sábado, 30 de maio de 2015

Fieis à corrupção

Em uma faculdade privada localizada em uma cidade muito distante daqui, esta semana a funcionária responsável pelo processamento dos pedidos de financiamento estudantil (FIES) desabafou na sala dos professores. Estava indignada com a quantidade de safadezas praticadas no programa. Destacou, em especial, a grande quantidade de pedidos formulados por pessoas que simplesmente não precisam dessa política pública.

As malinagens são de todo tipo. Gente que é filho de fazendeiro, por exemplo, indica no formulário que é filho de agricultor e aponta um endereço lá no meio do mato. E como o governo federal coloca toda a carga da investigação sobre as instituições de ensino, são estas que precisam se certificar de que está tudo correto. Felizmente, essa valorosa brasileira leva muito a sério o seu trabalho e não dá sossego aos vigaristas.

Em um caso peculiar, um sujeito, titular de uma boa posição na Aeronáutica, não podia ocultar sua renda mensal superior a 8 mil reais. Que fez ele? Indicou no formulário um monte de dependentes, incluindo a sogra e sobrinhos. Como a legislação do FIES permite que a instituição requisite qualquer documento capaz de comprovar a situação socioeconômica do requerente, nossa zelosa brasileira requisitou a declaração de ajuste anual do cara. Queria, é óbvio, confirmar que aquele batalhão de dependentes também havia sido declarado à Receita Federal.

A funcionária, então, começou a receber telefonemas de alguém em Brasília, exigindo explicações sobre por que o processo do requerente não havia sido solucionado ainda. E acusando-a de estar aplicando mal a lei, porque o sujeito não seria obrigado a apresentar sua declaração de rendimentos. Mas nossa valorosa brasileira primeiro questionou por que uma pessoa estranha ao processo estava intervindo nele (e não recebeu explicação sobre isso). Depois, esclareceu que se o requerente não apresentasse a declaração de ajuste anual, o seu pedido seria indeferido e ele poderia, nos termos da lei, recorrer, se quisesse.

Como você já pode imaginar, o requerente não comprovou os seus dependentes, teve indeferido o seu pedido, mas não recorreu. Ele simplesmente sumiu. Sabe por quê? Porque nos precisos termos do art. 299 do Código Penal, inserir, em documento público ou particular, declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante constitui crime de falsidade ideológica, passível de 1 a 5 anos de reclusão, se o documento for público, ou 1 a 3 anos, se privado, além de multa.

E é assim, para dar apenas um exemplo, que pessoas comuns renovam, todo dia, a infatigável capacidade do brasileiro de se locupletar de tudo, transformando qualquer boa iniciativa em bandalheira.

O pequeno provocador que existe em mim está gritando aqui no meu ouvido que esse fulano da Aeronáutica, com certeza, é um dos milhões de brasileiros que esbraveja contra a corrupção dos políticos ou dos servidores públicos em geral, que se diz farto de tanta criminalidade, que exige leis penais mais duras e a redução da maioridade penal, que comemora a existência de uma "bancada da bala" no Congresso Nacional, que repete a cantilena imbecilizante do "bandido bom é bandido morto" e se enche de menosprezo para aludir ao "pessoal dos direitos humanos".

E já que estou falando de um fato ocorrido sabe-se lá onde e sabe-se lá quando (só confirmo que é verídico e recente), ouso especular que esse cidadão de bem que tentou fraudar o programa FIES também é um dos milhões de brasileiros que sente nojo das políticas de transferência de renda ou de cotas nas universidades, implantados ou ampliados de 2003 para cá. Considera-os prejudiciais porque negam a meritocracia e criam uma legião de malandros que viverão para sempre pendurados no produto do esforço dos ditos cidadãos de bem. Como cereja do bolo, ele provavelmente repercutiu, no Facebook, o meme sobre o esgotamento de recursos para o FIES, agora em 2015, como uma prova cabal de que a atual presidente aplicou um estelionato eleitoral.

O canalha somente se esqueceu do estelionato particular, aquele ocorrido dentro de seu próprio raio de ação, que provavelmente ele não viu como nada demais. Afinal de contas, todo mundo faz, né? Que que tem? Então deixa eu ir ali falar mal do governo.

Um comentário:

Anônimo disse...


Caro Yúdice

Quando eu falo que a corrupção, no Brasil, parte de uma maioria, e não de uma minoria, não me dão ouvidos. Isso de dizer que "é uma minoria" os que afrontam as leis é uma falácia.

Somemos os mais diversos delitos(trânsito, estacionamento em local proibido, uso de vagas de idosos, gatonet, FIES, passar pontos de multas para outra CNH, estelionatos, homicídios, fraude nos impostos, não recolhimento INSS das empregadas domésticas, jogar lixo na rua, pichações, fraudar licitações, enganar o consumidor com balanças desreguladas, sentar em banco reservado á idosos nos ônibus, usar o seguro-desemprego em conluio com o empregador, etc, etc.)

Ainda que alguns "crimes" se sobreponham nas mesmas pessoas, certamente teremos um percentual muito grande de brasileiros que não cumprem as leis.

Portanto, é ilusão achar que o brasileiro é um povo cordial, honesto, trabalhador. Claro que os há, mas não são maioria. Infelizmente

Kenneth