segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Agradecimentos post mortem

Enfim, a hora chegou. Nossa mãezinha partiu por volta de 7h30 do último sábado, dia 3, após uma penosíssima trajetória de um ano e nove meses de luta contra um câncer, mas também contra uma série de comorbidades que tornaram o seu tratamento ineficaz. Foram nove internações, algumas dezenas de sessões de rádio e braquiterapia, dois protocolos diferentes de quimioterapia (um terceiro negado) e uma quantidade literalmente incalculável de consultas, exames e procedimentos.

Pode-se dizer que, de algum modo, ficamos bem familiarizados com o ambiente de tratamento de saúde e lidamos com diversos profissionais. Sabemos que existe um processo acelerado de desumanização no exercício da Medicina; que muita gente escolhe essa carreira por status e dinheiro; que o paciente está valendo cada vez menos. Por isso mesmo, neste momento, sinto-me no dever de honrar alguns dos profissionais que são Médicos maiúsculos, de competência testada e comprovada mas, acima de tudo, dotados daquilo que se espera de um verdadeiro médico: a espontânea preocupação em fazer o melhor pelo paciente.

Ainda na clínica Uronefro, onde nossa mãe fez hemodiálise de janeiro de 2014 a julho de 2015, fomos acompanhados pela nefrologista Myrtes Martins, à frente de uma equipe também competente e dedicada, que passa pelos demais nefrologistas, time de enfermagem, psicóloga, nutricionista, recepcionistas, porteiros, etc. Nós fomos tratados com carinho genuíno na clínica e somos muito gratos por cada gesto de atenção. Notadamente em relação a Myrtes Martins, agradecemos sua diligência e compromisso, conseguindo salvar a vida de nossa mãe não uma, mas três vezes, nos sucessivos episódios de edema agudo de pulmão.

Já no Hospital Saúde da Mulher, o neurocirurgião Fernando Santos foi a síntese do que um médico deve ser. Em novembro de 2014, atendeu minha mãe e percebeu a gravidade de sua situação. Quis interná-la imediatamente e se esforçou por realizar a cirurgia, dificultada por erros administrativos. Quando a cirurgia efetivamente aconteceu, foi um craque. Retirou o máximo que pode de um tumor metastásico que envolvia os ossos do sacro. Devido à ser uma região repleta de nervos, todo tipo de sequela poderia aparecer: perda de movimentos, incontinência urinária, etc. e etc. Mas a cirurgia foi perfeita. No entanto, o que me comoveu profundamente foi o dia em que ele entrou no apartamento do hospital e, ao ver minha mãe, exclamou: "Agora sim! O que eu queria era ver a senhora sorrir de novo!" Encontrei-me com ele na semana passada, casualmente, quando mamãe ainda vivia, e lhe reiterei nossa imensa gratidão por ser um médico que coloca o paciente em primeiro lugar.

Em dezembro de 2014, chegamos até a oncologista Danielle Feio, que se tornou nossa parceira e enfrentou conosco o tratamento quimioterápico que, infelizmente, não funcionou. Suas consultas eram longas, com explicações minuciosas, o que nos permitiu desenvolver grande confiança em seu trabalho. Até o último instante, cuidou do nosso "vaso que podia quebrar a qualquer momento", mas não quebrava. Respondia nossas perguntas, aceitava nossas mensagens via WhatsApp em pleno final de semana e, por fim, ao decidir utilizar um terceiro e derradeiro protocolo de quimioterapia, com uma droga off label para o tipo de câncer de nossa mãe, explicou-nos detalhadamente os motivos, que comprovou com estudos, mostrando-se competente e atualizada. Minha mãe confiava e gostava dela. Claro, foi tratada com dignidade e afeto legítimos. Já é possível fazer um bom tratamento oncológico em Belém. Infelizmente, o corpo de nossa mãezinha não tinha condições de resistir.

Por fim, já nesta reta final, a geriatra e paliativista Raquel Loiola, mesmo quando ainda supúnhamos ser possível garantir alguma sobrevida a nossa mãe, com alguma qualidade, deixou claro que podíamos trabalhar para deixá-la em casa, em condições dignas. Nada de medidas agressivas e inúteis. Nada de potencializar o sofrimento. Nesta última semana, quando se tornou evidente que a hora da morte estava à porta, ela nos explicou o significado e a utilidade (ou total falta dela) de cada tratamento, deu-nos opções e permitiu que decidíssemos o melhor (possível, no contexto) para nossa mãe. Com sua voz mansa porém firme, preparou-nos para o que vinha e garantiu que minha mãe fizesse sua passagem sem ser mais maltratada, ao lado da família.

Eu gostaria que todos os médicos fossem como esses quatro que citei. Mas não são. Há aqueles que dizem ser impossível aplicar quimioterapia em um doente renal crônico e que se recusam a aceitar a sugestão dos filhos, por duas vezes, de requisitar um PET-Scan. São esses que permitem um quadro de metástase se instalar livremente, sem combate, levando a paciente ao desespero da dor e, mais à frente, à irreversibilidade do quadro.

Também há os ultra-arrogantes, que operam uma paciente sem jamais ter um contato com a família, sem explicar o que fariam, e acabam por colocar um cateter errado nela, colocando-a em risco real de morte porque foi impossível dialisar. São esses que obrigam a uma internação que, sem esse erro, simplesmente não aconteceria e, mesmo assim, jamais pedem desculpas e olham os filhos com desprezo no corredor, porque exigiram que o conserto fosse feito por outro angiologista. Que, por sinal, também teve suas falhas e, para corrigi-las, reposicionou o cateter a sangue frio, puxando, fazendo nossa mãe gritar de dor.

E há o pessoal da enfermagem, que amarra uma paciente lúcida no leito de UTI, onde estava emocionalmente desgastada e sozinha, absolutamente vulnerável, apenas porque não gostou de seu tom. Felizmente, apenas uma fruta podre em meio a uma equipe de enfermeiros e técnicos muito dedicados, carinhosos e simpáticos, cujos nomes não consigo reter dada a maior quantidade, ao rodízio e à perturbação em que sempre nos encontrávamos quando nossos caminhos se cruzavam.

E é isso. Não sou amigo destes médicos, pessoalmente ou pelas redes sociais. Tentarei levar a eles estas palavras mas, acima de tudo, guardem seus nomes. Espero que não precisem deles!!! Mas saibam que existem sim, em Belém, médicos humanos, verdadeiros e merecedores de todas as homenagens.

4 comentários:

Sabrina Damasceno disse...

Professor, depoimento impar! Muito obrigada, reforço os votos de uma caminhada firme, apesar da ausência de sua mãezinha, e tbm aqui expresso novamente os meus sinceros pêsames! Força ao senhor e seus familiares!

Daniel Scortegagna disse...

Força neste momento de dor! Não te conheço pessoalmente mas nutro admiração pela pessoa que transpareces pelos escritos, os quais acompanho já há algum tempo.
Força e um fraterno abraço!

Hudson Andrade disse...

Será encaminhado, porque é justo que o o bem se propague. Acrescento aqui, sem qualquer demérito às demais profissionais da área, a equipe de enfermeiras e técnicas em enfermagem do Setor 3 - terceiro andar do Hospital Saúde da Mulher, onde nossa mãe se tratava.
Na ausência dos médicos, são essas pessoas que dedicam horas cansativas de suas vidas na manutenção do bem estar de nossos doentes. E são elas (e eles) que efetivamente materializam o cuidado em cada tratamento.

Minha / nossa gratidão.

Tatiana Gonzaga disse...

Sinto muito, Yúdice! Receba meus sentimentos e carinho. Estou com minha mãe doente aqui no interior de SP e realmente a dificuldade em encontrar bons profissionais nessa área é imensa. E isso ocorre justamente nos momentos mais difíceis, né?

Enfim... Força por aí! A vida segue e sua meninoca precisa de você. Forte e feliz.