segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Preciosa

Qualquer pessoa que tenha conhecido um lar com doses razoáveis de amor e respeito teria enorme dificuldade de compreender como Claireece Precious Jones chegou aos 17 anos morando sob o mesmo teto que sua mãe, Mary. Aliás, como sobreviveu. Refiro-me ao filme Preciosa Uma história de esperança (EUA, dir. Lee Daniels, 2009), a que somente ontem assisti.
Muito em síntese, a menina começou a ser abusada sexualmente pelo próprio pai na infância (descobrir a idade exata aumenta a aflição que já existia desde os instantes iniciais da trama) e, na adolescência, engravida dele duas vezes. Na primeira, gera uma criança com síndrome de Down do qual se desconhece o nome, porque só é chamada de "Mongo", de mongoloide, o que chocou a assistente social (vivida por uma inesperada Mariah Carey) e causou má impressão até em mim. Revoltada com a perda de seu homem para a filha e incapaz de distinguir uma relação abusiva e violenta de uma consensual, Mary passa a odiar a filha e nunca move um dedo para ajudá-la. Quando o tal homem não está mais lá, submete-a a uma rotina de humilhações e trabalho doméstico forçado, com castigos que incluem golpes de frigideira na cabeça, fortes o suficiente para fraturar o crânio se a menina não conseguisse esquivar-se. A mãe também vira uma parasita, vivendo em sua poltrona enquanto a filha lhe serve, tudo às custas do cheque dado pelo governo para Precious e sua menina.
A esta altura, eu já me pergunto como pode alguém durar tanto sem se matar ou matar alguém.
Como tantas vítimas de abuso sexual, Precious não cuida de sua aparência. É uma forma desesperada de, pela feiúra, deixar de ser atraente para o estuprador. Mas como estupro tem menos a ver com prazer sexual do que se pensa, porque essencialmente, é uma manifestação de poder, do desejo de aniquilar o outro, a tática se revela inútil. Precious é uma negra obesa, em pleno Harlem da década de 1980, que não interage com ninguém (não fala com as pessoas, não cruza o olhar com ninguém e constroi um mundo de fantasia, na qual ela é uma estrela famosa e adorada) e sequer é alfabetizada. O cenário é monstruoso.
A sorte da menina começa a mudar a partir de um ato que nos parece injusto, e talvez o seja de fato: é expulsa da horripilante escola pública porque está grávida de novo. A diferença entre lá e cá é que aqui ela estaria enregue à própria sorte, mas lá a escola providencia a imediata transferência para uma "escola alternativa", um projeto que funciona e transforma a vida de Precious e suas colegas de classe, todas meninas vulnerabilizadas pela violência, pelas drogas, pela maternidade precoce.
É interessante observar Precious aprendendo a ler, fazendo raciocínios mais complexos sobre sua vida, abrindo-se para as primeiras pessoas em que confia e começando a construir, enfim, a própria autoestima.
Ao contrário de Um sonho possível (EUA, dir. John Lee Hancock, 2009), em que uma mulher rica adota um rapaz negro, feio e sem nenhum futuro, dando-lhe sua família e permitindo que ele se torne rico e famoso graças ao futebol americano, Preciosa termina de modo abrupto, abrindo apenas uma especulação sobre qual deve ser o futuro da protagonista. Ficamos perdidos, como ela mesma certamente está. Mas há um novo sentido em sua vida e um objetivo. Isso deve lhe bastar. É bom que lhe baste.
Preciosa não é um filme leve nem fácil, mas é necessário, porque nos fala um pouco sobre coisas que precisamos saber, mas em geral não pensamos nelas.
O filme concorreu a várias premiações. Mo'Nique, por sua extraordinária atuação como Mary, foi laureada como melhor atriz coadjuvante no Oscar, Globo de Ouro e Screen Actors Guild Awards. Outro prêmio foi o Oscar de melhor roteiro adaptado. A estreante Gabourey Sidibe, que interpretou Precious, foi indicada ao Oscar de melhor atriz, mas perdeu para Sandra Bullock, justamente por Um sonho possível. Hollywood também não é civilizada o bastante para premiar uma Sidibe, quando pode premiar Bullock que mereceu, sem dúvida. Mas Sidibe arrasou, sobretudo pelo muito que fez sem ter experiência.

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