Para iniciar estas reflexões, gostaria de trazer à baila um conceito central para se pensar a conformação e a articulação do poder político no Brasil. Refiro-me ao binômio patrimonialismo-estamento que Raymundo Faoro, inspirado em Max Weber, apresenta para construir sua interpretação do Brasil (desde as feitorias até a Era Vargas). Com efeito, em larga síntese, a tese de Faoro era de que - e ressalta-se que ela permanece atual na maioria de seus aspectos - o poder político no Brasil se articula, devido a uma herança lusitana, a partir de um Estado que é patrimonialista em seu conteúdo e estamental em sua forma. Patrimonialista porque os titulares do poder se apoderam do aparelhamento estatal de tal forma que acaba por gerar uma quase indistinção entre o que é bem público (Estado) e o que é bem privado; ou seja, trata-se da utilização dos espaços estatais para realização e administração de interesses de origem privada. Isso tem consequências sérias. O estamento, por outro lado, é o que dá forma a esse exercício patrimonialista do poder. Trata-se de uma verdadeira casta que assume o controle do Estado governando-o de acordo com seus interesses. Portanto, os estamentos, vistos a partir de Os Donos do Poder de Raymundo Faoro mostram-nos que, em determinadas circunstâncias, o Brasil é ainda pré-moderno. Temos uma sociedade de estamentos, que "ficam de fora" da classificação tradicional de classes sociais. Nas palavras de Faoro: "sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político - uma camada social, comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes - impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando. Esta camada muda e se renova, mas não representa a nação, senão que, forçada pela lei do tempo, substitui moços por velhos, aptos por inaptos, num processo que cunha e nobilita os recém-vindos, imprimindo-lhes os seus valores". Há, assim, brasileiros "diferentes" de outros brasileiros, circunstância reconhecida pela mais alta autoridade da nação recentemente, ao sugerir que o Ministério Público, antes de denunciar alguém, examine antes o seu curriculum. (sic)
Lênio Luiz Streck, "Crime e estamento: notas sobre a política criminal e o Direito Penal em Terrae Brasilis". In: Direito Penal & democracia. PINHO, Ana Cláudia Bastos de e GOMES, Marcus Alan de Melo. Porto Alegre: Núria Fabris, 2010.
Fico sempre muito satisfeito de saber que certas realidades atuais já haviam sido detalhadamente descritas há décadas. Elas espelham ideias que mesmo nós, leigos, intuímos de algum modo, por isso é bom quando um estudioso as coloca em termos, a partir de uma metodologia criteriosa. Além disso, os fatos estão aí para dar razão a esses grandes pensadores. O episódio a que Streck se refere, na última parte da transcrição, alude ao momento em que o então presidente Lula, cercado por inúmeras acusações de corrupção em seu governo e na sua base de sustentação no parlamento, saiu-se com essa pérola do horror. Recordo-me de quanto eu, seu eleitor, estremeci de ódio e indignação ao ouvir isso.
Um dos acusados, naquele momento, era justamente a figura viva que melhor sintetiza o binômio patrimonialismo-estamento descrito por Faoro, no Brasil de hoje. Aposto que os senhores conseguem identificar o sujeito.
2 comentários:
Caro professor, como diria e já disse o Prof. Edir Veiga, a sua divagação na opinião do mestre citado, é o insulamento das elites na máquina burocrática estatal.
Infelizmente, meu caro Alan, é um insulamento produtivo, altamente rentável para eles mesmos.
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