quarta-feira, 13 de julho de 2016

Uma verdade para Isabela

Você conhece o filme Philomena? Lançado em 2013, sob a direção do respeitável cineasta Stephen Frears (de Ligações perigosas), baseia-se na história real de Philomena Lee que, quando adolescente, engravidou e foi, por isso, demonizada pela família. Sua punição foi a internação em uma instituição católica onde a madre superiora, provavelmente imbuída das melhores intenções, vendia os filhos das internas, inclusive para casais de outros países. O filho de Philomena foi vendido para americanos. O filme retrata o seu esforço, cinco décadas mais tarde, para encontrá-lo. Quem a auxilia é um jornalista meio decadente e bastante mal humorado, que aceita a missão a contragosto e quer uma história para a BBC.

Embora definido como "comédia dramática", classificação que não me cai muito bem, Philomena trata de temas difíceis e revoltantes. Qualquer pessoa com sangue nas veias sentirá raiva. E o jornalista Martin Sixsmith sente muita raiva quando a verdade vem à tona. Furioso, quer que as freiras sejam entregues à justiça, a que se opõe Philomena. Ele brada: "As pessoas precisam saber o que aconteceu aqui!" E Philomena, com firmeza e doçura, redargue: "Aconteceu comigo!"

Incrível como essa cena me causou um profundo impacto. Naquele instante, vendo um filme em casa, surgiu em mim uma memória-base (agora estamos em Divertida mente). Aprendi que não devemos usurpar o protagonismo de outras pessoas, nem mesmo em nome de um suposto senso de justiça. Aquilo que, no popular, definimos como "ser mais realista do que o rei". Precisamos respeitar as emoções daqueles que efetivamente viveram os dramas. Por isso, hoje me incomoda profundamente que o monopólio da jurisdição, característica do Estado moderno, implique o confisco do conflito, como muito bem explica, dentre outros, Gabriel Ignacio Anitua em seu excelente História dos pensamentos criminológicos.

Mas se devemos nos esforçar para que os conflitos sejam mantidos sob as rédeas de seus próprios personagens, qual deve ser o nosso papel enquanto observadores externos? Será que, em nome da justiça, devemos intervir no que não é da nossa conta? Para mostrar, talvez, que somos nobres? Isso não seria basicamente o mesmo que fizeram as freiras irlandesas traficantes de crianças, convencidas de que uma criança seria mais feliz com pais adotivos clandestinos do que com a mãe verdadeira, sendo ela uma decaída? Ou não seria a mesma coisa porque, enfim, nós estamos certos?

Toda esta reflexão surgiu de um acontecimento aparentemente prosaico, do qual tomei conhecimento pelo Facebook: a moça que usou aquela rede social para dar uma dica, para uma mulher desconhecida, sobre um possível adultério.


A postagem viralizou. De repente, mulheres na minha linha do tempo passaram a repercutir o alerta em nome, veja só, da necessidade que as mulheres têm de se ajudar, algo que está no discurso do empoderamento feminino contra a violência de gênero, a cultura do estupro, etc. Ou seja, uma agenda importante do feminismo foi suscitada para justificar algo que soa a uma simples delação. Daí eu me pergunto: combater a "traição" se equipara àquelas outras lutas?

Pessoalmente, acho que todo mundo tem direito à verdade. Contudo, não entendo que seja meu o papel de porta-voz. Claro, já escutei que penso assim porque sou homem e, no fundo, minimizo a traição masculina; que estou sendo omisso por empatia com o traidor; que se fosse o contrário eu estaria criticando a mulher, etc. Todo um conjunto de julgamentos baseados em nada de concreto, apenas porque eu havia dito que, se tomasse conhecimento do adultério praticado por um amigo, não o revelaria à parte prejudicada. Motivo alegado na época: se o casal se reconciliar, eu serei o único vilão da história. Um tribunal de exceção julgou todo o meu caráter a partir de uma única alegação.

A bem da autora da postagem, destaco que ela não pediu repercussão de seu texto. Não pediu que a ajudassem na divulgação. Apenas deu o recado e concluiu com um "de nada", denunciando que ela acredita mesmo ter feito algo de valor. Mas o ambiente da Internet se encarregou do resto. Aparentemente, muita gente assumiu a bandeira de chegar à moça que está sendo traída, para que ela possa ser iluminada com a verdade e exercer a sua justiça, que só pode ser a punição do adúltero.

O interessante é que ninguém sabe se existe mesmo um adultério. Quem sabe o fulano não estava apenas contando vantagem para um amigo, a fim de parecer mais macho do que é? Ou se tratou como realidade algo que é mera fantasia? Aqui, cabe todo tipo de especulação. E se ele mantém um relacionamento aberto com a tal Isabela? O fato é que, qualquer hora dessas, alguma Isabela por aí pode enquadrar o namorado, haja ou não motivo para isso. E mesmo que haja, qual é o nosso papel nessa história? O meu? O seu? Nós realmente precisamos fazer essa campanha? Viramos os guardiões da monogamia? Uma versão cibernética das carolas de igreja que defendiam a moral e os bons costumes? No entanto, em nome de nossa honra, não somos as múmias da moral e dos bons costumes e sim os paladinos do empoderamento feminino, então isso justifica tudo. Será?

Pode me acusar de machismo, mas realmente acho que essa atitude é uma variação do punitivismo de esquerda, ou seja, uma deturpação da ideia de que as minorias devem ser auxiliadas a assumir o protagonismo de suas existências. Sempre voltaremos ao mesmo dilema ético: quem nos salva da bondade dos bons? Você quer ser salvo?

De minha parte, só revelaria um adultério mediante três condições: se tivesse plena certeza de sua materialidade, preferencialmente com meios de prova; se tivesse uma relação muito próxima com os dois envolvidos (abstraindo o outro ou outra); e após dar ao "traidor" a oportunidade de resolver a questão pessoalmente, para não confiscar alguma parcela do conflito. Do contrário, estaria interferindo em aspectos de um relacionamento que não posso conhecer, simplesmente porque não faço parte dele. Estaria afetando a vida privada de alguém em nome de sentimentos que, talvez, escavando bem fundo, possam ser descobertos como uma necessidade egoísta de autovalorização e não como um suposto desejo de ajudar alguém.

Enfim, não há respostas simples. Concluo com Renato Russo, na canção "L'avventura":

Nada é fácil
Nada é certo
Não façamos do amor
Algo desonesto

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Saiba mais: http://g1.globo.com/pop-arte/oscar/2014/noticia/2014/02/mulher-que-inspirou-filme-philomena-e-recebida-pelo-papa-francisco.html

2 comentários:

Luiza Martinelli Coelho disse...

Excelente reflexão no nosso atual contexto em que todos são vigias cibernéticos da vida de todos. A verdade é que "Y en este mundo traidor, no hay verdad ni mentira, solamente el color del cristal con que se mira." Raul de Campoamor.
p.s. estava com saudades de textos novos no blog, que sempre acompanho.
Abs. Luiza Martinelli

Yúdice Andrade disse...

Luiza, você é um doce de pessoa. Espero voltar a ter alguma regularidade no blog, pelo prazer de manter contato com pessoas como você.