quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Para afilhados muito, muito queridos

Discurso que proferi na noite de 24 de janeiro de 2018, como paraninfo das turmas de Direito do Centro Universitário do Pará - CESUPA, que colaram grau naquela oportunidade.

Foi meu privilégio, queridos, porque vocês são dádivas que recebi.

            Muito boa noite a todas as pessoas presentes. Imagino que seus corações estejam em festa, a julgar pelas emoções vividas nesta noite, já precedidas por outras, vividas nas celebrações religiosas. Tenho visto pelas redes sociais publicações muito sensíveis, inclusive de ex-alunos recordando suas colações de grau nos anos passados. Vários aludiram a “melhor dia da vida”.
            É maravilhoso que vocês se sintam assim, porque o dia de hoje é muito simbólico do final da adolescência. Cruzando aquelas portas, vocês estarão em suas vidas adultas, com todas as consequências que isso possa trazer. E para nós ― falo pela instituição e por meus colegas professores ― é algo indescritível estar com a mão na maçaneta da porta que está se abrindo.
            Para mim, em particular, é imensa a honra trazida pela condição de paraninfo, pois me permite oferecer a última palavra institucional antes que se lancem ao futuro que finalmente chegou.
            Gostaria de começar ressaltando que todos que aqui se encontram colando grau fizeram por merecer. No entanto, eu preciso destacar que a realização do curso envolveu esforços de muitos. Não me refiro apenas às exigências financeiras, que foram penosas para muitos, mas a todo um investimento emocional dado para que vocês pudessem prosseguir. Em um momento como este, a gratidão é uma virtude que deve ser ressaltada. Como pais ou responsáveis, temos a obrigação de manter nossos jovens vivos, alimentados e dentro de uma escola, mas a decisão de fazer o melhor que podemos é a tradução do amor que sentimos.
            Isto faz toda a diferença, porque não se trata de mera subsistência, mas de lhes fornecer condições para serem tudo o que puderem ser.
            Na realidade, alguns de vocês chegaram aqui vencendo duplas e triplas jornadas. Equilibraram-se entre estudos, trabalho, família, filhos. Quero dizer que essa dedicação é admirável e que todo aquele que deseje ser um bom professor enxerga e valoriza isso. Meus parabéns por todos os monstros que derrotaram ao longo do caminho.
            Meus parabéns, também, àqueles que fizeram da graduação um exercício de generosidade, doando o seu tempo, o seu trabalho e os seus melhores sentimentos para ajudar os outros.
            Essa entrega pode ter ocorrido no exercício da monitoria. Há vários ex-monitores aqui, mas peço licença para homenageá-los nas pessoas daqueles que me assistiram na disciplina direito penal, Antônio Fernandes e Agérico Vasconcelos, legítimos representantes da espécie contagiada por esse estranho vírus que nos faz adotar a carreira docente.
            Essa doação pode ter ocorrido em nosso Núcleo de Prática Jurídica, que por muitos foi visto como muito mais do que uma obrigação curricular; como verdadeira oportunidade de dar acesso à justiça a pessoas que não dispõem de recursos para fazê-lo de outro modo, entendendo que por trás dos papeis há vidas humanas reais. Por todos, gostaria de nominar Liane Mindelo e Fernando Barra.
            O altruísmo também pode ter-se manifestado nos grupos de pesquisa e de extensão, oportunidades únicas de levar serviços, benefícios e até mesmo amor a quem precisa. Este registro eu faço em um ser humano belíssimo, que não me canso de elogiar por sua consciência cidadã: Mariana Bastos.
            E ainda existem aqueles que cuidam com tanto zelo e dedicação de suas turmas, fazendo interlocuções, resolvendo problemas, distensionando conflitos, que viram algo como anjos da guarda. De todos, o meu favorito não poderia ser outro que não Ana Carolina Albuquerque.
            Não poderia citar 169 nomes, mas gostaria que vocês entendessem estes seis como fontes de inspiração, pelas marcas valiosíssimas deixadas em quem teve o privilégio de conviver com eles.
            Eu poderia fazer um discurso de formatura padrão, com aquele tom ufanista, permeado de citações de autores clássicos. Mas vocês sabem que eu não me conformo com a dogmática. Portanto, permitam-me repetir algo que eu disse na primeira aula de direito penal 1, em agosto de 2013. Eu estou aqui para lhes tirar a inocência. Lembram disso?
            Qualquer que seja a orientação política, filosófica, religiosa, etc., de vocês, acredito que todos concordarão comigo que estamos atravessando tempos muito difíceis. Eu não sou cientista político, muito menos futurólogo, por isso não me atrevo a especular sobre se as coisas vão melhorar ou piorar. Estou certo, contudo, que elas continuarão um processo de mudança que já está em pleno andamento.
            A primeira vez que eu me recordo de ter visto uma pessoa espancada foi na infância. Era minha vizinha. Passei pela frente de sua casa e ela estava sentada no pátio. Respondeu meu cumprimento com um fio de voz tão triste. Depois eu soube que ela havia apanhado do marido. Mais uma vez. Ela tinha hematomas no rosto. A vizinhança toda comentava, mas ninguém fazia absolutamente nada porque o marido espancar a esposa era algo natural e perfeitamente admissível. Havia, inclusive, o bordão “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Essa era a norma de conduta: uma questão de ser discreto.
            Hoje, bater em uma mulher, dar palmada em uma criança ou atirar uma pedra em um animal pode ter consequências bem sérias. Mudanças. Isso aconteceu basicamente por dois motivos. O primeiro é que os vulneráveis começaram a ganhar voz. Senão pessoalmente, indivíduos que se encontram na mesma condição se tornam porta-vozes do protesto e da reivindicação.
            O segundo motivo é que muitas outras pessoas começaram a se importar. O aparato tecnológico hoje disponível tornou muito difícil manter coisas em segredo e permitiu que qualquer pessoa, desde que seja uma incluída digital, possa em tese enviar a sua mensagem para qualquer lugar do mundo. Quando essa mensagem é lançada, o seu alcance é imprevisível. Pode não acontecer nada; pode haver um tumulto passageiro; ou pode ser o começo de uma transformação real.
            Há menos de um mês, levei minha filha a um museu dedicado à história dos direitos humanos. A maior parte do acervo se concentra na luta pela afirmação dos direitos civis dos negros, nos Estados Unidos. Eu e minha esposa explicamos para Júlia os eventos da década de 1960 e a reação dela era de perplexidade, porque para ela não faz o menor sentido que pessoas sejam anuladas e brutalizadas simplesmente por causa da cor da pele. E isso não por ela ter apenas 9 anos, mas porque ela tem uma alma.
            Eu lhes asseguro que todas as nossas leituras somadas não nos permitem alcançar o significado daqueles horrores. É preciso ver aqueles rostos, escutar aqueles depoimentos, ver aquelas imagens. Daí chegamos ao final da exposição e a mensagem que recebemos é: não estamos falando do passado. O acervo termina com uma instalação apresentando os desafios atuais em direitos humanos: direitos LGBT, dos deficientes, das crianças, dos refugiados, das mulheres, liberdade de expressão, educação, saúde, combate à pobreza e à escravidão humana.
            À entrada do museu, um mural com uma mão erguida. As palavras de ordem são: humanidade, força, liberdade, igualdade, unidade e o direito de viver livre da opressão, seja de autoridades, seja de terceiros, por causa do estilo de vida, comportamento ou posições políticas.
            Estes são os nossos desafios de hoje. De todos nós. Principalmente se as roupas que vestimos contêm etiquetas com os dizeres “made in China”, “Taiwan”, “Vietnam” e similares.
            Mas por muito que queiramos nos engajar nesse projeto, e mesmo observando que a tecnologia conferiu a cada pessoa alguma potencialidade de modificar o seu entorno, forçoso reconhecer que as pessoas não são ouvidas da mesma forma.
            É uma compulsão perversa por classificar seres humanos entre os que têm e os que não têm valor. É a vida nua dos “ninguéns” que, no dizer de Eduardo Galeano, valem menos do que a bala que lhes mata.
            Ironicamente, a existência de maior espaço e de melhores ferramentas de luta por reconhecimento do valor humano é justamente o que leva as forças sombrias da desigualdade a intensificar os seus esforços por manter tudo como sempre foi. Isso pode explicar a disseminação incontrolável de discursos de ódio que vemos hoje, quase sempre partindo dos autoproclamados “cidadãos de bem”. Sobre eles, podemos dizer com Renato Russo: “Existem muitos formatos. Que só têm verniz e não tem invenção. E tudo aquilo contra o que sempre lutam é exatamente tudo aquilo que eles são.”
            É por isso que escutamos falar sobre “ditadura do politicamente correto”, “o pessoal dos direitos humanos”, “racismo reverso”, “vitimismo”, “ideologia de gênero”, “meritocracia” e outras sandices que cumprem uma clara função de silenciamento dos vulneráveis, para lhes roubar a credibilidade, deturpar o sentido de suas lutas e manter o país como aquele imenso latifúndio comandado por uma casa grande, onde, parafraseando Caetano Veloso, um macho adulto branco seguirá no comando.
            A história é feita de persistências e de rupturas, como nos diz a criminóloga Vera Malaguti. Então nós precisamos decidir de que lado estamos, porque não existe neutralidade. E decidir nada fazer implica, automaticamente, manter as coisas como sempre foram.
            Porque vocês pertencem àquele nicho social cujas vozes serão ouvidas. Vocês são privilegiados. Não importa que conotação deem à palavra “privilégio”, vocês pertencem à elite ― que é intelectual, cultural, moral, segundo o valor que lhe é atribuído. E mesmo que lhes faltem certos recursos, vocês dispõem de acesso a quem possui esses recursos. É o capital simbólico de que nos fala Bourdieu. A ampla teia de relações que vocês constroem a partir dos lugares de onde vêm, onde vivem, onde estudam, onde socializam.
            Vocês já detêm um grande poder. E é sua escolha empregá-lo apenas em proveito próprio, ou de seus pares, ou de fazer dele instrumento de transformação da realidade. Por isso eu lhes pergunto: de adulto para adulto, em que mundo vocês querem viver?
            Eu quero viver em um mundo no qual ninguém precise temer a violação de seu corpo pelo simples fato de ser mulher.
            Eu quero viver em um mundo no qual ser negro, indígena ou imigrante não impeça ninguém de ter acesso a oportunidades nem lhe transforme em suspeito padrão, muito menos em alvo preferencial de execuções sumárias.
            Eu quero viver em um mundo no qual ninguém seja espancado ou até morto na rua simplesmente por causa de sua orientação sexual.
            Eu quero viver em um mundo no qual todos os credos religiosos tenham a mesma dignidade e conduzam ao enriquecimento das almas e somente das almas.
            Eu quero viver em um mundo no qual o trabalho seja valorizado por sua utilidade e não pelos lucros que geram e no qual os pobres não precisem receber todos os dias uma quota de humilhações, que ao longo do tempo lhes rouba a própria autoestima.
            E porque estou falando para juristas, eu quero viver em um mundo no qual os direitos, as garantias fundamentais, os bens jurídicos, os princípios e tudo o mais que eu e meus colegas professores lhes explicamos nos últimos cinco anos não continuem a ser solapados pelo conjunto das nossas instituições. O general prussiano Carl von Clausewitz nos ensinou que “a guerra não é mais que a continuação da política por outros meios”. O que ele, como homem de campos de batalha, não sabia é que, no século XXI, as guerras seriam travadas com teses jurídicas, em frente aos holofotes da mídia.
            Mas guerra é guerra. Ontem como hoje, os objetivos são os mesmos e nos conduzem ao cenário divulgado pela ONG britânica Oxfam há apenas dois dias: 1% da população mundial ficou com 82% da riqueza gerada em 2017. 3,7 bilhões de pessoas não ficaram com nada[1]. Os 43 bilionários brasileiros reúnem 43,52% de toda a riqueza nacional. A desigualdade se intensifica em todo o planeta e o Brasil segue a mesma tendência[2], em que a precarização do trabalho é uma das principais estratégias.
            É neste mundo que estamos vivendo e é nele que vocês serão novos bachareis em Direito, carregando todos esses sonhos e esperanças que estão aí. Vocês receberam conhecimentos para enfrentar essa realidade. A partir daqui, é com vocês.
            Mas eu acredito que vocês farão escolhas justas. Porque vocês são bons de coração. São generosos e ― afora melindres e recalques que todo mundo tem ― são capazes de empatia, que é a condição primária da bondade. Vocês se importam e é isso que faz toda a diferença.
            E eu me importo muito com vocês. Por isso lhes desejo saúde; grande sucesso profissional; conforto financeiro também (é justo). Desejo que a vida lhes proporcione um verdadeiro amor, que seja um companheiro ou companheira que, tal como minha Polyana, lhes faça sentir que são amados e que possuem um porto seguro neste mundo. Que tenham seus filhos, caso queiram tê-los, e sejam os melhores pais e mães que possam, para entender a intensidade da emoção que os seus estão sentindo neste momento.
            Hoje pode ser o melhor dia de suas vidas até aqui. Mas o melhor mesmo ainda virá. Desejo que todos esses ingredientes reunidos lhes permitam aquela autopercepção que há de brotar subitamente, em um dia absolutamente comum, fazendo-lhes concluir: “Meu Deus, eu sou plenamente feliz!”
            Sejam plenamente felizes.




[1] Cf. https://g1.globo.com/economia/noticia/super-ricos-ficam-com-82-da-riqueza-gerada-no-mundo-em-2017-diz-estudo.ghtml .
[2] Cf. http://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2018/01/5-bilionarios-brasileiros-tem-mais-dinheiro-que-metade-mais-pobre-do-pais.html .

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