quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Cocares da discórdia

Imagino que a maioria das pessoas que tomou conhecimento do caso estranhou, e provavelmente considerou excessiva, a atitude do IBAMA de multar, em 10 mil reais, uma designer de interiores que compôs um ambiente, no evento denominado Casa Cor Belém, utilizando dois cocares indígenas, emoldurados num quadro. Diante da sensação de há-coisa-mais-importante-que-fazer, precisamos consultar a legislação para entender melhor o que se passou.

O ambiente concebido pela profissional, com os
cocares na parede, em foto de Nelson Feitosa.
 Antes de mais nada, impende lembrar o cânone constitucional ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa, senão em virtude de lei. E me refiro a lei em sentido estrito, não bastando um decreto.
Recorro, então, à Lei n. 9.605, de 1998 (Lei de Crimes Ambientais), cujo capítulo VI dispõe sobre infrações administrativas, assim entendidas como "toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente" (art. 70). São previstos dez tipos de penalidades, dentre os quais multa e "apreensão dos animais, produtos e sub-produtos da fauna e da flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração".
Como os cocares são sub-produtos da fauna, a apreensão dos mesmos implica em destruição ou em doação a instituições científicas, culturais ou educacionais (art. 25, § 3º).
Por não poder regulamentar todas as matérias tratadas, a lei delegou ao Poder Executivo essa obrigação (art. 80), razão pela qual foram editados decretos, posteriormente revogados, sendo que hoje vigora o Decreto n. 6.514, de 22.7.2008, invocado pelo IBAMA para justificar as suas ações.
Sem destoar dos comandos trazidos pela lei ordinária, o decreto considera infração contra a fauna as condutas de vender, expor à venda, exportar ou adquirir, guardar, ter em cativeiro ou depósito, utilizar ou transportar ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade ambiental competente ou em desacordo com a obtida (art. 24, § 3º, III). A penalidade é de 5 mil reais por "indivíduo de espécie constante de listas oficiais de fauna brasileira ameaçada de extinção" (art. 24, II).
O decreto ainda prevê que os bens apreendidos ficarão sob a guarda do órgão ou entidade responsável pela fiscalização ou, excepcionalmente, confiados a fiel depositário (que pode ser o próprio autuado), até o julgamento do processo administrativo (arts. 105 e 106, II).

O ambiente modificado. O anterior era mais
simpático. A foto é do mesmo autor.
 Formalmente falando, o IBAMA agiu dentro da lei. Deve-se lembrar, entretanto, que uma vez constatada a infração, deve ser formalizado o auto respectivo, de cuja ciência começa a contar o prazo de 20 dias para oferecimento de defesa, pelo suposto infrator. A designer alega que ainda não recebeu nenhuma notificação.
O chefe da Divisão de Fauna do IBAMA no Pará, Leandro Aranha, declarou que "Ao exibir na mídia os quadros com as penas de araras e papagaios como se fossem objetos decorativos de bom gosto, a designer já cometeu uma infração ambiental. Ela ainda incentivou o comércio ilegal de plumagens, sem falar da crueldade de se fazer quadros com partes de animais silvestres ameaçados de extinção". Credo. Que esteja errado, mas daí a falar em incentivo ao comércio ilegal vai uma certa distância. Sugere um dolo que a decoradora talvez não possua, ainda mais sendo verdade o que alega: que as peças foram compradas há 30 anos por uma amiga, numa loja da própria FUNAI. Claro que, sem um comprador, a atividade ilícita perde a sua razão de ser. Mas todos sabemos, também, que artefatos indígenas de todo tipo eram vendidos livremente em outras épocas. Qualquer pessoa podia adquiri-los e o fazia por gosto pessoal, não porque desejasse insuflar a matança de araras e papagaios.
Nós somos amazônidas. Gostamos de araras e papagaios. E os jovens, sobretudo, gostam de se enfeitar com motivos indígenas, sem que isso expresse qualquer objetivo de dano ambiental.
Eu ia escrever algo sobre erro de proibição, mas considerando que a decoradora tomou o cuidado de se informar junto ao IBAMA e, inconformada com a resposta, decidiu usar os cocares mesmo assim, só posso concluir que ela se pôs na situação em que se encontra. No entanto, realmente acho que a lei deveria ter previsto alguma norma específica para fatos praticados anteriormente à legislação. Afinal, o comando jurídico só pode surtir efeitos para o futuro.

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4 comentários:

Anônimo disse...

Desmatamento correndo a frouxo, trafico de animais silvestres nas barbas de todos, madeireiras praticando ilicito em toda parte e o IBAMA vem se preocupar com dois cocares de indio em uma exposição ,ora me compre um Bode , opa não sei se pode, se não puder não compre não e capaz de ser muiltado. Daqui a pouco vão encontrar um criadouro de tartaruga na Almirante barroso e bloquear a via para não petrurbar o sossego do bicho que é bem melhor em forma de picadinho e com farofa baguda e logico uma cerveja gelada pra rebater e uma rede pra tirar a sesta logo após.

Yúdice Andrade disse...

Meu caro, gosto muito dessa expressão "me compre um bode" e, no seu caso, com o complemento, que até rimou, tive que dar uma boa gargalhada.
No mais, coitados dos quelônios!

Anônimo disse...

Para constar, a lei de fauna, que trata do tema existe desde 1967. Da mesma forma, a Funai não poderia vender artefato com subprodutos da fauna, ferindo acordos internacionais de proteção dessas espécies como o que trata de espécies ameaçadas pelo tráfico (Cites), do qual o Brasil é signatário. Ações fiscalizatórias anteriores sobre as atividades comerciais da Funai, com esses produtos, já resultaram em diversas autuações.

Yúdice Andrade disse...

Fique bem claro que sou favorável às ações de proteção ao meio ambiente. Só peço racionalidade. Uma coisa é um cocar comprado hoje, outra um cocar vendido pela FUNAI 30 anos atrás. Se essa versão for verdadeira, claro.