quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Damásio

Acabo de saber que o Prof. Damásio Evangelista de Jesus faleceu nesta quinta-feira (13.2.2020), aos 84 anos. Sem dúvida, uma grande perda para a cultura jurídica de nosso país, que necessita, cada vez mais, de juristas comprometidos com o Estado democrático de Direito, sobretudo no campo penal.

Não há como dissociar o Prof. Damásio de minha formação pessoal. Nos idos da década de 1990, seu nome era o mais conhecido e comentado no direito penal brasileiro. Suas análises eram a expressão da autoridade em nosso campo de estudo. Aliás, ele ― que foi professor por mais de 40 anos ― é legítimo representante dessa auctoritas, entendida como uma espécie de legitimação social de um saber notório. Sua palavra tem credibilidade e merece respeito, ainda quando seja contraditada. E é uma autoridade que advém do trabalho prático e cotidiano ― no caso, seja por sua atuação como advogado, como promotor de justiça ou como docente. Era uma autoridade haurida pela carreira e por uma vida ilibada, um modelo que, nas últimas décadas, foi substituído pela titulação acadêmica e pelo número de publicações e de participações em eventos.

Note que não estou fazendo nenhum juízo de valor sobre qual modelo é melhor, até porque me parece bastante óbvio que eu jamais diminuiria a importância da titulação acadêmica, da pesquisa efetiva e da divulgação de seus resultados. O que estou dizendo, apenas, é que fui graduando em Direito entre os anos de 1992 e 1997. Naquela época, ao menos em minha região (realidade que conheço), o que a universidade ainda valorizava eram os professores selecionados com base em carreiras de sucesso, que lhes legitimavam o exercício da docência por meio de aulas magistrais, nas quais compartilhavam com os alunos o muito conhecimento amealhado ao longo dos anos. O velho padrão do estudante-quadro-branco a ser preenchido pela sabedoria do mestre. Não que essa fosse sempre a realidade, mas era a idealização. Com efeito, mesmo entre os meus melhores e mais inspiradores professores, quase não havia ninguém com título de mestre, menos ainda doutor, e as poucas vagas oferecidas pelo curso de mestrado em Direito, em minha Universidade Federal do Pará, nem sempre eram preenchidas. Durante minha graduação, observei uma guinada nesse cenário, quando o mestrado passou a ser procurado por grande número de pessoas e vários professores se dedicaram à pós-graduação.

Sei que o Prof. Damásio foi laureado com um título de doutor honoris causa pela Universidade de Salerno (Itália), mas confesso não saber se ele chegou a obter o grau de doutor (não encontrei um currículo Lattes). Mas também sei que ninguém duvidava de seus conhecimentos e que todos sempre o respeitamos. Escrevendo sobre dogmática, lecionando ou concedendo entrevistas, sempre foi comprometido com a ideia  ― hoje cada vez mais esmaecida pelo discurso e prática do sistema de justiça criminal, dominado pelos Quixotes da moralidade  ― de que o direito penal é um instrumento de proteção do indivíduo acusado de crime frente ao Estado. Que é e precisa ser um instrumento de garantia do cidadão. Que os fins não justificam os meios, não importa a desculpa que se invente para legitimar abusos.

É por isso que me sinto à vontade de dizer que, aos 16 anos, eu sonhava em ter a coleção de Direito Penal do Prof. Damásio em minha estante, aqueles quatro volumes de capa ocre (hoje, preta e azul) que luziam conhecimento. Quando comprei o primeiro volume, segurei-o como se fosse um bebê. A reunião dos quatro livros foi uma espécie de conquista pessoal. E, por anos, eles me auxiliaram como estudante, monitor da disciplina e, por fim, como professor. Embora seja fato que, com o tempo, acabei substituindo minhas obras de referência por outros autores, nunca deixei de ter um Damásio na prateleira ou de citá-lo em aula. Afinal, um professor que não justifica tortura nem mesmo em "casos extremos" merece respeito, não importa o tempo que passe.

Muito obrigado, Prof. Damásio, por tudo que fez pelo direito penal brasileiro e pela educação nesse campo. Muito obrigado por me ensinar a importância dos termos técnicos, da linguagem escorreita, da precisão das classificações, algo que também aprendi com meu mestre, Prof. Hugo de Oliveira Rocha, e que tentei repassar aos meus próprios alunos. Muito obrigado pela dogmática profunda, pelas reflexões coerentes, pelo senso de responsabilidade. E obrigado, inclusive, pela técnica de formular perguntas para orientar o nosso raciocínio, às vezes apresentando hipóteses surpreendentes e algo absurdas, que frequentemente me fizeram sorrir. Absurda ou não a premissa, a resposta fazia todo o sentido. Os gêmeos xifópagos que o digam.

Vá em paz, com todo o nosso respeito e gratidão.

Um comentário:

Anônimo disse...

Pelo jeito não aprendestes nada...
És tudo o que o Direito Penal abomina!