sábado, 27 de agosto de 2011

Afastamento da servidora

O deputado estadual Edmilson Rodrigues, aparentemente o único dentre os nossos parlamentares que realmente encampou a batalha pela apuração dos crimes que compõem o chamado "escândalo ALEPA", concedeu entrevista ao Jornal Liberal de hoje (o grupo ORM dando voz ao Edmilson... deve ser o fim do mundo!) dizendo que a servidora Daura Hage não poderia voltar ao trabalho, porque ré em ação penal.
De imediato, pensei comigo que o deputado estava errado, eis que o processo penal não determina o afastamento do réu de seu trabalho; se ele responde ao processo em liberdade, conserva todas as prerrogativas inerentes à liberdade.
Na continuidade da matéria, contudo, é informado que o fundamento da afirmação, repetida por um dos promotores de justiça encarregados do caso, Nelson Medrado, não é a legislação processual, e sim o Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis do Estado do Pará (Lei estadual n. 5.810, de 1994). Com efeito, há mesmo um dispositivo prevendo essa medida:

Art. 29. O servidor preso em flagrante, pronunciado por crime comum, denunciado por crime administrativo, ou condenado por crime inafiançável, será afastado do exercício do cargo, até sentença final transitada em julgado.

§ 1° Durante o afastamento, o servidor perceberá dois terços do vencimento ou remuneração, tendo direito à diferença, se absolvido.

§ 2° Em caso de condenação criminal, transitada em julgado, não determinante da demissão, continuará o servidor afastado até o cumprimento total da pena, com direito a um terço do vencimento ou remuneração.

Abstraindo-se a imperfeição técnica do texto, a servidora se enquadra na condição de denunciada por "crime administrativo". Claro que não existem "crimes administrativos". O leso que redigiu esse texto sofrível decerto quis dizer "crime contra a Administração Pública".
Mas o fato de haver norma não significa que ela esteja de acordo com a Constituição. Em princípio, a lei em tela versa sobre Direito Administrativo, o que pode ser objeto de lei estadual. O problema é que o acusado começa a sofrer penalidades durante o processo, antes de haver culpa formada, o que não me parece adequado ao princípio do estado de inocência. Some-se a isso o fato que já mencionei: se está em liberdade, não pode sofrer constrangimentos a sua liberdade e, em especial, ao seu direito de auferir renda mediante o seu trabalho, de que em tese depende para sua subsistência. Além disso, toda a família, que usufrui dessa renda, acaba sendo penalizada.
Sei que o caso traz uma questão específica: como se trata de crimes relacionados ao mau exercício da função, o retorno ao serviço implica em recolocação no ambiente e nas condições que permitiram o suposto delito e ameaça as provas a serem produzidas, além de criar um compreensível sentimento de perplexidade no público. O melhor seria, portanto, realocar a servidora, colocando-a em função e local que a impedisse de praticar qualquer ato nocivo à instrução processual.
Sinceramente, se eu fosse defender alguém nessa situação, alegaria a inconstitucionalidade dessa norma. E levaria o caso até o STF, se preciso. O engraçado é que o § 2º assegura ao réu condenado em definitivo um terço de sua remuneração, durante todo o cumprimento da pena. Uma estranha benesse, porque obriga o contribuinte a suportar o ônus daquele que delinquiu. A meu ver, a providência correta seria suspender o vínculo entre o servidor condenado e a Administração, assim como um trabalhador da iniciativa privada, durante o cumprimento de pena, fica com o contrato de trabalho suspenso, se não for dispensado.
Em suma, trata-se de uma norma que merece maior reflexão.

Em tempo
Como sempre aparecem os doidinhos por aqui, esclareço que a análise acima (se é que chega a ser uma análise, pois já estou com sono; são 0h57!) é estritamente jurídica. Não estou defendendo a servidora, pessoa que não conheço nem me desperta a menor simpatia. É só uma questão de examinar se o Direito deixou de ser um bom Direito.

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