
A esta altura, eu já me pergunto como pode alguém durar tanto sem se matar ou matar alguém.
Como tantas vítimas de abuso sexual, Precious não cuida de sua aparência. É uma forma desesperada de, pela feiúra, deixar de ser atraente para o estuprador. Mas como estupro tem menos a ver com prazer sexual do que se pensa, porque essencialmente, é uma manifestação de poder, do desejo de aniquilar o outro, a tática se revela inútil. Precious é uma negra obesa, em pleno Harlem da década de 1980, que não interage com ninguém (não fala com as pessoas, não cruza o olhar com ninguém e constroi um mundo de fantasia, na qual ela é uma estrela famosa e adorada) e sequer é alfabetizada. O cenário é monstruoso.
A sorte da menina começa a mudar a partir de um ato que nos parece injusto, e talvez o seja de fato: é expulsa da horripilante escola pública porque está grávida de novo. A diferença entre lá e cá é que aqui ela estaria enregue à própria sorte, mas lá a escola providencia a imediata transferência para uma "escola alternativa", um projeto que funciona e transforma a vida de Precious e suas colegas de classe, todas meninas vulnerabilizadas pela violência, pelas drogas, pela maternidade precoce.
É interessante observar Precious aprendendo a ler, fazendo raciocínios mais complexos sobre sua vida, abrindo-se para as primeiras pessoas em que confia e começando a construir, enfim, a própria autoestima.
Ao contrário de Um sonho possível (EUA, dir. John Lee Hancock, 2009), em que uma mulher rica adota um rapaz negro, feio e sem nenhum futuro, dando-lhe sua família e permitindo que ele se torne rico e famoso graças ao futebol americano, Preciosa termina de modo abrupto, abrindo apenas uma especulação sobre qual deve ser o futuro da protagonista. Ficamos perdidos, como ela mesma certamente está. Mas há um novo sentido em sua vida e um objetivo. Isso deve lhe bastar. É bom que lhe baste.
Preciosa não é um filme leve nem fácil, mas é necessário, porque nos fala um pouco sobre coisas que precisamos saber, mas em geral não pensamos nelas.
O filme concorreu a várias premiações. Mo'Nique, por sua extraordinária atuação como Mary, foi laureada como melhor atriz coadjuvante no Oscar, Globo de Ouro e Screen Actors Guild Awards. Outro prêmio foi o Oscar de melhor roteiro adaptado. A estreante Gabourey Sidibe, que interpretou Precious, foi indicada ao Oscar de melhor atriz, mas perdeu para Sandra Bullock, justamente por Um sonho possível. Hollywood também não é civilizada o bastante para premiar uma Sidibe, quando pode premiar Bullock — que mereceu, sem dúvida. Mas Sidibe arrasou, sobretudo pelo muito que fez sem ter experiência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário