sexta-feira, 31 de julho de 2020

Afinal, qual é o problema da rede?

Como não temos nenhum problema sério a resolver no país, o assunto que eclodiu nas redes sociais ontem e, hoje, ganhou a mídia convencional foi o caso do advogado Marcus Albuquerque, que participou de uma sessão de julgamento da 4ª Turma Recursal do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia deitado em uma rede.


O vídeo divulgado mostrou um trecho curtíssimo do ato judicial e  vejam que interessante , considerando apenas o que vimos, nenhum dos juízes reclamou da conduta do advogado. Ele se dirigiu normalmente aos magistrados e, segundo reportagem que li, conseguiu provimento parcial ao recurso de sua constituinte. 

Afinal, o que faz com que um caso desses se torne notícia? Especulo que o fato de o episódio ter ocorrido na Bahia seja uma primeira explicação, dado o estereótipo do baiano como preguiçoso (algo que, para mim, não merece seguimento). O segundo motivo deve ser a suposta violação de protocolos comportamentais perante o Poder Judiciário. Este é o ponto que eu gostaria de enfrentar.

De saída, e sendo preciosista, ressalto que não existe nenhuma regra sobre participar de sessões de julgamento deitado, em uma rede ou seja onde for, simplesmente porque todos os protocolos consideram os atos judiciais como presenciais. Não passou pela cabeça de ninguém, nem quando começou a se discutir sobre atos por videoconferência, há alguns anos, que um dia seríamos forçados a ficar em nossas casas e isso afetaria o modo como as pessoas se apresentam publicamente. Em não havendo regra específica, resta questionar o ocorrido com base no bom senso.

O problema é que bom senso é algo subjetivo. Para piorar, o brasileiro médio relaciona noções como bom comportamento e respeito a padrões nobiliárquicos, empolados, solenes e severos. Em bom português, rapapés e salamaleques. Firulas. Asneiras. Já tivemos demonstrações disso aqui no blog, em estéreis discussões sobre vestimentas, pois há quem ache que advogado sem terno está faltando com o respeito ao judiciário, sem falar nos imbecis que, diante do meu argumento de que terno não deveria ser obrigatório, em cidades de calor lancinante como Belém, respondem dizendo que, daqui a pouco, iremos trabalhar de sunga. Isso nem merece resposta.

No caso ora comentado, só vemos a cabeça do advogado, apoiada em um travesseiro, em sua rede. Não sabemos como está vestido. Mas sabemos que ele se dirige respeitosamente aos magistrados. Faz o que deveria fazer. A única questão é que está deitado. E daí? Não vemos nenhuma atitude grosseira ou hostil, incapacidade técnica, nada. Tudo nos conformes. Pessoalmente, prefiro um bom advogado deitado na rede (o que também adoro fazer, quando em repouso) a um engomadinho mal-educado, arrogante, muitas vezes incompetente, porém metido em um reluzente terno caro, tendo ao fundo a parede de vidro de seu vistosa sala comercial ou o clichezão das prateleiras cobertas de livros.

Nos últimos meses, o isolamento social popularizou as reuniões on-line e, em consequência, temos visto uma profusão de gafes. É gente sem camisa, totalmente pelada, soltando flatulências, desembargador dormindo na sessão (isto, convenhamos, não é novidade da pandemia), etc. Mas nem estou preocupado com as gafes. O meu horror é às agressões.

Dois dias atrás, o reitor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro chamou de filha da puta uma pró-reitora que pedia o adiamento da reunião. Diante da reação compreensivelmente irada dos professores, desculpou-se imediatamente, dizendo que seu comentário fora "pra lá de infeliz", mas antes disse que o microfone estava aberto. Ele se desculpou porque reconheceu a má conduta ou apenas porque foi flagrado, ao esquecer o áudio aberto?

Na mesma quarta-feira (29), o desembargador José Manzi, da 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, disse "isso, faz essa carinha de filha da puta", referindo-se à advogada responsável pela sustentação oral, o que despertou nota de repúdio da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Santa Catarina, do Instituto dos Advogados de Santa Catarina e da Associação Catarinense dos Advogados Trabalhistas.

Procurando, encontraríamos outros casos sem dificuldades. Referi os dois que me chegaram via WhatsApp quase ao mesmo tempo. E, por sinal, gostaria de destacar um aspecto que merece especial atenção: em ambos, tivemos homens em posições de poder ofendendo mulheres, em ambiente profissional, sendo que a agressão tem conotação sexual. Sintomas recorrentes de uma sociedade misógina, autoritária e que se recusa a reconhecer a dignidade do outro. Mesmo que certas posições, como a de reitor, sejam passageiras. 

Ao fim e ao cabo, o problema não é a pandemia nem as tarefas on-line. A questão continua sendo a mesma de sempre: as pessoas que somos, a sociedade que somos. Pandemia e internet apenas desnudaram o verdadeiro monstro.

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