Mas imagine que esse processo natural seja interrompido. Imagine, por exemplo, que seu pai motorista de ônibus seja assassinado e sua mãe, presa (injustamente). Você vive em uma das capitais brasileiras com os mais elevados índices de violência urbana e, de repente, está por sua própria conta. Você é uma menina de 10 anos ou um menino de 3, que ainda nem foi para a escola. O que há de acontecer doravante? O roteiro de Justiça apostou na obviedade: sete anos mais tarde, Mayara é prostituta e Jesus, a despeito do nome, tornou-se ladrão. Sua cruz saiu do meio para a lateral.
Não me concentrarei, por enquanto, em Mayara (Letícia Braga/Júlia Dalavia) porque a trama que lhe foi destinada é a da vingança contra a mulher que desgraçou sua família, projeto que lhe parece tão importante que, para consumá-lo, vale a pena seguir uma rotina de prostituição, com todos os temperos associados, tais como tomar porrada na cara. Quero me concentrar em Jesus (Bernardo Berruzo/Tobias Carrieres) e, por meio dele, divagar um pouco sobre as consequências de uma criança não receber a indispensável orientação moral, no momento adequado.
Por oportuno, destaco que existem relevantes estudos, nos campos da psicologia e, inclusive, das neurociências, acerca dos efeitos da afetividade sobre a moldagem do cérebro humano, na primeira infância, o que tende a produzir reflexos por toda a vida adulta. Sim, estou dizendo que a falta de cuidado e orientação, na fase própria, compromete o desenvolvimento da pessoa e, no futuro, isso afetará a sua capacidade de percepção do mundo, dificultando a tomada de decisões éticas, já que toda ética pressupõe alguma padronização. E só aceita os padrões quem os compreende. Mas atenção: devemos rejeitar os determinismos, sobretudo os biológicos. Estou falando de tendências, apenas.
Acredito que a trama de Jesus seja a mais propensa a irritar o brasileiro médio de classe média, com sua incapacidade de se por no lugar do outro, sua imediatidade em fazer julgamentos maniqueístas extremos, sua fé cega no livre arbítrio e na fantasia de que se pode conseguir tudo que se sonha desde que se queira com toda a força do coração. Papai Noel sorriria, se existisse.
Jesus é o membro mais jovem de um trio de trombadinhas e ajuda a assaltar Fátima. Após tanto tempo sem se verem, ela o reconhece com a ajuda da cicatriz de mordida de cachorro no braço. Ele, claro, tem dúvida. Por isso, mais tarde, pega a carteira de identidade da bolsa roubada e pede ao comparsa que leia. Reconhece o nome. Amalandrado pela vida na rua, age com precisão cirúrgica: não esboça reação. Espera um moleque ir embora e o outro tombar sob o efeito da droga, pega a bolsa e o dinheiro e volta para casa, originando aquela cena linda do reencontro de mãe e filho.
A cena apela para forte dramaticidade (e funciona muito bem). Dividido entre o amadurecimento forçado e corrompido das ruas e o fato de ser apenas uma criança, Jesus canta para Fátima uma canção que usara durante todos aqueles anos para não se esquecer dela. Sua atitude, inclusive de perguntar para Douglas como era seu falecido pai, demonstra que sente falta da família e quer o suporte de referenciais adultos. Mas ele tem as marcas da infância desassistida. Em outra cena, Fátima lhe dá um tapinha quando ele comenta que Mayara virou prostituta. Sua reação é agressiva: empurra a mãe e ameaça ir embora. Como esperar delicadeza ou respeito à autoridade de quem não foi ensinado a agir assim e, menos ainda, teve exemplos nesse sentido?
O que salva Jesus, acredito, são os três anos de amor que marcaram a primeira fase de sua vida. São eles que fazem o menino ficar com a mãe e ajudá-la em seu projeto de viver honestamente da venda de comida. Todavia, não se deleta o próprio histórico: na primeira oportunidade, o menino engana um cliente para ficar com 20 reais. A mãe descobre e os dois têm novo embate: ela ensina que não se toma o que é dos outros, nem que sejam apenas 10 centavos. Diz que não criou filho para ser ladrão. Contudo, junto com a disciplina vem o amor (isso não se aprende na rua, que só oferece a violência). Ela diz: "que bom que tu tá chorando, porque isso mostra que tu tá arrependido. Vai pro teu quarto sentir essa vergonha até o fim". Manda que ele devolva o dinheiro. E afaga sua cabeça. O menino obedece. Aprendi, quando me tornei pai, que crianças querem ser disciplinadas e nos testam com essa finalidade. Se respondemos à altura, podemos formar verdadeiros cidadãos, gente boa e solidária.
Fátima é uma fortaleza, meu personagem favorito na série. Incansável na tarefa de resgatar o filho, no capítulo 10 ela mita, como se diz hoje em dia: diz que foi presa injustamente e podia estar com o coração cheio de ódio e desejo de vingança, mas se assim agisse, a prisão teria decidido por ela. Invoca a autonomia moral: diz ao filho que, assim como ela decidiu a pessoa que quer ser, ele deve decidir a própria vida. Mas não se esquece de amarrar as pontas: fala em escolher uma profissão e, como mãe, preocupada com questões práticas, desestimula ser motorista de ônibus como o pai. "A gente tem que evoluir".
Fátima transita entre o estilo dos folhetins tradicionais (a virtude inabalável) e a inclinação ao naturalismo dos últimos anos: ela se descontrola, mata cachorro, ameaça vizinho com terçado. Mas defende seus valores e é solidária. Para mim, é totalmente plausível, o tipo de pessoa que vale a pena conhecer. O tipo de pessoa capaz de resgatar uma alma do vício, da perda, do crime (sem querer naturalizar estes termos), pois é movida por interesse sincero e educa pelo exemplo. É o oposto do Estado, que se esgota na ação punitiva, porque assim são seus agentes e, acima de tudo, assim é a sociedade.
Para mim, a trama de Fátima e Jesus serve de metáfora, pois indica o caminho a seguir se queremos salvar vidas (as de quem está em queda e as de quem pode ser machucado por estes). Entretanto, esse caminho é extremamente difícil e envolve largas doses de frustração. Se somos movidos pela pressa e, sobretudo, se não queremos ter trabalho, as soluções serão diversas: primeiro a palmada, depois a brutalização e as diferentes formas de institucionalização que, neste país, representam o amontoamento inútil dos problemas que poderíamos matar, se não houvesse uma droga da lei limitando esse desejo.
Post scriptum. Pode parecer contraditório eu mencionar autonomia moral do indivíduo quando rejeito a ideia tradicional de livre arbítrio. Esta postagem não avançará por aí. Por ora, esclareço que não nego a existência do livre arbítrio. O que rejeito é a concepção de que ele pode ser medido a partir de um consenso valorativo de toda a sociedade e que, em consequência, todas as escolhas que as pessoas fazem são plenamente livres. Esta interpretação simplista permite encarar o desviante sempre como um transgressor voluntário e, portanto, merecedor dos piores castigos. Acredito que circunstâncias existenciais que comprometem o desenvolvimento humano afetam a percepção do que é certo ou errado, dificultando ou impedindo, às vezes, que o agente corresponda às expectativas sociais. Nesse caso, sua responsabilização não poderia ser igual a de quem teve toda a assistência possível. Mas este assunto exige longa reflexão, inclusive de minha parte.
Antecedentes criminais
- Sobre a série: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/a-justica-chega-ao-mainstream.html
- Capítulo 1: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/elisa-e-vicente-justica-como-deturpacao.html
- Capítulo 2: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/todos-culpados-ate-que-se-prove-nada.html
- Capítulo 3: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/justica-no-xadrez-das-cores.html
- Capítulo 4: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/eu-que-te-amo-tanto-ponto-de-te-matar.html
- Capítulo 5: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/a-caminho-do-perdao.html
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