frequência crescente no Poder Judiciário, o que não impede a constatação de que o afastamento do crime pela pouca expressão do dano causado ainda é uma ideia polêmica, em torno da qual a maioria dos juízes recalcitra bastante.
Por coincidência, deparo-me hoje com matéria na qual se busca demonstrar que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ainda hesita muito em aplicar o princípio. De acordo com o texto, fica claro que, mesmo entre os magistrados que o admitem, seu cabimento é limitado a prejuízos realmente muito baixos, na casa dos 30 reais, p. ex. Eu aceito mais do que isso. Alguns entendem que, mesmo irrisório o prejuízo econômico, a reiteração da conduta deve ser punida em nível penal — ideia que rejeito frontalmente, por duas razões, uma técnica, outra ética.
A razão técnica é que a conduta insignificante não é típica; logo, tanto faz ser praticada uma ou cem vezes, continua não sendo típica. Não existe nenhum fundamento no Direito Penal autorizando a criminalização de um certo comportamento originariamente lícito em face do número de vezes que foi cometido. Mal comparando, chutar uma árvore não é crime. Se eu chutar uma várias vezes ou se chutar um vegetal em risco de extinção, continuará sem o ser. Assim, a questão consiste em resolver se a subtração ínfima é ou não típica. Se não for, como de fato não é, a reiteração de nada importa.
A razão ética pertine aos efeitos gravosos, às vezes irreversíveis, da criminalização sobre uma pessoa que, se cometeu ato dessa espécie, provavelmente já é vulnerável.
Em suma, trata-se sem dúvida de um princípio em construção. E para que seja bem construído, precisamos debatê-lo com seriedade, senso de realidade e preocupação com os efeitos práticos da deliberação.
6 comentários:
Beleza, que tal supormos que você é dono de um supermercado, ou atacado, em uma região periférica. Daí vem um cidadão uma vez um único fardo de arroz, por exemplo, que deve custar em torno de 40 reais. Ele é flagrado e conta que a mãe, avó e não sei mais quem tem diabets, aids, dengue, etc., e é liberado. Daí ele volta no mesmo supermercado e repete tudo de novo. Faz isso umas 4 vezes, e aí?
Que tal se o exemplo for se a sua carteira, que continha uns 40 reais, for furtada dentro do supermercado? O indivíduo é detido e você não se manifesta pela prisão. Passados dois meses ocorre o mesmo fato. E aí?
E caso o acusado não fosse identificado e preso, você não acharia um absurdo ter sido furtado dentro de uma loja? Você tem todo o direito de acionar a loja judicialmente, mas lembrando que são só 40 reais e uma penca de docs. e cartões que um vulnerável levou.
Como explicar que furto não é típico? Tá na reforma do Código?
Você não acha que o parâmetro de insgnificância deve levar em consideração, para além do mero valor pecuniário, a importância deste valor para a vítima?
Comparando dois casos: um furto de R$ 30,00 de um juiz e o mesmo furto operado contra uma empregada doméstica assalariada. No primeiro caso, a conduta terá pouquíssima relevância, porém, no segundo caso a quantia furtada é considerável tendo em vista as condições da vítima.
Ou estou falando bobagem?
[Longo suspiro.]
Das 11h41, caso você não tenha percebido, este blog tem conteúdo jurídico. Não exclusivamente, mas a discussão de temas relativos ao Direito Penal é uma de suas razões de existir. Você também não deve ter percebido, mas esta postagem exige algum conhecimento prévio da matéria, haja vista que não me preocupei em esclarecer os termos técnicos empregados.
No mais, nenhuma discussão séria sobre política criminal se baseia na minha carteira ou no meu supermercado. O individualismo e o passionalismo ficam para os programas sensacionalistas de TV e rádio, que dispensam toda e qualquer racionalidade.
[Outro suspiro.]
Das 12h03, eu não escrevi que furto não é típico, até porque isso seria uma contradição em termos (saca o que é?). Escrevi que uma conduta em princípio típica pode não o ser no caso concreto. Caso você não tenha percebido, a postagem era sobre "princípio da insignificância". Se você sabe do que se trata, deveria ter entendido.
[Enfim, uma manifestação útil!]
Não é bobagem, Victor. Muita gente defende a tese que você mencionou. Não concordo com ela, embora compreenda a sua lógica. E não concordo porque a interpretação precisa ser objetiva, p. ex.: 20 reais constituem ou não constituem dano econômico apreciável. Ou é, ou não é, independentemente da vítima.
Se não agirmos assim, criaremos uma distorção no Direito Penal, porque os bens jurídicos serão valorados conforme o freguês. É o primeiro passo para oficializar que a vida, a liberdade, a honra de uns vale mais do que a de outros. Fica fácil fazer essas afirmações quando a questão é dinheiro, mas precisamos pensar nas implicações. Além do mais, isso quebraria o princípio da isonomia e a própria dignidade humana.
Tá, mas gostaria de saber se você processaria ou não, ou se no mínimo não acharia um absurdo, ser furtado dentro de um estabelecimento comercial, mesmo que fosse por um vulnerável e o valor fosse 30 reais. É fácil fugir falando de discussões abstratas, mas segundo você isso nem deve ser ponderado em política criminal. Todas as possibilidades deveriam ser discutidas antes de reformas políticas, quem sabe assim não teríamos leis mais bem elaboradas ou mesmo fundamentações legislativas de acordo com a realidade de todas as partes, desde os vulneráveis ao consumidor. Eu processaria o estabelecimento em que eu tivesse minha carteira furtada.
Eu acho um absurdo ser vítima de um crime em qualquer lugar, embora alguns, decerto, causem-nos maior perplexidade porque nos oferecem uma ideia de maior segurança. Lembre-se, contudo, que o empresário é um cidadão, como nós, é também está forçado a acreditar que pode exercer sua atividade em segurança. O delito no interior do estabelecimento é algo que o prejudica - senão patrimonialmente, compromete sua imagem. E, em princípio, ele não tem culpa disso.
Mesmo um grande estabelecimento, dotado de segurança armado e circuito interno de TV, é permeável à ação de criminosos, a menos que submeta todo e qualquer visitante a uma revista. Eu, pelo menos, odiaria ser revistado. Então se entra um ladrão num supermercado ou shopping e furta alguém, a culpa é do estabelecimento? Somente por isso não.
Se você quer processar alguém, processo o Estado, a quem compete o dever de proporcionar segurança pública. Você não seria o primeiro a tentar essa aventura. Desconheço se alguém ganhou. Aliás, duvido.
Não é justo, com certeza.
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