Muito em síntese, a menina começou a ser abusada sexualmente pelo próprio pai na infância (descobrir a idade exata aumenta a aflição que já existia desde os instantes iniciais da trama) e, na adolescência, engravida dele duas vezes. Na primeira, gera uma criança com síndrome de Down do qual se desconhece o nome, porque só é chamada de "Mongo", de mongoloide, o que chocou a assistente social (vivida por uma inesperada Mariah Carey) e causou má impressão até em mim. Revoltada com a perda de seu homem para a filha e incapaz de distinguir uma relação abusiva e violenta de uma consensual, Mary passa a odiar a filha e nunca move um dedo para ajudá-la. Quando o tal homem não está mais lá, submete-a a uma rotina de humilhações e trabalho doméstico forçado, com castigos que incluem golpes de frigideira na cabeça, fortes o suficiente para fraturar o crânio se a menina não conseguisse esquivar-se. A mãe também vira uma parasita, vivendo em sua poltrona enquanto a filha lhe serve, tudo às custas do cheque dado pelo governo para Precious e sua menina.A esta altura, eu já me pergunto como pode alguém durar tanto sem se matar ou matar alguém.
Como tantas vítimas de abuso sexual, Precious não cuida de sua aparência. É uma forma desesperada de, pela feiúra, deixar de ser atraente para o estuprador. Mas como estupro tem menos a ver com prazer sexual do que se pensa, porque essencialmente, é uma manifestação de poder, do desejo de aniquilar o outro, a tática se revela inútil. Precious é uma negra obesa, em pleno Harlem da década de 1980, que não interage com ninguém (não fala com as pessoas, não cruza o olhar com ninguém e constroi um mundo de fantasia, na qual ela é uma estrela famosa e adorada) e sequer é alfabetizada. O cenário é monstruoso.
A sorte da menina começa a mudar a partir de um ato que nos parece injusto, e talvez o seja de fato: é expulsa da horripilante escola pública porque está grávida de novo. A diferença entre lá e cá é que aqui ela estaria enregue à própria sorte, mas lá a escola providencia a imediata transferência para uma "escola alternativa", um projeto que funciona e transforma a vida de Precious e suas colegas de classe, todas meninas vulnerabilizadas pela violência, pelas drogas, pela maternidade precoce.
É interessante observar Precious aprendendo a ler, fazendo raciocínios mais complexos sobre sua vida, abrindo-se para as primeiras pessoas em que confia e começando a construir, enfim, a própria autoestima.
Ao contrário de Um sonho possível (EUA, dir. John Lee Hancock, 2009), em que uma mulher rica adota um rapaz negro, feio e sem nenhum futuro, dando-lhe sua família e permitindo que ele se torne rico e famoso graças ao futebol americano, Preciosa termina de modo abrupto, abrindo apenas uma especulação sobre qual deve ser o futuro da protagonista. Ficamos perdidos, como ela mesma certamente está. Mas há um novo sentido em sua vida e um objetivo. Isso deve lhe bastar. É bom que lhe baste.
Preciosa não é um filme leve nem fácil, mas é necessário, porque nos fala um pouco sobre coisas que precisamos saber, mas em geral não pensamos nelas.
O filme concorreu a várias premiações. Mo'Nique, por sua extraordinária atuação como Mary, foi laureada como melhor atriz coadjuvante no Oscar, Globo de Ouro e Screen Actors Guild Awards. Outro prêmio foi o Oscar de melhor roteiro adaptado. A estreante Gabourey Sidibe, que interpretou Precious, foi indicada ao Oscar de melhor atriz, mas perdeu para Sandra Bullock, justamente por Um sonho possível. Hollywood também não é civilizada o bastante para premiar uma Sidibe, quando pode premiar Bullock — que mereceu, sem dúvida. Mas Sidibe arrasou, sobretudo pelo muito que fez sem ter experiência.

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