quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Multiculturalismo do deboche

Nunca antes vi tantas pessoas defendendo a liberdade de expressão e o direito de sustentar suas convicções e opiniões. Mas essas bandeiras sempre existiram. O que mudou, afinal? Tenho uma hipótese, que compartilho neste momento.

A resposta estaria nas potencialidades trazidas pela internet. Para o bem e para o muito mal, qualquer incluído digital pode (no sentido de estar fisicamente apto a, e não no de ser eticamente legitimado a) defender qualquer ponto de vista e obter um enorme alcance para as suas manifestações. Graças a isso, e em especial à capacidade de aglutinação de interesses comuns, gerando movimentos espontâneos e ampla repercussão pública, aqueles que historicamente sempre reivindicaram liberdades e direitos puderam, enfim, ser escutados e, com isso, ter algumas de suas agendas implementadas.

Esses reivindicantes correspondem às chamadas minorias sociais. Não tenho dúvidas de que, não fosse pela capilaridade proporcionada pelos recursos da internet, muitas pautas defendidas por movimentos sociais seguiriam ignoradas pelos grupos aboletados nas instâncias de poder. Mulheres, negros, LGBT e, até mesmo, trabalhadores não teriam sido ouvidos. Que motivo haveria para a reforma da previdência do governo golpista ter sido barrada, sem sequer chegar aos plenários do Congresso Nacional? Não teriam os congressistas se sentido ameaçados pelos eleitores que, no próximo ano, irão às urnas?

O fato (segundo vejo) é que, agora, o outro lado do balcão passou a postular liberdades e direitos. Se eu fizer uma manifestação séria, ou mesmo uma piada, que possa ser interpretada como machista, racista, homofóbica, pedófila, etc., a reação será poderosa. Posso ter meus apoiadores, mas meus opositores compartilharão à exaustão os prints de tela. Campanhas serão feitas para identificar ou localizar o sujeito. Avisos serão mandados ao empregador, a fim de que o fulano seja posto na rua. Essas coisas têm acontecido. Resulta daí que os canalhas de ontem e de hoje, que sempre foram livres para fazer e dizer tudo o que pensam, agora... pedem liberdades e direitos.

Precisamos refletir. A Igreja Católica permitia liberdade religiosa? Foi receptiva à reforma protestante, que acabou de completar 500 anos? Os brancos são humanos com os negros e indígenas? Os colonizadores foram decentes com os autóctones? Os homens são justos com as mulheres e abriram espaço à população LGBT? Os nacionais são generosos com os imigrantes? Os ricos são amigáveis com os pobres? Os brasileiros do Centro-Sul são respeitosos com os do Norte e Nordeste? Os ditadores permitem dissidências?

A questão me parece muito clara: há grupos que sempre estiveram no poder e o exerceram da maneira mais absoluta e desumana possível. Seus herdeiros e sucessores estão aí, por toda parte, como se vê pelas manifestações nas redes sociais e caixas de comentários dos portais de notícias. Também estão nos governos e no Congresso Nacional, fazendo cultos em prédios públicos, cerceando direitos, debochando das minorias e propondo que se curvem às maiorias. Que, por sinal, nem são maiorias numéricas. Mas uma vez que se vejam pressionadas pelo Big Brother orwelliano da vida real, clamam, exigem liberdades e direitos. Exatamente o que jamais fariam em relação a ninguém.

É por isso que classifico como deboche, o mais rematado cinismo, essa atitude súbita e surpreendentemente pluralista. Porque não há pluralismo algum. Não há tolerância, mas apenas um profundo defensivismo do canalha, que se vê perplexo ante a dificuldade de continuar sendo canalha como sempre foi, já que para ele isso é a coisa mais natural do mundo. São esses que criarão a "ditadura do politicamente correto", a "ideologia de gênero", a "defesa da família" e inúmeros outros chavões. São os obreiros da última hora, que apareceram de repente para defender as liberdades constitucionais, a igualdade e outros valores, dos quais se lembram apenas e tão somente quando se sentem por baixo.

Eu devo ser leniente com pedidos de liberdade
de escrever e divulgar coisas como esta?
Compete a cada um de nós decidir se aplicaremos essa suposta concepção de liberdade e de justiça. Muitos conhecidos meus defendem que precisamos assegurar os direitos de nossos opositores, inclusive para não descermos ao nível deles. Olho com extrema desconfiança essa postura, por motivos históricos. Para afirmar seus direitos, as mulheres não tiraram nada dos homens. Os homens é que acreditam que seu papel no mundo depende do pisoteio e da exploração sexual das mulheres. Um umbandista jamais tentará impedir um cristão de sê-lo, mas os cristãos têm massacrado há séculos os adeptos de outros credos. Em 2017, umbandistas estão sendo espancados pelo simples fato de andarem nas ruas ou sendo torturados por traficantes evangélicos. A diferença é clara: enquanto uns querem apenas o direito de existir em paz, outros querem seguir oprimindo.

É por isso que travo minha batalha íntima em torno do que fazer neste mundo. Não serei eu a impedir as liberdades dos outros, mas não vou embarcar, por enquanto, nesse discurso de deixar os fascistas à vontade. Se já tivéssemos alcançado níveis razoáveis de igualdade, isso seria um preço a se pagar pela convivência no planeta. Mas enquanto permanecermos nessa tensão entre minorias que querem ser indulgentes com seus algozes, e algozes que só querem uma oportunidade para mais violência e opressão, eu realmente recomendo a eterna vigilância, que é o preço da liberdade, como já aconselhava Thomas Jefferson há mais de dois séculos.

3 comentários:

Ana Miranda disse...

Meu amigo, como eu gostaria que houvessem mais pessoas como você!!!"O mundo anda tão complicado"... Bem dizia Renato Russo.

Yúdice Andrade disse...

Minha querida, que bom falar contigo de novo, depois de tanto tempo! Eu pouco escrevo no blog e tu saíste do Facebook, então acabamos sem contato. Manda notícias. Abraço grande.

Anônimo disse...

Como sempre, excelente análise.
Kenneth