quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Intervenção menos agressiva

Enquanto o povo grita "corrupto" de um lado para o outro, parece ter passado batido o fato de ter entrado em vigor, no último dia 23, a Lei n. 13.060, de 22.12.2014, que "Disciplina o uso dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública, em todo o território nacional".

Por meio da nova norma, fica estabelecido que o uso de arma de fogo deixa de ser a primeira opção dos agentes de segurança pública, que devem preferir, se possível, é claro, armas não letais ou menos letais. Nos termos da lei (art. 4º), artefatos "projetados especificamente para, com baixa probabilidade de causar mortes ou lesões permanentes, conter, debilitar ou incapacitar temporariamente pessoas". Trata-se de medida de grande impacto prático, se cumprida, além de ter o poder de forçar uma reflexão sobre os métodos da polícia que mais mata no planeta.

De acordo com a nova lei:

Art. 2º Os órgãos de segurança pública deverão priorizar a utilização dos instrumentos de menor potencial ofensivo, desde que o seu uso não coloque em risco a integridade física ou psíquica dos policiais, e deverão obedecer aos seguintes princípios: 
I - legalidade; 
II - necessidade; 
III - razoabilidade e proporcionalidade. 

Parágrafo único.  Não é legítimo o uso de arma de fogo: 
I - contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros; e 
II - contra veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, exceto quando o ato represente risco de morte ou lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros. 

A partir de agora, fica pré-determinado, ex vi lege, que o agente de segurança não pode mais fazer o que se faz hoje, com a maior naturalidade: atirar nas pessoas, visando a matá-las ou feri-las sem necessidade jurídica, ou pelo menos como forma de impor autoridade, como bem explicou Howard Becker em sua célebre obra Outsiders.

Note-se, entretanto, que a norma está redigida em termos que exigem controle da subjetividade: quando é que o indivíduo representa risco imediato? Aparentemente, a lei é um daqueles exemplos de medida tomada para reduzir a discricionariedade, mas que, no final das contas, acaba por ratificá-la, ao mesmo tempo em que mascara o perigo com ares de legalidade. A velha segurança jurídica.

Precisamos ver como a norma será aplicada, para saber se não continuaremos (ou até pioraremos) em termos de estereotipização: o risco imediato se depreende das características físicas ou sociais do indivíduo, ou de eventual acusações anteriores. Isso seria mais do mesmo.

A nova lei também determina (art. 6º) que "sempre que do uso da força praticada pelos agentes de segurança pública decorrerem ferimentos em pessoas, deverá ser assegurada a imediata prestação de assistência e socorro médico aos feridos, bem como a comunicação do ocorrido à família ou à pessoa por eles indicada". Não vale deixar morrer e simplesmente colocar na conta do papa, como sugeria o Capitão Nascimento.

Por fim, a falta de repercussão de uma lei desse teor, envolvendo matéria capaz de despertar o ódio de nossos concidadãos "de bem", honestos, tementes a Deus e saudosos da ditadura, público cativo dos programas televisivos do mundo-cão, já é um sintoma preocupante. Ou as festas natalinas ofuscaram a medida e a mídia ainda se vai encarregar do papel de disseminar o medo e a indignação, ou talvez o sistema de justiça criminal recebeu a novidade com um sorriso de desprezo no rosto, daqueles que damos às pessoas que menos importam para nós, quando tentam se impor.

Vamos ver.

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