sábado, 22 de abril de 2017

Nada de novo no racismo institucional brasileiro




Repercute nos meios jurídicos e na internet a condenação de Rafael Braga Vieira, que em 2013 foi preso em circunstâncias absurdas, no contexto das "jornadas de junho". Um exemplo contundente da criminalização da pobreza, pois o rapaz só portava produtos de limpeza quando de sua prisão. 

Tornado cliente do sistema penal, pouco depois de ser liberado, acabou sendo preso em flagrante, claro, por crimes relativos a drogas (tráfico e associação para o tráfico). Esta semana foi prolatada a sentença condenatória. As penas, somadas, importaram em 11 anos e 3 meses de reclusão, além de multa. Leia aqui sobre o caso. Graças a essa condenação, Rafael está sendo considerado um símbolo do racismo institucional entranhado nas agências punitivas deste país, tema de interesse crescente entre os criminólogos.

A sentença, que pode ser acessada neste link, apresenta alguns fundamentos que eu gostaria de refutar mediante argumentos genéricos, já que desconheço o teor dos autos. Atrevo-me a fazê-lo invocando, inclusive, minha experiência de mais de 11 anos de atuação no judiciário, que permitiu ver todo tipo de absurdo judicial para justificar condenações frágeis e até mesmo insensatas.


1. O juiz diz que a materialidade delitiva está provada pelos laudos toxicológicos e pelo "conjunto probatório, em especial, pela prova testemunhal produzida no decorrer da instrução criminal"

Não há discussão sobre a natureza das substâncias apreendidas. A defesa de Rafael argumenta, justamente, que as drogas foram plantadas pelos policiais, para incriminá-lo. Juízes adoram invocar o "conjunto probatório", para passar a impressão de que existem provas e de que foram bem analisadas, quando na verdade isso não passa de uma alusão genérica, que pode significar qualquer coisa, inclusive nada. A prova testemunhal invocada limitou-se aos depoimentos dos policiais que atuaram durante a prisão de Rafael e essa é outra questão fulcral de sua defesa.

2. "Registre-se que a localidade em que se deu a apreensão do material entorpecente (...) é dominada pela facção criminosa 'Comando Vermelho', conhecida organização criminosa voltada a narcotraficância"

Exemplo gritante e indecente de criminalização da pobreza. O juiz sugere que uma das razões de seu convencimento é o fato de a prisão ter ocorrido em uma área dominada pelo tráfico. Pergunta-se: todas as pessoas que vivem nesse local, ou que passam por lá, têm envolvimento com o tráfico? Por que essa informação seria relevante, a ponto de ser destacada como informação preliminar na sentença? Se a intenção do juiz era relacionar o réu ao Comando Vermelho, bastava aludir ao "C.V." escrito nas embalagens.

3. "Acrescente-se que as substâncias entorpecentes apreendidas já se encontravam devidamente fracionadas, prontas para a mercancia. (...) o local é conhecido como ponto de venda de drogas"

O fato de as drogas estarem endoladas nada aponta acerca da autoria delitiva. Muitas pessoas moram em locais conhecidos como pontos de venda de drogas, ou zonas vermelhas de criminalidade, mas nem por isso podem ser presumidas como criminosas. A certeza do juiz quanto à preparação do material para traficância não pode justificar a condenação de certa e determinada pessoa.

4. A autoria do "nefasto crime" foi negada pelo réu, mas suas "declarações não ostentam base probatória"

De saída, já notamos a dramaticidade do discurso judicial, comum em acusações de tráfico. Mais importante, as declarações do réu não precisam ter base probatória, porque desde o século XVIII o réu não é obrigado a provar sua inocência: a acusação é que precisa demonstrar cabalmente a sua responsabilidade. A Constituição de 1988 assegurar expressamente ao réu o direito ao silêncio. Caso se mantenha calado, não haverá declaração alguma, com ou sem base probatória. Gostaria, então, que o juiz me explicasse: se o réu se cala, tudo bem, mas se ele fala e nega a imputação, isso se volta contra ele? Estamos diante de um modelo no qual a palavra do réu só tem valor quando se trate de confissão?

5. "As testemunhas, arroladas pelo Ministério Público, quais sejam, policiais militares (...) que participaram da prisão em flagrante do réu e apreensão das substâncias entorpecentes (...), apresentaram depoimentos harmônicos entre si, cujo teor de suas declarações faz prova robusta que as substâncias entorpecentes (...) foram encontradas em poder do réu destinavam-se à venda"

O juiz registra que a prova testemunhal se limita aos depoimentos de quatro policiais militares que, por óbvio, têm interesse em legitimar as suas condutas. Aqui surge o que chamo de maneirismos judiciais: fórmulas ou regras genéricas que o judiciário inventa para driblar o dever de fundamentação com informações concretas dos autos.

O primeiro maneirismo corresponde ao fato de que as testemunhas serem policiais não ilide, por si só, a credibilidade de seus depoimentos. Declara a sentença, expressamente: "Não há nos autos qualquer motivo para se olvidar da palavra dos policiais, eis que agentes devidamente investidos pelo Estado, cuja credibilidade de seus depoimentos é reconhecida pela doutrina e jurisprudência." Mais à frente, o juiz deixará claro o extremo valor que confere a "depoimentos prestados pelos Agentes do Estado". São agentes públicos, então são honestos. Simples assim.

O segundo maneirismo é que, como os policiais declararam basicamente a mesma coisa, então os depoimentos são "harmônicos" e isso configura "prova robusta". Nenhuma chance de terem combinado isso. A regra, claro, é aplicada desde que se trate de testemunhas acusatórias. Nunca vi esse argumento ser usado em favor do réu. A pá de cal é que tais policiais não conheciam o réu antes (sabemos mesmo disso?) e, portanto, não teriam interesse em prejudicá-lo.

A sentença passa um certo tempo analisando o teor desses depoimentos e registra que um dos policiais depoentes admitiu não ter presenciado a abordagem e a apreensão das drogas, sendo que seus colegas de farda apenas "lhe disseram" que o réu portava as drogas. Mesmo assim, ele é citado na sentença como elemento de convicção.

A predisposição do juiz a desculpar qualquer vício dos depoimentos dos policiais emerge deste trecho: "É certo que algumas contradições são perfeitamente previsíveis em depoimentos de policiais militares que participam de várias ocorrências policiais, porém, na essência os depoimentos prestados pelos policiais militares neste Juízo são convergentes." Então tá.

6. Desqualificação da testemunha de defesa

Uma vizinha declarou ter visto, da varanda de sua casa, Rafael ter sido abordado e agredido pelos policiais mas, ao sentir do magistrado, suas declarações "visavam tão somente eximir as responsabilidades criminais do acusado em razão de seus laços com a família do mesmo e por conhecê-lo 'por muitos anos' como vizinho". Nenhuma palavra sobre qual o motivo da certeza de que essas relações pessoais a tornariam tão propensa a mentir pelo vizinho. Foi, apenas, um depoimento "isolado".

O único argumento que, abstratamente, teria algum valor na sentença seria a não identificação de lesões no corpo do réu, mas mesmo isso precisaria ser posto em contexto. Policiais sabem bater para não deixar marcas. Até eu sei fazer isso. Faça uma busca pelo Google e encontrará um resultados interessantes, no mau sentido.

7. "a defesa não se desincumbiu do ônus processual no sentido de provar fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito estatal"

Se, e apenas se, o réu alega um fato impeditivo, pode lhe ser cobrada a comprovação do mesmo. A questão é se terá condições de provar o tal fato impeditivo, se o juiz indefere seus requerimentos, como ocorreu no caso (a sentença não esclarece quais foram, limitando-se a dizer que a questão já foi decidida em momento anterior); se não tiver condições de fazê-lo ou se devido ao compadrio entre os diversos agentes do Estado, que retira qualquer oportunidade de sucesso nesses esforços.

A fundamentação da sentença sobre o crime de associação para o tráfico não traz inovações. E a dosimetria é imoral: invoca genericamente algumas circunstâncias judiciais e não oferece nenhuma (nenhuma!) análise sobre elas.

Para encerrar, preciso destacar que o caso ora analisado está longe de ser inédito. Na verdade, ele é rotineiro. A diferença é que Rafael se tornara um personagem das "jornadas de junho" e, por isso, organismos de defesa dos direitos humanos já estavam de olho nele. Mas todo dia outros Rafaeis acabam presos sem que ninguém se importe. Muito menos os agentes do Estado. Estes estão satisfeitíssimos pelo dever cumprido.

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