quinta-feira, 2 de abril de 2020

Exercício de futurologia, sempre para o mesmo lado

Nos mais de 11 anos que passei como assessor de um desembargador no Tribunal de Justiça do Estado do Pará, contribuí para a concessão de um número de liberdades provisórias e de ordens de habeas corpus muito superior ao padrão local, simplesmente porque... cumpríamos a Constituição de 1988! A liberdade é a regra; a prisão é a exceção. Este brocardo, óbvio de doer, estampa qualquer manual de processo penal e inúmeras decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas na vigente ordem constitucional, mas é solenemente ignorada, deturpada e ridicularizada na praxe judicial.

O sistema punitivo, como denunciamos sem cessar ao longo de mais de 20 anos de docência, com respaldo em um número imenso de pesquisadores sérios (criminólogos, historiadores, sociólogos, filósofos, psicólogos, etc.), de diferentes matizes e nacionalidades, existe para punir os pobres e funciona por meio da autolegitimação de suas práticas segregadoras. É extremamente fácil decretar e manter prisões, mas é extremamente difícil conseguir a restituição da liberdade de um indivíduo, mesmo com todo o arcabouço jurídico criado para impedir isso.

Um dos motivos que nos fazia determinar a soltura do preso era a especulação. Sim, juízes se sentem absolutamente à vontade para praticar a vidência jurisdicional, mantendo o acusado preso porque existe a possibilidade de ele fugir, de coagir testemunhas, de praticar outros delitos, etc. A mera possibilidade, que "fundamenta" tantas decisões, resume-se à noção de que algo é possível simplesmente porque não é impossível. Nesse sentido, é perfeitamente possível que qualquer um de nós morra ainda hoje, que ganhe na loteria, que escorregue no chão molhado do banheiro. Quando a "fundamentação" judicial se resumia a esse tipo de despautério, nós concedíamos a liberdade, se nada houvesse nos autos, de concreto, indicando risco de fuga (p. ex., o acusado comprou uma passagem aérea), de coação a testemunha (ele ao menos tentou manter contato efetivo com a pessoa) ou da prática de outro delito (ele foi flagrado em situação sugestiva de atos ao menos preparatórios de crime).

Muitas vezes escrevi que ao juiz não cabe especular. A liberdade individual é coisa muito séria para depender de caprichos e fantasias.

Anos se passaram e a situação somente se agravou. O punitivismo e o encarceramento foram naturalizados a um nível tão extremo que qualquer ponderação em contrário é imediatamente rejeitada, tratada como má-fé, ingenuidade ou burrice. A "Operação Lava Jato" consolidou a prática de fins que justificam os meios; o STF legitimou diversas violações à Constituição; todo brasileiro no botequim virou especialista em direito e processo penal e a mídia... É, a mídia não mudou. Continua fazendo o que sempre fez. Mas agora com a concorrência da internet, onde todos são especialistas e cospem sangue pelos olhos.

Esta longa introdução foi motivada por reportagem que li há pouco, dando conta de que uma juíza, na comarca de Guararema, a 80 Km da capital paulista, negou liberdade provisória a um preso hipertenso porque ele poderia violar a quarentena! Veja que fofa a "fundamentação": "é lógico, e não precisa grandes elucubrações argumentativas para se concluir isso, que aquele que está preso por violar norma penal (...) não teria muita dificuldade, ou freios internos para violar regras sanitárias para permanência em domicílio". Pronto. Simples assim. E para a magistrada é simples mesmo, tanto que ela já dá o seu argumento como "lógico" e evidente. Aqui o link para a reportagem: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/juiza-supoe-que-preso-descumprira-quarentena-do-coronavirus-e-nega-pedido-de-liberdade.shtml.

Afora tudo o que já escrevi acima, muita coisa poderia ser pensada para refutar o exercício de futurologia da juíza. A começar pela rejeição da falsa premissa de que as pessoas agem movidas por critérios decisórios óbvios e comuns a toda a gente. O sujeito está preso porque tentou matar alguém, supostamente. Mas qual a relação entre esse fato e a conclusão de que ele não teria medo de expor a si mesmo ou a seus familiares ao risco de contaminação? E se ele possuir um pai ou mãe idoso, que pretende proteger? E se a hipertensão o tornou excessivamente cuidadoso com a própria saúde? Estou especulando, eu sei. Mas é só para mostrar que especulação é isso: tem para todos os gostos e não é garantia de nada.

Só que a minha especulação em postagem de um obscuro blog não gera os danos do achismo aposto a uma decisão judicial. E mesmo assim tento ser responsável pelo que escrevo. Por que outras pessoas não fazem o mesmo?

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